Vindo de S. Paulo chegando a Curitiba em final de Agosto
de 1978 ao desembarcar na rodoviĂ¡ria de pronto tive de enfrentar uma garoa
fria. Com pouco dinheiro no bolso nĂ£o tinha condições de pagar um taxi. Pedi
informações sobre o caminho para chegar ao Passeio PĂºblico, ponto de referĂªncia
que me deram para chegar a CEU, que soberana reinava encravada no meio da maior
Ă¡rea verde central. Era 5;30 da manhĂ£, enfrentando a intempĂ©rie comecei o que
era para ser uma curta caminhada, haviam me dito que nĂ£o passava de dez
quadras, “logo ali”. Depois de caminhar poucas centenas de metros a minha roupa
jĂ¡ estava encharcada e a cada passo a mochila pesava cada vez mais. A garoa
fria penetrava na alma, tremia de frio.
Ao avistar o Passeio PĂºblico depois da “longa” caminhada
pela Mariano Torres a alegria tomou conta de mim pela certeza de que estava
perto do destino. Sonhava acordado com uma bela xĂcara de cafĂ© quente. Pegando
a rua Luis LeĂ£o contornei o parque, sendo que neste trajeto menor fui
assombrado pelos terrĂveis gritos e fortes pancadas nas grades dadas por algum
bicho enclausurado naquele recinto pĂºblico. Pensei com os meus botões: SerĂ¡ que
ele estĂ¡ tĂ£o irritado com este clima como eu estou? Clima filha da puta, que
fazia a garoa paulistana virar coisa pequena!
No fim da pequena curva lĂ¡ estava a imponente CEU. Tinha
dois contatos na Casa, o meu primo Pedro e o meu amigo BatistĂ£o, velho amigo da
infĂ¢ncia e adolescĂªncia na minha querida TupĂ£. Dirigi-me a portaria e fui muito
bem atendido pelo porteiro “Gabriela”, apelido estranho pelo qual um morador ao
qual ele atendia antes de mim o chamou, e perguntei sobre os dois. Era muito
cedo e eles ainda estavam dormindo, era um domingo, achei uma sacanagem os
acordar. Com a autorizaĂ§Ă£o do porteiro fui ao banheiro ao lado da portaria e
vesti uma roupa seca, quente. Voltando a portaria perguntei sobre como poderia
tomar um cafĂ© e ele me encaminhou para o refeitĂ³rio. Tomei uma generosa xĂcara
de cafĂ© com leite e comi dois pĂ£es com geleia e margarina, na situaĂ§Ă£o que
estava foi um verdadeiro banquete.
Voltando portaria lĂ¡ estava outro porteiro, se nĂ£o me
engano era o Sabugaro. Perguntando a ele como poderia arrumar um canto para
descansar ele me encaminhou a “sala dos outros”, um enorme quarto repleto de
beliches. O local fedia a mofo, o que de cara atacou a minha renite. Resolvi
esperar acordado na sala de recepĂ§Ă£o, desisti da ideia de dormir um pouco.
Acabei cochilando sentado em uma das poltronas, ao despertar jĂ¡ passava das
dez. Acordei com uma tremenda dor no pescoço. A Casa jĂ¡ estava toda agitada,
cheia de vida. Levantei e fui ao banheiro tirar o gosto de cabo de guarda chuva
da boca e me dirigi novamente Ă portaria. O Batista havia saĂdo e o meu primo
Pedro ainda estava no quarto, para lĂ¡ me dirigi e fui carinhosamente muito bem
recebido por ele. Conversamos até a hora do almoço e descemos para almoçar. No
refeitĂ³rio me senti em um “internato anĂ¡rquico”, o enorme salĂ£o estava lotado e
o ruĂdo era ensurdecedor, um borburinho de risadas e vozes desencontradas,
misturados com o som metĂ¡lico dos garfos se chocando com as bandejas.
