quinta-feira, 19 de maio de 2011

De Nobel a Nobel: Carta aberta de Pérez Esquivel a Obama

Prezado Barack:

Ao te dirigir esta carta, faço-o fraternalmente e também para expressar a preocupação e a indignação de ver como a destruição e a morte semeadas em vários países, em nome da liberdade e da democracia, das palavras prostituídas e vazias de conteúdo, terminam justificando o assassinato, que é festejado como se fosse um acontecimento esportivo.

Indignação pela atitude de setores da população dos Estados Unidos, de chefes de Estado europeus e de outros países que vieram apoiar o assassinato de Bin Laden, ordenado por teu governo e tua complacência em nome de uma suposta justiça.

Não procuraram detê-lo e julgá-lo pelos crimes supostamente cometidos, o que gera maior dúvida; o objetivo foi assassiná-lo.

Os mortos não falam e, ante o medo de que o justiçado possa dizer coisas não convenientes para os Estados Unidos, a saída foi o assassinato e assegurar que, morto o cão, tenha acabado a raiva, sem levar em conta que não fazem outra coisa senão incrementá-la.

Quando recebestes o Prêmio Nobel da Paz, do qual somos depositários, te enviei uma carta que dizia: Barack, me surpreendeu muito que te tenham outorgado o Nobel da Paz, mas agora que o tens deves colocá-lo a serviço da paz entre os povos; tens toda a possibilidade de fazê-lo, de terminar as guerras e começar a reverter a grave situação em que o teu país e o mundo estão vivendo.

Contudo, incrementastes o ódio e traístes os princípios assumidos na campanha eleitoral ante teu povo, como por fim às guerras no Afeganistão e no Iraque e fechar as prisões de Guantánamo, em Cuba; e de Abu Graib, no Iraque. Nada disso conseguistes fazer; pelo contrário, decides começar outra guerra contra a Líbia, apoiada pela OTAN e pela vergonhosa resolução das Nações Unidas de apoiá-la; quando esse alto organismo, diminuído e sem pensamento próprio, perdeu o rumo e está submetido às veleidades e interesses das potências dominantes.

A base da fundação da ONU é a defensa e promoção da paz e dignidade entre os povos. Seu preâmbulo diz: "Nós, os povos do mundo…”, hoje ausentes desse alto organismo.

Quero recordar um místico e mestre que tem, em minha vida, uma grande influência: o monge trapense da Abadia de Getsemani, no Kentucky, Tomás Merton, que disse: A maior necessidade do nosso tempo é limpar a enorme massa de lixo mental e emocional que está em nossas mentes e que converte toda a vida política e social em uma enfermidade de massas. Sem esta limpeza doméstica não podemos começar a ver. Se não vemos, não podemos pensar.

Eras muito jovem, Barack, durante a Guerra de Vietnam; talvez não te recordes da luta do povo norte-americano para se opor à guerra.

Os mortos, feridos e mutilados no Vietnam até o dia de hoje sofrem as suas consequências.

Tomás Merton dizia, frente a um carimbo de carta que acabava de chegar, The U.S. Army, key to peace, O exército estadunidense, chave da paz: nenhum exército é a chave da paz. Nenhuma nação tem a chave de nada que não seja a guerra. O poder não tem nada a ver com a paz. Quando mais os homens aumentam o poder militar, mais violam a paz e a destroem.

Convivi e acompanhei os veteranos de guerra de Vietnam, em particular Brian Wilson e seus companheiros, que foram vítimas dessa guerra e de todas as guerras.

A vida tem esse ‘não sei quê’ de imprevisto e surpreendente, da fragrância e beleza que Deus nos deu para toda a humanidade e que devemos proteger para deixar as gerações futuras uma vida mais justa e fraterna; restabelecer o equilíbrio com a Mãe Terra.

Se não reagirmos para mudar a situação atual da soberba suicida, arrastando os povos aos profundos meandros onde morre a esperança, será difícil sair e ver a luz. A humanidade merece um destino melhor.

Sabes que a esperança é como o loto que cresce na lama e floresce em todo esplendor, mostrando toda a beleza. Leopoldo Marechal, o grande escritor argentino, dizia que, do labirinto se sai por cima.

