Comecemos pelo filme, que se baseia em fatos histĂ³ricos. Na dĂ©cada de 1980, o MinistĂ©rio da EducaĂ§Ă£o da Alemanha realiza um concurso de redaĂ§Ă£o escolar, de Ă¢mbito nacional, cujo tema Ă© "Minha cidade natal na Ă©poca do III Reich". Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles a jovem SĂ´nia Rosenberger, que busca reconstituir a histĂ³ria de sua cidade, Pfilzing – como Ă© denominada no filme – considerada atĂ© entĂ£o baluarte da resistĂªncia antinazista.
Mas a estudante encontra oposiĂ§Ă£o. As instituições locais de memĂ³ria – o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e atĂ© mesmo o jornal Pfilzinger Morgen – fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. NinguĂ©m quer que uma "judia e comunista" futuque o passado. SĂ´nia, porĂ©m, nĂ£o desiste. Corre atrĂ¡s. Busca os documentos orais. Entrevista pessoas prĂ³ximas, familiares, vizinhos, que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, sĂ£o fragmentadas, descosturadas, nĂ£o passam de fiapos sem sentido.
A jovem pesquisadora procura, entĂ£o, as autoridades locais, que se recusam a falar e ainda consideram sua insistĂªncia como uma ameaça Ă manutenĂ§Ă£o da memĂ³ria oficial, que Ă© a garantia da ordem vigente. Por nĂ£o ter acesso aos documentos, SĂ´nia perde os prazos do concurso. Desconfiada, porĂ©m, de que debaixo daquele angu tinha caroço – perdĂ£o, de que sob aquele chucrute havia salsicha – resolve continuar pesquisando por conta prĂ³pria, mesmo depois de formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns anos.
Hostilizada pelo poder civil e religioso, SĂ´nia recorre ao JudiciĂ¡rio e entra com uma aĂ§Ă£o na qual reivindica o direito Ă informaĂ§Ă£o. Ganha o processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aĂ, no meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões da cortina de silĂªncio: sua cidade, longe de ter sido um bastiĂ£o da resistĂªncia ao nazismo, havia sediado um campo de concentraĂ§Ă£o. LĂ¡, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a omissĂ£o de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memĂ³ria, forjando um passado que nunca existiu.
Os documentos registraram inclusive a prisĂ£o de um judeu, denunciado na Ă©poca por dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivĂssimos, tentando impedir o acesso de SĂ´nia aos registros. No entanto, o mais doloroso, era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cĂºmplices da opressĂ£o, posavam, hoje, como herĂ³is da resistĂªncia e parceiros da liberdade. Quanto escĂ¡rnio! Os safados haviam invertido os papĂ©is. Por isso, ocultavam os documentos.
Deus tĂ¡ vendo
E Ă© aqui que entra a forma como a mĂdia cobriu a morte do cardeal dom EugĂªnio Sales, que comandou a Arquidiocese do Rio, com mĂ£o forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse perĂodo? O Brasil jĂ¡ elegeu trĂªs presidentes que foram reprimidos pela ditadura, mas atĂ© hoje, nĂ£o temos acesso aos principais documentos da repressĂ£o.
Se a ComissĂ£o Nacional da Verdade, instalada em maio Ăºltimo pela presidente Dilma Rousseff, pudesse criar, no campo da memĂ³ria, algo similar Ă operaĂ§Ă£o "Deus tĂ¡ vendo", organizada pela Policia Civil do Rio Grande do Sul, talvez encontrĂ¡ssemos a resposta. Na tal operaĂ§Ă£o, a PolĂcia prendeu na Ăºltima quinta-feira quatro pastores evangĂ©licos envolvidos em golpes na venda de automĂ³veis. Seria o caso de perguntar: o que foi que Deus viu na Ă©poca da ditadura militar?
