Eles eram crianças quando, em 1912, tropas do ExĂ©rcito e agentes policiais desembarcaram nos sertões de Santa Catarina e ParanĂ¡ para combater seus pais, mĂ£es, tios e avĂ³s que pegaram em facões de pau e velhas espadas farroupilhas e julianas, num movimento contra o projeto de uma ferrovia em suas posses de terra e os desmandos de lideranças emergentes da RepĂºblica, proclamada duas dĂ©cadas antes.
A luta sertaneja marcou uma Ă¡rea de 30 mil quilĂ´metros quadrados, maior que Alagoas e o Haiti, ainda hoje uma regiĂ£o tratada como "maldita" pelo Poder PĂºblico - as terras do Contestado, cercadas por cidades colonizadas por europeus e com padrões de primeiro mundo, apresentam Ăndices de desenvolvimento humano equivalentes a rincões pobres do Nordeste. É uma histĂ³ria de renegados em pleno Sul do Brasil.
As memĂ³rias de infĂ¢ncia de trĂªs brasileiros que sobreviveram a uma guerra militar e enfrentam a guerra da pobreza, ultrapassando cem anos de idade numa regiĂ£o onde a expectativa de vida Ă© inferior Ă mĂ©dia nacional, foram confrontadas com todos os documentos militares que se tĂªm registro sobre o Contestado - duas mil pĂ¡ginas de relatĂ³rios e fotografias. As lembranças dos "meninos", que surgem lentamente, influenciadas durante anos pelos relatos de adultos, e os papĂ©is amarelados dos vencedores, retirados de caixas de um arquivo do Rio de Janeiro, usado pelos pesquisadores do tema, embora com suas versões distintas, compõem um mosaico de violações de direitos humanos que nĂ£o tinha sido visto desde o massacre das revoltas regenciais. A aproximaĂ§Ă£o entre o passado e o presente fica ainda mais nĂtida na anĂ¡lise das ações e prioridades dos governos em Santa Catarina, um Estado reconhecido por sua pujança econĂ´mica.
Prisioneiros. Em 1910, a Brazil Railway Company, subsidiĂ¡ria da holding Lumber Company, criada pelo empresĂ¡rio norte-americano Percival Farquhar, concluĂa a construĂ§Ă£o do trecho da ferrovia SĂ£o Paulo- Rio Grande do Sul no territĂ³rio disputado por Santa Catarina e ParanĂ¡, o Contestado. Quatro mil ex-detentos e miserĂ¡veis de Santos, Rio de Janeiro e SĂ£o Paulo recrutados para as obras foram demitidos e expulsos de cabanas de palha levantadas nas margens da estrada.
A Lumber conseguiu concessĂ£o do governo para explorar pinhos e imbuias nos 15 quilĂ´metros de cada lado da ferrovia. Os renegados engrossaram redutos formados por caboclos nativos que, por orientaĂ§Ă£o de monges andarilhos, pregavam nos desertos sulistas a chegada do exĂ©rcito celeste de SĂ£o SebastiĂ£o, chefiado por uma tropa de elite chamados de os "Pares de França", figuras de histĂ³rias medievais reproduzidos em folguedos de origem portuguesa e folhetins.
As "cidades santas", abertas em clareiras da mata do Planalto Catarinense, abrigavam ainda soldados "maragatos" opositores do governo Floriano Peixoto derrotados por tropas legais, de 1893 a 1895, e pequenos comerciantes e proprietĂ¡rios de terras opositores dos novos coronĂ©is da recĂ©m proclamada RepĂºblica. O Contestado foi uma aliança inesperada e explosiva do caboclo simples do oeste, do polĂtico derrotado e magoado do Rio Grande do Sul, do ex-presidiĂ¡rio e do braçal sem rumo do Rio de Janeiro e de SĂ£o Paulo. Brasileiros com qualidades, defeitos e dramas pegavam em armas. SĂ³ maquiados serviriam, mais tarde, de exemplo para grupos polĂticos.