Elogiei a comida e os da mesa disseram que nĂ£o era para
me acostumar, pois durante a semana nĂ£o era assim. A CEU passava por uma sĂ©ria
crise causada pela mĂ¡ gestĂ£o dos recursos. A diretoria anterior havia
desperdiçado muito dinheiro fazendo banquetes em homenagem aos polĂticos
ligados Ă ditadura.
Logo que em 1978 cheguei a Curitiba, tendo como
referencial a CEU, o MDB e a OposiĂ§Ă£o BancĂ¡ria, ao entrar em contato com a
realidade para aqui poder me reorganizar jĂ¡ me engajei politicamente. AtravĂ©s
destes amigos pude saber que existia um foco de oposiĂ§Ă£o começando a se
reorganizar, e que este organizava uma panfletagem pela libertaĂ§Ă£o da FlĂ¡via
Schilling, brasileira presa polĂtica no Uruguai. Ocorreu um panfletagem no
campo do Coxa, era dia de Atletiba. Todo mundo muito tenso no executar da aĂ§Ă£o,
aqui também a ditadura imperava. Do grupo participavam alguns ex-presos
polĂticos, sindicalistas de oposiĂ§Ă£o e vĂ¡rios estudantes, entre eles alguns
moradores da CEU.
Anteriormente os professores estaduais havia tentando uma
paralisaĂ§Ă£o grevista em 1977 e os estudantes da Federal haviam feito um
protesto ocupando o prédio da Reitoria, fato também ocorrido em 1978, onde
foram duramente reprimidos. A oposiĂ§Ă£o Ă ditadura retomava os espaços nas ruas,
e nela a CEU, junto com os demais segmentos democrĂ¡ticos, começava a se
reengajar de forma mais massiva e neste Movimento fez a diferença.
Em 1979 vĂ¡rios ceuenses tinham forte presença no
Movimento Cultural em Curitiba. Na Casa existiam muitos artistas amadores
experimentais vanguardistas (poetas, cronistas, cineastas e cinéfilos, etc.),
sendo que estes participavam ativamente das atividades que ocorriam na Casa
RomĂ¡rio Martins, local onde o cinema arte resistiu com apoio institucional,
coisa rara naquele triste perĂodo de escuridĂ£o.
1979 foi um ano crucial para a vida em sociedade em nossa
capital, e no desenrolar deste os ceuenses ocuparam um grande espaço na luta
pelo retorno do Estado de Direito. Tanto na UFPR como na CatĂ³lica os estudantes
partiam para a reorganizaĂ§Ă£o das suas entidades de base e a CEU era parte
importante nesse processo. No meio do ano o Teatro GuaĂra acabou com a meia
entrada para os estudantes e da CEU serviu como base (reuniões secretas nos
quartos, pinturas das faixas, etc.) para a organizaĂ§Ă£o da “ManifestaĂ§Ă£o Teatro
para o Povo”, ato que reuniu perto de 1.000 pessoas, coisa rara para a Ă©poca e
ainda mais para a conservadora Curitiba. Ocorreu forte repressĂ£o policial com o
uso de cassetetes e gĂ¡s contra os manifestantes.
Com a uniĂ£o de vĂ¡rios segmentos sociais surge em Curitiba
o CBA (ComitĂª Brasileiro pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita), dele os
ceuenses tambĂ©m participaram (reuniões, atos pĂºblicos, panfletagens, colagem de
cartazes, pixações, etc.), como participaram do ComitĂª de Solidariedade aos
Trabalhadores em Greve. As greve pipocavam, sendo as maiores as que envolveram
os professores e os trabalhadores da construĂ§Ă£o civil. Nesta Ăºltima os ceuenses
deram grande contribuiĂ§Ă£o na central de distribuiĂ§Ă£o de alimentos, que
funcionou na Igreja do Guadalupe.
Este ano, 1979, também foi vital para o Movimento Estudantil, a
UNE Ă© reconstruĂda no Congresso que aconteceu em Salvador/Bahia. Os ceuenses
participaram ativamente do processo de escolha dos delegados, sendo que entre
estes vĂ¡rios eram moradores da CEU.
Continua ....