Tem coisas que atĂ© Ele duvida. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetĂ³ria do cardeal EugĂªnio Sales, na qualidade de repĂ³rter da ASAPRESS, uma agĂªncia nacional de notĂcias arrendada pela CNBB em 1967. TambĂ©m, cobri reuniões e assembleias da ConferĂªncia dos Bispos para os jornais do Rio – O Sol, O Paiz e Correio da ManhĂ£, quando dom EugĂªnio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a partir desse lugar que posso dar um modesto testemunho. Os bispos que lutavam contra as arbitrariedades eram Helder CĂ¢mara, Waldir Calheiros, CĂ¢ndido Padin, Paulo Evaristo Arns e alguns outros mais que foram vigiados e perseguidos. Mas nĂ£o dom EugĂªnio, que jogava no time contrĂ¡rio. Um dos auxiliares de dom Helder, o padre Henrique, foi torturado atĂ© a morte em 1969, num crime que continua atravessado na garganta de todos nĂ³s e que esperamos seja esclarecido pela ComissĂ£o da Verdade. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que escutĂ¡ssemos um pio de protesto de dom EugĂªnio, contrĂ¡rio Ă teologia da libertaĂ§Ă£o e ao envolvimento da Igreja com os pobres.
O cardeal Eugenio Sales era um homem do poder, que amava a pompa e o rapapĂ©, muito atuante no campo polĂtico. Foi ele um dos inspiradores das "candocas" – como Stanislaw Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia. As "candocas" desenvolveram trabalhos sociais nas favelas exclusivamente com o objetivo de mobilizar setores pobres para seus objetivos golpistas. Foram elas, as "candocas", que organizaram manifestações de rua contra o governo democraticamente eleito de JoĂ£o Goulart, incluindo a famigerada "Marcha da famĂlia com Deus pela liberdade", que apoiou o golpe militar, com financiamento de multinacionais, o que foi muito bem documentado pelo cientista polĂtico RenĂ© Dreifuss, em seu livro "1964: A Conquista do Estado" (Vozes, 1981). Ele teve acesso ao Caixa 2 do IPES/IBAD.
NĂ³s, toda a torcida do Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabĂamos que dom EugĂªnio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se nĂ£o sofro de amnĂ©sia – e nĂ£o sofro de amnĂ©sia ou de qualquer doença neurodegenerativa – posso garantir que na Ă©poca ele nem disfarçava, ao contrĂ¡rio manifestava publicamente orgulho do livre trĂ¢nsito que tinha entre os militares e os poderosos.
"Quem tem dĂºvidas…basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n'O Globo" – escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e avaliou assim a opĂ§Ă£o preferencial do cardeal:
"A Igreja CatĂ³lica, no Rio, sob a Ă©gide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder. Isso nĂ£o poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de catĂ³licos no paĂs: 45,8%…"
Portões do Sumaré
Por isso, a jornalista estranhou – e nĂ³s tambĂ©m – a forma como o cardeal Eugenio Sales foi retratado no velĂ³rio pelas autoridades. Ele foi apresentado como um combatente contra a ditadura, que abriu os portões da residĂªncia episcopal para abrigar os perseguidos polĂticos. O prefeito Eduardo Paes, em campanha eleitoral, declarou que o cardeal "defendeu a liberdade e os direitos individuais". O governador SĂ©rgio Cabral e atĂ© o presidente do Senado, JosĂ© Sarney, insistiram no mesmo tema, apresentando dom EugĂªnio como o campeĂ£o "do respeito Ă s pessoas e aos direitos humanos".
NĂ£o foram sĂ³ os polĂticos. O jornalista e acadĂªmico Luiz Paulo Horta escreveu que dom EugĂªnio chegou a abrigar no Rio "uma quantidade enorme de asilados polĂticos", calculada, por baixo, numa estimativa do Globo, em "mais de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da AmĂ©rica do Sul". Outro jornalista, JosĂ© Casado, elevou o nĂºmero para cinco mil. Ou seja, o cardeal era um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por baixo dos panos, na clandestinidade, ajudava quem lutava contra. SĂ³ faltou arranjarem um codinome para ele, denominado pelo papa Bento XVI como "o intrĂ©pido pastor".
Seria possĂvel acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vĂtimas. Bastaria 50 perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se solidarizou. No entanto, o jornal nĂ£o dĂ¡ o nome de uma sĂ³ – umazinha – dessas cinco mil pessoas. Enquanto isto nĂ£o acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard Angel, cujo irmĂ£o Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de InteligĂªncia da AeronĂ¡utica. Sua mĂ£e, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palĂ¡cio episcopal.