A guerra dos jagunços, como o conflito foi chamado pelos caboclos, ou dos fanĂ¡ticos, na designaĂ§Ă£o dos militares, nĂ£o teve relaĂ§Ă£o direta com a disputa entre os governos paranaense e catarinense pelo territĂ³rio dos campos de Irani e Palmas, uma Ă¡rea que poucos anos antes era reivindicada pela Argentina. Somente em tempos mais recentes que pesquisadores passaram a chamar a revolta de Guerra do Contestado.
O estopim da revolta ocorreu em 22 de outubro de 1912, quando o capitĂ£o JoĂ£o Gualberto Gomes de SĂ¡ Filho, do Regimento de Segurança do ParanĂ¡, na liderança de 50 homens a cavalo e 200 a pĂ©, atacou um grupo de caboclos que estavam em volta do monge JosĂ© Maria de Jesus, em Irani, Santa Catarina. Antes da batalha, no deslocamento atĂ© Irani, os militares tinham perdido sua principal arma, uma metralhadora "Maxim", durante a travessia de um rio. O prĂ³prio JoĂ£o Gualberto teria matado o monge, reconhecendo-o por um bonĂ© de pele de onça. O militar foi retalhado a facĂ£o pelos rebeldes.
Gualberto virou um novo Moreira CĂ©sar - oficial morto pelos conselheiristas de Canudos. A morte de Gualberto deixou em pĂ¢nico autoridades de Curitiba, FlorianĂ³polis e Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a notĂcia da morte de JosĂ© Maria, no mesmo combate, correu pelos campos de araucĂ¡ria juntamente com a ideia de que o religioso ressuscitaria. Surgiam as "cidades santas", comandadas por "virgens" de 14 e 15 anos, que repassavam para os homens as "instruções" recebidas em visões do monge. A primeira delas foi Taquaruçu, organizada por um pequeno comerciante, EusĂ©bio Ferreira dos Santos. Uma neta dele, Teodora, dizia conversar todas as tardes com o monge JosĂ© Maria.
Aos poucos, o movimento exclusivamente religioso ganhou contornos de guerrilha. Era a luta dos pelados (caboclos) contra os peludos (militares). Os facões de guamirim, madeira dura encontrada na regiĂ£o, esculpidos no fogo eram substituĂdos por armas de aço tomadas de fazendeiros, soldados e oficiais em combates na Serra da Esperança, no oeste catarinense. Winchesters, revĂ³lveres e espadas usadas na RevoluĂ§Ă£o Farroupilha (1835-1840), na proclamaĂ§Ă£o da RepĂºblica Juliana (1839) e na RevoluĂ§Ă£o Federalista (1893-1895) voltavam a ser usadas em batalhas. As prĂ¡ticas da degola, do fuzilamento de prisioneiros e das mutilações de orelhas, assombrações das velhas guerras gaĂºchas, tambĂ©m foram reutilizadas.
A 12 de setembro de 1914, Setembrino de Carvalho assumiu o comando da 11ª RegiĂ£o Militar, com sede em Curitiba. Ele tinha por missĂ£o chefiar a operaĂ§Ă£o de massacre dos caboclos. Este caderno descreve a campanha de Setembrino. Entre o final de dezembro de 1914 e começo de abril de 1915, o Contestado viveu o auge da guerra. Dos 18 mil homens do ExĂ©rcito, sete mil estavam na regiĂ£o. A estimativa de dez mil mortos, levantada desde o fim do conflito, nĂ£o foi derrubada por novos estudos publicados. É praticamente o dobro de mortes registradas na Guerra de Canudos, na Bahia, em 1897.
Pesquisa. O Estado consultou 13 caixas de documentos militares produzidos durante a Guerra do Contestado. Mais de dois mil papĂ©is, fontes de livros produzidos sobre o episĂ³dio nos anos 1960 e 2000, e 87 fotografias foram reproduzidos e estĂ£o, agora, Ă disposiĂ§Ă£o dos leitores e pesquisadores no portal estadĂ£o.com.br.