E creio, Barack, que depois de seguir a tua rota equivocando caminhos, te encontras em um labirinto sem poder encontrar a saída e te enterras mais e mais na violência, na incerteza, devorado pelo poder da dominação, arrastado pelas grandes empresas, pelo complexo industrial militar, e crês ter o poder que tudo pode e que o mundo está aos pés dos Estados Unidos porque impõem pela força das armas, e invadem países com total impunidade. É uma realidade dolorosa; mas, também, existe a resistência dos povos que não claudicam frente aos poderosos.

São tão grandes as atrocidades cometidas por teu país no mundo que daria tema para muito, é um desafio para os historiadores que terão que investigar e saber dos comportamentos, da política, da grandeza e da pequenez que levaram os Estados Unidos à monocultura das mentes que não lhes permite ver outras realidades.

Bin Laden, suposto autor ideológico do ataque às Torres Gêmeas, é identificado como o Satã encarnado que aterrorizava o mundo e a propaganda do teu governo o assinalava como o eixo do mal, o que serviu para declarar as guerras desejadas de que o complexo industrial-militar necessita para colocar seus produtos de morte.

Sabes que investigadores do trágico 11 de Setembro assinalam que o atentado tem muito de "autogolpe”, como o avião contra o Pentágono e o esvaziamento anterior dos escritórios das Torres; atentado que deu motivo para desatar a guerra contra o Iraque e o Afeganistão e agora contra a Líbia; argumentando na mentira e na soberba do poder que tudo fazem para salvar o povo, em nome da "liberdade e defesa da democracia”, com o cinismo de dizer que a morte de mulheres e crianças são "danos colaterais”. Foi o que vivi no Iraque, em Bagdá, com os bombardeios à cidade e ao hospital pediátrico, e no refúgio de crianças que foram vítimas desses "danos colaterais”.

A palavra esvaziada de valores e de conteúdo, que te faz denominar de morte ao assassinato e dizer que, por fim, os Estados Unidos fizeram Bin Laden "morrer”. Não procuro justificá-lo sob nenhum conceito; sou contra todo terrorismo, tanto desses grupos armados, como do terrorismo de Estado que teu país exerce em diversas partes do mundo, apoiando ditadores, impondo bases militares e intervenções armadas, exercendo a violência para se manter, pelo terror, no eixo do poder mundial. Há um só eixo do mal? Como o chamarias?

Será por esse motivo que o povo dos Estados Unidos vive com tanto medo das represálias daqueles que chamam de "eixo do mal”? O simplismo e a hipocrisia de justificar o injustificável.

A paz é uma dinâmica de vida nas relações entre as pessoas e os povos; é um desafio à consciência da humanidade; seu caminho é trabalhoso, cotidiano e esperançador, onde os povos são construtores da sua própria vida e da sua própria historia. A paz não se presenteia; ela é construída e isso é o que te falta, rapaz: coragem para assumir a responsabilidade histórica com teu povo e a humanidade.

Não podes viver no labirinto do medo e da dominação daqueles que governam os Estados Unidos, desconhecendo os tratados internacionais, os pactos e protocolos, de governos que firmam, mas não ratificam nada e não cumprem nenhum dos acordos, mas falam em nome da liberdade e do direito.

Como podes falar da paz se não queres cumprir nada, salvo os interesses do teu país?

Como podes falar da liberdade quando tens nas cárceres prisioneiros inocentes, em Guantánamo, nos Estados Unidos, nas cárceres do Iraque, como no de Abu Graib, e no Afeganistão?

Como podes falar dos direitos humanos e da dignidade dos povos quando os violas permanentemente e bloqueias aqueles que não compartilham da tua ideologia e têm que suportar os maus-tratos?

Como podes enviar forças militares ao Haiti depois do devastador terremoto e não ajuda humanitária a esse povo sofrido?

Como podes falar de liberdade quando massacras os povos do Oriente Médio e propagas guerras e torturas, em conflitos intermináveis que tiram proveito de palestinos e israelenses?

Barack: olha para cima do teu labirinto, podes encontrar uma estrela que te guie, embora saibas que nunca poderás alcançá-la, como bem disse Eduardo Galeano.

Procura ser coerente entre o que dizes e fazes; é a única forma de não perder o rumo. É um desafio da vida.

O Nobel da Paz é um instrumento a serviço dos povos, nunca para a vaidade pessoal.

Desejo-te muita força e esperança, e esperamos que tenhas a coragem de corrigir o caminho e encontrar a sabedoria da paz. (Adital)

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