Segundo Hilde, dom EugĂªnio "fechou os olhos Ă s maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do SumarĂ© aos familiares dos jovens ditos "subversivos" que lĂ¡ iam levar suas sĂºplicas, como fez com minha mĂ£e Zuzu Angel (e isso estĂ¡ documentado)". Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar "que ocorreu justo o contrĂ¡rio!", como no filme "Uma cidade sem passado".
Mas nĂ£o Ă© tĂ£o surpreendente assim. O texto de Hildegard menciona a grande habilidade, em vida, de dom Eugenio, em "manter Ă³timas relações com os grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos". As azeitadas relações com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em postos-chave continuaram depois da morte, como Ă© possĂvel constatar com a cobertura do velĂ³rio. A defesa de dom EugĂªnio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mĂdia e do poder.
Os jornais elogiaram, como uma virtude e uma delicadeza, o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada vez que ia a Roma levava mamĂ£o-papaia para o papa JoĂ£o Paulo II, com o mesmo zelo e unĂ§Ă£o com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumĂ£ jĂ¡ descascado para o cafĂ© da manhĂ£ do entĂ£o governador Amazonino Mendes. SĂ£o os rituais do poder com seus rapapĂ©s.
"Dentro de uma sociedade, assim como os discursos, as memĂ³rias sĂ£o controladas e negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que nĂ£o possam ser confundidas com a "verdade", as memĂ³rias tĂªm valor social de "verdade" e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem "a verdade" – escreve Teun A. van Dijk, doutor pela Universidade de AmsterdĂ£.
A "verdade" construĂda pela mĂdia foi capaz de fotografar atĂ© "a presença do EspĂrito Santo" no funeral. Um voluntĂ¡rio da Cruz Vermelha, Gilberto de Almeida, 59 anos, corretor de imĂ³veis, no caminho ao velĂ³rio de dom EugĂªnio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25 e a soltou dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixĂ£o: "Foi um sinal de Deus, Ă© a presença do EspĂrito Santo" – berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memĂ³ria, atĂ© mesmo estabelecer preço tĂ£o baixo para uma das pessoas da SantĂssima Trindade. É muita falta de respeito com a fĂ© das pessoas.
"A mĂdia deve ser pensada nĂ£o como um lugar neutro de observaĂ§Ă£o, mas como um agente produtor de imagens, representações e memĂ³ria" nos diz o citado pesquisador holandĂªs, que estudou o tratamento racista dispensado Ă s minorias Ă©tnicas pela imprensa europeia. Para ele, os modos de produĂ§Ă£o e os meios de produĂ§Ă£o de uma imagem social sobre o passado sĂ£o usados no campo da disputa polĂtica.
Nessa disputa, a mĂdia nos forçou a fazer os comentĂ¡rios que vocĂª acaba de ler, o que pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor para os amigos do cardeal. Mas se a gente nĂ£o falar agora, quando entĂ£o? Stuart Angel e os que combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de parecer indelicado. É preciso dizer, em respeito Ă memĂ³ria deles, que Dom EugĂªnio tinha suas virtudes, mas uma delas nĂ£o foi, certamente, a solidariedade aos perseguidos polĂticos para quem os portões do SumarĂ©, atĂ© prova em contrĂ¡rio, permaneceram fechados. Que ele descanse em paz!
P.S: O jornalista amazonense FĂ¡bio Alencar foi quem me repassou o texto de Hildegard Angel, que circulou nas redes sociais. O doutor Geraldo SĂ¡ Peixoto Pinheiro, historiador e professor da Universidade Federal do Amazonas, foi quem me indicou, hĂ¡ anos, o filme "Uma cidade sem passado". Quem me permitiu discutir o conceito de memĂ³ria foram minhas colegas doutoras JĂ´ Gondar e Vera Dodebei, organizadoras do livro "O que Ă© MemĂ³ria Social" (Rio de Janeiro: Contra Capa/ Programa de PĂ³s- GraduaĂ§Ă£o em MemĂ³ria Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005). Nenhum deles tem qualquer responsabilidade sobre os juĂzos por mim aqui emitidos.
JosĂ© Ribamar Bessa Freire e professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos IndĂgenas (UERJ) e pesquisa no Programa de PĂ³s-GraduaĂ§Ă£o em MemĂ³ria Social (UNIRIO)