Documentos como a lista dos prisioneiros e de guias civis do ExĂ©rcito vĂªm a pĂºblico na Ăntegra pela primeira vez. TambĂ©m foram consultadas coleções de periĂ³dicos da Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro, e processos de terras dos cartĂ³rios de registros de Lebon RĂ©gis e Porto UniĂ£o, em Santa Catarina. As referĂªncias deste trabalho sĂ£o os livros "Lideranças do Contestado", de Paulo Pinheiro Machado, "Messianismo e Conflito Social", de MaurĂcio Vinhas de Queiroz, "Contestado, a Guerra Cabocla", de Aureliano Pinto de Moura, e "Guerra do Contestado: A OrganizaĂ§Ă£o da Irmandade Cabocla", de Marli Auras.
Foi a partir da anĂ¡lise do acervo militar, em especial do olhar das crianças prisioneiras retratadas em antigas fotografias, que a equipe do jornal percorreu cidades e povoados de Santa Catarina e do ParanĂ¡, num total de 8,5 mil quilĂ´metros de estradas, para colher a versĂ£o do "outro lado" da histĂ³ria e conhecer o legado deixado pelo conflito. Remanescentes da revolta e descendentes de caboclos que lutaram contra os militares dĂ£o sua versĂ£o ou apresentam o imaginĂ¡rio popular dos fatos descritos em documentos militares. Eles falam tambĂ©m da vida atual. As impressões sobre a realidade do Contestado e a coleta de histĂ³rias orais foram obtidas em cem dias de observaĂ§Ă£o e acompanhamento do dia-a-dia dos moradores e na anĂ¡lise das ações e repasses de verbas do governo para as cidades da regiĂ£o.
Os depoimentos dos primeiros prisioneiros de Santa Maria destacam a difĂcil situaĂ§Ă£o dos moradores do reduto, que enfrentam a tifo e a falta de comida. "Tem morrido muita gente de doença e muito pouco de bala", relatou o prisioneiro Jorge Pires do Prado, sem descriĂ§Ă£o de idade, a 3 de abril.
Outro prisioneiro, JosĂ© Ribeiro da Costa, de "cinquenta e poucos anos", fala que os rebeldes estavam se alimentando de couro cozido. "As famĂlias tĂªm muitas que nĂ£o saem do reducto porque nĂ£o deixam, que essas famĂlias jĂ¡ se alimentam de couro cosido", relata. Ele ressalta que um dos comandantes rebeldes, Joaquim, e seus homens "estĂ£o dispostos a morrerem antes que se entreguem". "Hoje, o plano do Joaquim Ă© nĂ£o atacar as forças federais e por isso, ele jĂ¡ pela aĂ§Ă§Ă£o da artilharia, retirou-se com seus homens para o pĂ© da serra, dentro do mato, e estĂ¡ esperando que as forças entrem no reducto para ataca-la pela retaguarda." O prisioneiro relata o suposto uso de crianças pelos rebeldes. "A criançada tem incumbĂªncia de fazer gritaria, que a muniĂ§Ă£o Ă© pouca e, alĂ©m disso, jĂ¡ os homens estĂ£o enfraquecidos pela fome", afirma.
Labirinto. Para localizar os "meninos" do Contestado, a equipe recorreu a cinco rĂ¡dios da regiĂ£o, sistemas de som de postes, blogs comunitĂ¡rios, pequenos jornais, comunidades religiosas e cartĂ³rios de registros civis. Foi nos cartĂ³rios tambĂ©m que estavam guardados documentos de terra e processos contra lĂderes rebeldes para complementar as informações colhidas no acervo do ExĂ©rcito.
ExĂ©rcito conclui extermĂnio dos 'defensores' da monarquia
Os lĂderes do movimento do Contestado defendiam uma monarquia que nĂ£o necessariamente era um regime de governo. Na visĂ£o dos rebeldes caboclos, a monarquia tinha elementos subjetivos e religiosos, observam pesquisadores. Mais que monarquistas, eles eram homens e mulheres descontentes com um novo regime, a RepĂºblica, que chegava Ă regiĂ£o ao mesmo tempo em que uma grande companhia estrangeira tomava suas terras, coronĂ©is aumentavam seus poderes regionais e nĂ£o era mais possĂvel sobreviver com roças de subsistĂªncia.
Veja tambĂ©m: ESPECIAL: Saiba tudo sobre o centenĂ¡rio da Guerra do Contestado FOTOS: Veja galerias de fotos TV ESTADĂƒO: Assista ao documentĂ¡rio sobre os 100 anos de Guerra
Os depoimentos dos prisioneiros destacam que a "monarquia" cabocla estava ligada Ă religiĂ£o. O prisioneiro Innocencio Manoel de Mattos, 43 anos, que prestava serviço de guarda num acampamento de 250 "fanĂ¡ticos", na Serra dos Pinheirais, liderado pro InĂ¡cio de Lima, relatou: "O ideal daquele povo sĂ£o a restauraĂ§Ă£o da monarchia e a transformaĂ§Ă£o da religiĂ£o, sendo isto o assunto do dia entre elles, mesmo quando executavam as suas manobras gritando vivas Ă monarchia e diversos santos, vivando tambĂ©m o nome de JoĂ£o Maria."
Um imigrante estrangeiro feito prisioneiro - situaĂ§Ă£o rara - destaca em seu depoimento que os rebeldes do reduto da ColĂ´nia Vieira pretendiam brigar atĂ© o Rio de Janeiro para instaurar a monarquia. O agricultor Pedro Zalcalugeme, que diz apenas ter nascido na Europa, ressaltou a disposiĂ§Ă£o dos caboclos. "Que querem elles? Dizem que monarchia. EstĂ£o convencidos que ela virĂ¡. Elles brigarĂ£o atĂ© o rio de Canoinhas, enquanto no Rio de Janeiro, se revoltarĂ£o, obrigando as forças a irem para lĂ¡. Por isso elles fazem questĂ£o de tomar Canoinhas e Papanduva, pois sĂ³ quando chegarem nesses dois pontos, repontarĂ¡ a revoluĂ§Ă£o no Rio. Quem os convence de tal? NĂ£o sei."
Zalgalugeme tambĂ©m comentou o problema da falta de alimentos e remĂ©dios. "Como passam e como se alimentam os moradores da ColĂ´nia Vieira? LĂ¡ hĂ¡ muita doença. NĂ£o hĂ¡ dia que eles nĂ£o venham buscar remĂ©dio com Stanislau que jĂ¡ os nĂ£o possue para o caso das doenças delles. Alguns, com os quaes falei, afirmam que a mortandade lĂ¡ Ă© medonha, pois, Ă© raro o dia em que nĂ£o haja mortes, tendo Ă©pocas de perderem 7 ou 8 diariamente."
Os rebeldes estavam em farrapos. "Relactivamente Ă roupa - estĂ£o quase nus, as ultimas que arranjaram foi de um negociante que mataram em Papanduva, na vez que tomaram esse lugar. Quanto Ă alimentaĂ§Ă£o, acham-se na misĂ©ria, sendo canjica seu Ăºnico alimento", ressalta. "Desde quando estĂ£o faltando recursos para a ColĂ´nia Vieira? Faz dois meses, nem tanto, que elles nada recebem, pois quem lhes fornecia tudo era aquele armazĂ©m que a estrada de ferro tinha no TimbĂ³ e do qual jĂ¡ fallei. Dizem que um tal coronel FabrĂcio, foi quem atacou o armazĂ©m e "esculhambou com elle"."
LĂderes da repressĂ£o foram 'lavar roupa suja' em pĂºblico
ApĂ³s a guerra, o general gaĂºcho Setembrino de Carvalho (1867-1947) voltou prestigiado para a capital federal. Os rumores de que tinha superfaturado preços de rações e munições se restringiam Ă caserna. Ele foi nomeado ministro da Guerra pelo presidente Artur Bernardes (1922-1926), um dos governos mais criticados por violações de direitos humanos da RepĂºblica, por fuzilamentos de presos polĂticos e bombardeios de Ă¡reas civis.
O coronel cearense Tertuliano de Albuquerque Potyguara (1873-1957) tentou levar adiante a imagem de oficial destemido e brilhante. Em 1918, embarcou para a Europa, onde se juntou ao 70º BatalhĂ£o de Caçadores do ExĂ©rcito FrancĂªs, que atuou Primeira Guerra Mundial. Foi ferido em combate. Na crise militar de 1922, num acalorado debate no Clube Militar, chamou de "cretino" o tenente Gwyer de Azevedo, adversĂ¡rio de seu grupo na instituiĂ§Ă£o. Azevedo rebateu: "Cretino Ă© Vossa ExcelĂªncia. NĂ£o estamos no Contestado, onde Vossa ExcelĂªncia mandava fuzilar a torto e a direita".
Potyguara sempre esteve ao lado do governo, ajudando a reprimir os movimentos revoltosos dos 18 do Forte e do movimento de 1924 em SĂ£o Paulo. Nesse ano, no Rio, perdeu um braço ao abrir uma correspondĂªncia com explosivo, enviada por um militar desafeto. Mesmo com apenas um braço, atuou na repressĂ£o aos paulistas que voltaram a pegar em armas contra o governo federal, em 1932. Potyguara chegou a general do ExĂ©rcito e foi eleito deputado federal pelo CearĂ¡, mas nĂ£o foi longe na vida pĂºblica e em cargos militares. Morreu em 1957, aos 84 anos.
O general Francisco Raul d´Estillac Leal passou o resto de seus dias tentando justificar o motivo de nĂ£o dar apoio ao "destemido" capitĂ£o Potyguara e nĂ£o obter sucesso na tomada de Santa Maria. Era criticado por jogar a culpa nos subordinados. Um de seus filhos, Newton Estillac Leal, foi ministro da Guerra nos anos de 1951 e 1952 do governo constitucionalista de GetĂºlio Vargas. Caiu apĂ³s uma forte campanha de setores da imprensa que o acusavam de acolher comunistas em seu gabinete e ser uma das vozes decisivas para Vargas nĂ£o mandar tropas para a Guerra da CorĂ©ia. Ao aceitar a demissĂ£o de Estillac Leal, Vargas admitia seu enfraquecimento e dava inĂcio ao processo de sua prĂ³pria queda, em 1954.
EmpresĂ¡rio norte-americano ficou milionĂ¡rio construindo ferrovias fantasmas
Ele conseguia fechar contratos com o governo por meio de uma rede de advogados e lobistas que incluĂa nomes de "vultos" da histĂ³ria, como Rui Barbosa. No ParanĂ¡ e Santa Catarina, Estados por onde passava os trilhos da ferrovia que foi o estopim da guerra do Contestado, Farquhar contratou advogados com poder polĂtico, como o vice-governador do ParanĂ¡, Affonso Camargo.
O contrato de concessĂ£o da ferrovia SĂ£o Paulo-Rio Grande do Sul previa que o governo pagaria a Farquhar por quilĂ´metro construĂdo. O empresĂ¡rio, entĂ£o, teria excedido nas curvas, evitando a construĂ§Ă£o de pontes e tĂºneis. ApĂ³s a conclusĂ£o da ferrovia, Farquhar ergueu em TrĂªs Barras e Calmon, cidades hoje pertencentes Ă Santa Catarina, um complexo madeireiro onde trabalhavam cerca de mil funcionĂ¡rios. Ele conseguiu do governo o direito de explorar as madeiras nos 15 quilĂ´metros de cada margem da ferrovia. No alojamento de TrĂªs Barras, ele instalou um cinema com o Ăºnico projeto de filmes do Sul do Brasil. Uma milĂcia monitorava os trabalhadores e recebia a tiros caboclos que ameaçavam destruir as instalações da madeireira.
Especulador nato do mercado financeiro, Farquhar começou a falir ainda em 1913, quando os combates entre militares e caboclos ainda nĂ£o vivia seu auge. O complexo madeireiro foi Ă bancarrota em 1917, um ano depois do fim da guerra. O "monstro" criado no Contestado pelo empresĂ¡rio norte-americano se arrastou atĂ© os anos 1940, quando foi estatizado pelo presidente GetĂºlio Vargas. Farquhar morreu em 1953, aos 89 anos.
Fraudes atĂ© os anos 1940. Centenas de contratos de terras dos cartĂ³rios de Lebon RĂ©gis e Caçador, analisados pelo Estado, revelam que a madeireira Lumber fraudou processos de terras atĂ© os anos 1940, quando jĂ¡ tinha sido estatizada pelo governo Vargas. Os caboclos eram convencidos ou forçados por procuradores da empresa a passar para a Lumber a responsabilidade de legalizar no nome deles as posses de terras junto ao governo de Santa Catarina. Em troca, os caboclos passavam para a empresa o direito de explorar, por dez anos, as Ă¡rvores das glebas. No papel, os caboclos ficavam com a terra legalizada, mas tinham de ir embora para a entrada dos homens da companhia.
Um dos contratos analisados, de 17 de abril de 1942, foi firmado entre a Lumber e dois casais de agricultores, OlĂmpia e Augusto de Souza e Maria Ribeiro e Augustinho Borges, de Lebon RĂ©gis, entĂ£o distrito de Curitibanos. A Lumber foi representado por JoĂ£o Pacheco Sobrinho. Como pagamento pelo "serviço" de legalizaĂ§Ă£o, os colonos passavam para a companhia o direito de exploraĂ§Ă£o das posses por ocupaĂ§Ă£o primĂ¡ria de terras de domĂnio do Estado de Santa Catarina. Assim, a empresa poderia explorar "na gleba titulada, todas as Ă¡rvores de pinho, imbuia e cedro, com as descrições assinaladas e ao preço estipulado, na escritura". "As Ă¡rvores a que se refere a clĂ¡usula fixada ficam pertencendo em plena propriedade e irrevogavelmente Ă outorgada, para os fins de sua exploraĂ§Ă£o industrial."
Em outro processo, do cartĂ³rio de Lebon RĂ©gis, de 20 de abril de 1942, a Lumber estipula o tamanho das Ă¡rvores que poderiam ser extraĂdas das glebas legalizadas. Nesse contrato firmado com os posseiros VergĂlio Mariano, Manoel Ferreira de Jesus, Ibraim Cardoso dos Santos e JoĂ£o Raimundo de Almeida, a companhia estabelece que as Ă¡rvores deveriam ter uma altura mĂnima de um metro acima do solo e 15 polegadas inglesas de largura. O contrato garante, porĂ©m, que a companhia poderia explorar toda espĂ©cie "suscetĂvel de aproveitamento industrial" a seu "juĂzo".
Mais:
Linha de trem chega ao Contestado, expulsa caboclos e dĂ¡ inĂcio a uma guerra
O PaĂs no tempo do Contestado
Para militares, jagunços nĂ£o eram revolucionĂ¡rios e sim bandidos
'O pessoal ouvia de longe as cornetas', diz agricultora Rio Negro, uma cidade dividida
Antes da chegada do general Setembrino, rebeldes obtiveram algumas vitĂ³rias
Esquecida, regiĂ£o ainda vive em clima de misĂ©ria Contestado, a regiĂ£o Nordeste de Santa Catarina
Para os militares fanatismo, para rebeldes a salvaĂ§Ă£o
O caso do mĂ¡gico com a virgem
'Jagunços eram os pistoleiros da Lumber', diz radialista
Exército recorre aos 'vaqueanos' para terceirizar a batalha
Primeiro aviador de guerra brasileiro morre antes do ataque final
DocumentĂ¡rio: