sábado, 3 de novembro de 2012

Governo de São Paulo aceita ajuda federal para tentar conter violência


Os governos federal e de São Paulo vão atuar juntos para conter a onda de violência que atinge o estado. A parceria foi acertada na quinta-feira (1°) em um telefonema que a presidenta Dilma Rousseff fez ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, para oferecer ajuda.
Os termos da parceria serão definidos pelos dois governos em uma reunião marcada para o começo da próxima semana. O ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, será o enviado do governo federal ao encontro.
Com a morte de dois policiais no fim da noite de quarta-feira (31), subiu para 88 o número de policiais assassinados no estado de São Paulo este ano. O total de policias militares mortos de janeiro a outubro já é 57% maior do que em todo o ano passado, quando foram registradas 56 mortes.
O acordo ocorre depois da troca de acusações entre os dois governos sobre a situação da segurança pública em São Paulo. Na terça-feira (30), o Ministério da Justiça divulgou nota rebatendo acusações de que não teria oferecido ajuda ao governo estadual e reiterando a disposição de pactuar um plano de segurança pública integrado entre as esferas estadual e federal.
Para a presidenta, segundo a ministra da Secretaria de Comunicação, Helena Chagas, “o importante é ajudar a população”. (AB)

Entrevista com Marcola, líder do PCC


Você é do PCC?

- Mais que isso, eu sou um sinal de novos tempos. Eu era pobre e invisível... vocês nunca me olharam durante décadas... E antigamente era mole resolver o problema da miséria... O diagnóstico era óbvio: migração rural, desnível de renda, poucas favelas, ralas periferias... A solução que nunca vinha... Que fizeram? Nada. O governo federal alguma vez alocou uma verba para nós? Nós só aparecíamos nos desabamentos no morro ou nas músicas românticas sobre a "beleza dos morros ao amanhecer", essas coisas... Agora, estamos ricos com a multinacional do pó. E vocês estão morrendo de medo... Nós somos o início tardio de vossa consciência social... Viu? Sou culto... Leio Dante na prisão...

- Mas... A solução seria...
- Solução? Não há mais solução, cara... A própria idéia de "solução" já é um erro. Já olhou o tamanho das 560 favelas do Rio? Já andou de helicóptero por cima da periferia de São Paulo? Solução como? Só viria com muitos bilhões de dólares gastos organizadamente, com um governante de alto nível, uma imensa vontade política, crescimento econômico, revolução na educação, urbanização geral; e tudo teria de ser sob a batuta quase que de uma "tirania esclarecida", que pulasse por cima da paralisia burocrática secular, que passasse por cima do Legislativo cúmplice (Ou você acha que os 287 sanguessugas vão agir? Se bobear, vão roubar até o PCC...) e do Judiciário, que impede punições.
Teria de haver uma reforma radical do processo penal do país, teria de haver comunicação e inteligência entre polícias municipais, estaduais e federais (nós fazemos até Conference Calls entre presídios...) E tudo isso custaria bilhões de dólares e implicaria numa mudança psicossocial profunda na estrutura política do país. Ou seja: é impossível. Não há solução.
- Você não têm medo de morrer?
- Vocês é que têm medo de morrer, eu não. Aliás, aqui na cadeia vocês não podem entrar e me matar.. Mas eu posso mandar matar vocês lá fora... Nós somos homens-bomba. Na favela tem cem mil homens-bomba... Estamos no centro do Insolúvel, mesmo... Vocês no bem e eu no mal e, no
meio, a fronteira da morte, a única fronteira. Já somos uma outra espécie, já somos outros bichos, diferentes de vocês. A morte para vocês é um drama cristão numa cama, no ataque do coração... A morte para nós é o presunto diário, desovado numa vala... Vocês intelectuais não falavam em luta de classes, em "seja marginal, seja herói"? Pois é: chegamos, somos nós! Ha, ha... Vocês nunca esperavam esses guerreiros do pó, né? Eu sou inteligente. Eu leio, li 3.000 livros e leio Dante... Mas meus soldados todos são estranhas anomalias do desenvolvimento torto desse país. Não há mais proletários, ou infelizes ou explorados. Há uma terceira coisa crescendo aí fora, cultivado na lama, se educando no absoluto analfabetismo, se diplomando nas cadeias, como um monstro Alien escondido nas brechas da cidade. Já surgiu uma nova linguagem. Vocês não ouvem as gravações feitas "com autorização da Justiça"? Pois é. É outra língua. Estamos diante de uma espécie de pós-miséria. Isso. A pós-miséria gera uma nova cultura assassina, ajudada pela tecnologia, satélites, celulares, Internet, armas modernas. É a merda com chips, com megabytes. Meus comandados são uma mutação da espécie social, são fungos de um grande erro sujo.
- O que mudou nas periferias?
- Grana. A gente hoje tem. Você acha que quem tem US$40 milhões como o Beira-Mar não manda? Com 40 milhões a prisão é um hotel, um escritório... Qual a polícia que vai queimar essa mina de ouro, tá ligado? Nós somos uma empresa moderna, rica. Se funcionário vacila, é despedido e jogado no "microondas"... Ha, ha... Vocês são o Estado quebrado, dominado por incompetentes. Nós temos métodos ágeis de gestão. Vocês são lentos e burocráticos. Nós lutamos em terreno próprio. Vocês, em terra estranha. Nós não tememos a morte. Vocês morrem de medo. Nós somos bem armados. Vocês vão de três-oitão. Nós estamos no ataque. Vocês, na defesa. Vocês têm mania de humanismo. Nós somos cruéis, sem piedade. Vocês nos transformam em superstars do crime. Nós fazemos vocês de palhaços. Nós somos ajudados pela população das favelas, por medo ou por amor. Vocês são odiados. Vocês são regionais, provincianos. Nossas armas e produto vêm de fora, somos globais. Nós não esquecemos de vocês, são nossos fregueses. Vocês nos esquecem assim que passa o surto de violência.
- Mas o que devemos fazer?
- Vou dar um toque, mesmo contra mim. Peguem os barões do pó! Tem deputado, senador, tem generais, tem até ex-presidentes do Paraguai nas paradas de cocaína e armas. Mas quem vai fazer isso? O Exército? Com que grana? Não tem dinheiro nem para o rancho dos recrutas... O país está quebrado, sustentando um Estado morto a juros de 20% ao ano, e o Lula ainda aumenta os gastos públicos, empregando 40 mil picaretas. O Exército vai lutar contra o PCC e o CV? Estou lendo o Klausewitz, "Sobre a guerra". Não há perspectiva de êxito... Nós somos formigas devoradoras, escondidas nas brechas... A gente já tem até foguete antitanques... Se bobear, vão rolar uns Stingers aí... Pra acabar com a gente, só jogando bomba atômica nas favelas... Aliás, a gente acaba arranjando também "umazinha", daquelas bombas sujas mesmo... Já pensou? Ipanema radioativa?
- Mas... não haveria solução?
- Vocês só podem chegar a algum sucesso se desistirem de defender a "normalidade". Não há mais normalidade alguma. Vocês precisam fazer uma autocrítica da própria incompetência. Mas vou ser franco... na boa... na moral... Estamos todos no centro do Insolúvel. Só que nós vivemos dele e vocês... não têm saída. Só a merda. E nós já trabalhamos dentro dela. Olha aqui, mano, não há solução. Sabem por quê? Porque vocês não entendem nem a extensão do problema. Como escreveu o divino Dante: *"Lasciate ogni speranza voi che entrate!" *Percam todas as esperanças. Estamos todos no inferno. (O Globo)

A arrogância de um dos dirigentes presos:

Olívio Dutra: “o PT está virando um partido de barganha como todos os outros”


Se a direção nacional e gaúcha do PT tem uma avaliação de que as eleições municipais de 2012 foram apenas positivas pelo aumento do número de prefeituras em relação ao último pleito, um quadro de força política relevante do partido discorda. O ex-governador do Rio Grande do Sul, Olívio Dutra disse em entrevista ao Sul21 que o processo eleitoral deve servir como lição sobre os rumos da identidade do PT.
“O PT tem mais se modificado do que modificado a sociedade. Este é um grande problema nosso. Estamos ficando iguais aos partidos tradicionais. Nós não nascemos para nos confirmarmos na institucionalidade e viver da barganha política”, critica. Para Olívio, a sigla que nasceu da luta dos trabalhadores e acumula tradição em formação política e diálogo com os movimentos sociais está se afastando de sua origem. “Não podemos ser o partido da conciliação de interesses. Temos que ser o partido da transformação social. Evidente que não sozinho, mas com alguns em que possamos apresentar projetos de campos populares democráticos”, diz.
A política de colaboração de classes adotada pela direção do Partido dos Trabalhadores a partir da eleição do Lula, em 2002, conduz o PT, na visão de Olívio Dutra ao distanciamento dos ideias petistas que constituíram o partido. “A esquerda do PT, PSTU e PCO devem ao país. Temos que nos unir e não ficar disputando dentro do próprio PT. As correntes internas que antes discutiam ideias agora discutem como se fortalecer e buscar cargos e eleições de seus quadros. Isso é preocupante”, afirma.
Ainda que as considerações do ex-ministro de Lula apontem para um cenário crítico internamente, ele acredita que o PT ainda tem raízes de sustentação que o permitem fazer uma boa reflexão sobre esta transformação política. “Aprendemos mais com as vitórias do que as derrotas. Representamos uma enorme transformação para o povo brasileiro, mas há que se perguntar se conseguimos mudar substancialmente as estruturas do estado que promovem as desigualdades e injustiças no nosso país. Elas estão intactas, apesar de termos tido a oportunidade de estar no governo. O PT tem que ser parte de uma luta social e cultural agora, e não se dispor a ficar na luta por espaços e no afastamento dos movimentos sociais”, salienta.
A ENTREVISTA:

Olívio Dutra: “A importância do PT está em não se acomodar”


Nubia Silveira
A fala mansa, o bigode farto, o vocabulário marcado por termos típicos do gaúcho do interior, a serenidade ao expor os pontos de vista fazem de Olívio Dutra o tipo inesquecível de qualquer um que já tenha convivido com ele, nem que seja por apenas alguns instantes. Líder estudantil, sindical e político, o ex-governador gaúcho (1º de janeiro de 1999 a 31 de dezembro de 2002) se diz, antes de tudo, um bancário. Fez concurso para contínuo e depois para escriturário no Banco do Estado do Rio Grande do Sul – Banrisul, onde trabalhou até se aposentar. Há 41 anos trocou a cidade de São Luiz Gonzaga, onde estudou e começou a trabalhar, e o distrito de Bossoroca, onde nasceu, por Porto Alegre. Uma troca forçada pelas autoridades, depois de um desentendimento com o prefeito. Desde aquela época vive no mesmo apartamento de dois quartos, na Zona Norte de Porto Alegre, que comprou de um colega bancário.
Olívio presidiu a União São Luizense de Estudentes e o Sindicato de Bancários de Porto Alegre. Foi prefeito da capital gaúcha, governador de Estado, deputado constituinte e ministro do governo Lula. Nenhum cargo conseguiu mudar seus hábitos. Anda de ônibus pela cidade, atende o celular, sempre bem-disposto, e, aos domingos, quando não chove e está em Porto Alegre, pedala por mais de duas horas, no percurso Zona Norte-Centro-Bom Fim- Zona Norte. Apesar dos boatos, diz que não vai se candidatar ao Senado. Está comprometido com os movimentos sociais. Viaja pelo interior do Estado, segundo ele, não para fazer campanha, mas para falar sobre “a construção partidária”.

Olívio continua a andar pela cidade de ônibus l Foto: Dhiego Correa/twitpic
Nunca participou de qualquer partido político, antes de ajudar a fundar o PT. Mas, reconhece que tinha simpatias pelo Partidão, ao qual pertencia um tio, irmão de sua mãe. Para Olívio, a importância do PT está em “não se acomodar, não passar de um partido de transformação a um partido da acomodação”. É pelo que ele vem lutando há 30 anos.
Com seu jeito simples e gestos que fortalecem as falas, não se nega a fazer críticas. Elogia os governos do petista e amigo Luiz Inácio Lula da Silva, com quem dividiu o apartamento no tempo da Constituinte, mas reconhece: “a estrutura fundamental do Estado brasileiro não foi mexida”. Outro ponto em que, afirma, o país pouco evoluiu foi na questão da reforma agrária. “Nós, na Constituinte, não conseguimos retirar do texto da Constituição uma espécie de aura sagrada da propriedade”, lembra.
Antes de comemorar os 70 anos, com uma grande festa, realizada no dia 11 de junho, ele deu uma longa entrevista (duas horas e meia de conversa) ao Sul21, da qual participaram os repórteres da casa – Milton Ribeiro, Rachel Duarte e Igor Natusch – e os convidados Antônio Oliveira e Poti Silveira Campos.
Milton — O senhor se formou em Letras. Por quê? Depois, virou bancário. Vamos começar com as Letras.
Olívio Dutra –
 Não, eu fui bancário antes de qualquer coisa.

"Fui bancário antes de qualquer coisa" l Ramiro Furquim/Sul21
Milton — Antes?
Olívio — 
Claro. Fui bancário por 35 anos, funcionário concursado do Banco do Estado do Rio Grande. E, aliás, entrei por concurso na função de contínuo do Banco, lá em São Luiz Gonzaga. Só depois de três anos, com concurso interno, feito em Santa Maria, junto com outros, passei a ser escriturário. Então, vim me formar em Letras — licenciatura de Língua Portuguesa e Inglesa, Língua e Literatura — aqui na UFRGS, em 1975. Então, fui mais um trabalhador que estudava do que um estudante que trabalhava. A prioridade era o meu trabalho, o meu emprego, né. Porque cheguei aqui com a Judite grávida da Laura e nós tínhamos o Espártaco com um ano de idade.
Milton — Espártaco.
Olívio –
 É. O Espártaco, meu filho, com um ano de idade. E a Judite grávida da Laura. Eu (era) bancário, com nove anos já de profissão bancária, funcionário do Banco, quando cheguei aqui, em 1970, em Porto Alegre. Então…

“Não nasci na vila da Bossoroca. Nasci no fundão da Bossoroca”

Milton — Então o senhor…
Olívio –
 Mas deixa eu ver como é que eu respondo, como é a questão, porque eu sou formado em ciências ocultas e letras apagadas…
(risos)
Olívio — 
Tem um pouquinho de história mais antiga: o meu pai era um carpinteiro lá em São Luiz Gonzaga quando eu nasci. Nasci em Bossoroca, em 1941. Naquela época, Bossoroca era terceiro distrito de São Luiz Gonzaga. E eu não nasci na vila da Bossoroca, eu nasci no fundão da Bossoroca, onde meus familiares eram agregados no fundo dos campos dos fazendeiros lá no rincão chamado Rincão Feio. Nesse local é que eu nasci, já o segundo filho de uma família de sem terras agregados no fundo de campo. Minha mãe na lida de casa. Nunca foi trabalhar na fazenda. Agora, os irmãos da minha mãe eram peões de fazenda. O meu pai era aramador, ou alambrador, como queira. Para nós, era aramador. Era aquele trabalhador que fazia as cercas, estendia os arames, fazia todas aquelas amarrações. Claro, é no mato. Também ajudava a escolher as árvores, fazia o corte adequado, conhecia madeira e árvores como a unha.

Bossoroca, terra natal de Olívio: "Naquela época, Bossoroca era terceiro distrito de São Luiz Gonzaga" l Foto: estacoesferroviarias.com_.br
Rachel – (servindo vinho) Não entendo muito (de vinho), mas é o que a casa oferece. O que a gente serve para começar?
Olívio –
 A gente começa com o menos nobre pra deixar o melhor pro fim, mas acho que ambos são bons.
Igor — Vamos de branco? Não, vamos de tinto, né?
Olívio — 
É, vinho tinto. Mas, a gente pode começar com o branco, né.
Rachel — Então vamos.
Olívio –
 Depois nós concluímos com o tinto. Mas vejam que o meu pai, além de alambrador, era também um artífice. Era um pequeno artesão. As origens dele eram missioneiras. Era uma mistura de negro com índio, cafuzo. E a família da minha mãe era um pouco mais… Tinha também bugre, mas tinha português e castelhano. Meu avô era Saulistiano do Amaral Beis, meu avô materno. O meu pai foi se desdobrando ao casar, naquele mundo lá. Ele viu que chegou o primeiro filho, chegou o segundo filho. Não dava pra ele viver daquela profissão. Até porque as fazendas estavam também delimitadas. Fazer móveis rústicos para a casa dos fazendeiros — o que ele também fazia — não dava o suficiente. Ele fazia galpões, fazia as mangueiras, fazia os móveis pra dentro de casa também. Então, ele se tocou pra cidade mais próxima: São Luiz Gonzaga. E eu (era) um guri chorão de colo, nos cueros. Ele atou uma vaquinha, que não vendera, atrás de uma carreta. E passaram-se quinze dias (para ir) do local onde eu nasci até chegar em São Luiz Gonzaga. Ele já tinha ido antes a cavalo pra ver onde é que ia se instalar. Comprou um terreninho na periferia de São Luiz. Não tinha luz, não tinha água; tinha que fazer poço e tal. Então foi lá, em São Luiz Gonzaga, que ele criou a família dele: cinco filhos, eu sou o segundo, três homens e duas mulheres. E na profissão dele, carpinteiro. Então, aí ele fazia pequenos serviços de reparação nas casas. Tinha uma caixinha de ferramentas. Foi indo e ele passou a ser um pequeno empreiteiro. Ele tinha a oportunidade de fazer uma casa inteira de madeira. A pessoa que faz uma casa de madeira numa cidade pequena não é ainda das elites. Ele foi sendo referência do trabalho em madeira, e foi também sendo contratado pra fazer as casas, o interior das casas de alvenaria. Contratavam ele pra fazer escadarias como esta, o forro, o assoalho, as janelas, as portas. Então passou a ter uma pequena oficininha em casa. Até hoje tem o banco de carpinteiro dele lá em São Luiz Gonzaga. E quando chega a época de irmos para a escola — entrei no colégio com seis anos, meu irmão tinha sete — não podia ficar em casa, tinha que ir pra escola. Fomos os dois pra escola: o Grupo Escolar Senador Pinheiro, lá em São Luiz Gonzaga. Me formei lá. Eram cinco séries. Depois, não tinha mais que isso. Meu pai não tinha condições de pagar outra escola fora de São Luiz. Os filhos das famílias abastadas ou de classe média podiam ir pra Santo Ângelo, Santa Maria…

"Os filhos das famílias abastadas ou de classe média podiam ir pra Santo Ângelo, Santa Maria…" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Milton — Porto Alegre
Olívio –
 …Porto Alegre, Passo Fundo. Estancou ali. Tinha o Ginásio Santo Antônio. Esse ginásio era administrado por uma ordem religiosa católica de padres americanos. Eles eram franciscanos menores, conventuais americanos. Aliás, era uma raridade, porque eles só tinham duas missões aqui no Brasil. Uma era lá no Centro-Oeste e outra aqui no Sul, no Rio Grande, nas Missões lá em São Luiz. É um colégio confessional, de uma ordem religiosa, (de) freis católicos menores, conventuais norte-americanos. O que é uma raridade. Entre os americanos, a religião predominante é a protestante; eles eram de uma ordem católica. Alguns deles, hoje lembro bem, eram pessoas de uma formação cultural forte, séria, de (conhecer) grego, latim, línguas, claro, a língua deles inglês, mas chegavam falando português, espanhol, francês. Mas depois, mais adiante, começou a vir padres que eram mais… Parece que tentando se ajeitar na vida, porque tinham sido capelães nas guerras na Indochina e em outros lugares do mundo. E eles estavam lá em São Luiz, dois ou três deles. O padre Kanut, me lembro bem, (era um) sujeito atarracado. A gurizada, quando sabia que eles chegavam lá sem saber falar uma palavra de português, ficava em roda dizendo nome feio, chamando disso e daquilo, até que, claro, aquele padre começou a ver, a desconfiar que ele… E a formação dele não era de educador. Certamente era de uma figura que estava com problemas de existência na questão de pra onde fora como capelão militar naquelas pontas que os Estados Unidos estavam mandando gente pra alguma guerra localizada longe. E então ele reagia com uma violência assim. Quando começava a compreender o português e sabia que a gurizada estava dizendo nome feio pra ele, ele pegava a gurizada, dava uma gravata e enchia de cascudos. Lembro bem de uma ocasião em que um guri mais esperto disse nome feio e já ficou preparado pra correr. Esse guri correu o pátio, o colégio, pulou o muro do colégio para a rua, passou para a praça principal de São Luiz Gonzaga e o padre Kanut atrás dele. O padre não parou enquanto não o pegou, longe do colégio. E a população ficava olhando. Sei que deu uns cascudos no guri, (que estava) cansado. Mas ele não cansou, era atleta, e o…

“Diziam que o filho do carpinteiro era interessado, dedicado. Eu realmente aproveitei a ocasião”

Poti — O senhor nunca entrou no cascudo?
Olívio — 
Não, nunca entrei no cascudo. Eu sei que esse menino era filho de um militar, porque lá tinha… Isso era antes do golpe. O golpe foi em 1964 e isso aconteceu na década de 50. Então havia militares (em São Luiz Gonzaga). Esse menino era filho de um oficial do Exército. Eu sei que houve problemas lá com os padres, mas a comunidade da cidade, que amparava os padres, as senhoras da alta sociedade, os dirigentes do poder, apaziguaram as coisas.
Mas o meu pai não podia pagar o colégio, que era particular. Mas aí ele trabalhava com os padres na oficina dos padres, que precisavam fazer coisas de carpintaria. Então meu pai pagava a escola, o colégio, o ginásio, pro meu irmão e pra mim, com o trabalho dele. E nós ficamos – eu, particularmente — semi-interno, ajudando a varrer, a cuidar das coisas. Nos finais de semana ia pra casa. Isso era na cidade. E nós morávamos longe, lá na periferia. Então isso me oportunizou a acessar livros, e a aprender inglês. Eles diziam que o filho do carpinteiro era interessado, dedicado e aquela coisa toda, e eu realmente aproveitei a ocasião. Me lembro bem da biblioteca variada. Imagina no ginásio tu leres Machado de Assis. Eles eram americanos. Nos nossos colégios, colégios das freiras na cidade, não se lia Machado de Assis. Tinha que ler os livrinhos religiosos, catecismo, aquela coisa toda. No ginásio, além dos livros religiosos, do catecismo, tive acesso a uma biblioteca e tive acesso a livros em inglês, e tive a oportunidade de ter aulas de inglês fora do horário da aula. Então, a prática me deixou com uma fluência em inglês.
Rachel — Mas o senhor ainda está estudando, né?
Olívio –
 Isso me deixou fluente…

"Entrei numa luta junto com outros jovens pra trazer pra São Luiz uma escola da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Rachel — Pra treinar?
Olívio –
 …pra aquela época. Há 50 anos, eu tinha 14, 15, 16 anos. Então, estou dizendo isso porque depois eu vim fazer Línguas, Literatura, Inglês e Português, porque tem esse passado lá. Mas eu andei estudando também Direito, essas coisas todas. Não concluí porque não tinha em São Luiz Gonzaga, não tinha nem escola de segundo grau, né. Tinha o ginásio e pra onde tu ia depois do ginásio? Depois, mais tarde, ia ter uma escola técnica de comércio, em que eu me formei, já sendo bancário. Depois entrei numa luta junto com outros jovens pra trazer pra São Luiz uma escola da Campanha Nacional de Educandários Gratuitos, a CNEG, hoje é CNEC — Campanha Nacional dos Educandários da Comunidade. Eu me lembro bem. Isso era um movimento na base da Igreja Católica. Começou lá no Norte, no Amazonas, era Tiago Gomes o líder desse movimento que se espalhou pelo país (A Campanha nasceu em 1943, em Recife, idealizada por um grupo de universitários, liderados por Felipe Tiago Gomes. Surgiu com o nome de Campanha do Ginasiano Pobre. Depois, passou a ser chamada de Campanha dos Educandários Gratuitos e Campanha Nacional de Educandários Gratuitos. Atualmente, chama-se Campanha Nacional de Escolas da Comunidade – CNEC). E lá em São Luiz a gente estava na periferia desse movimento, mas conseguimos. Isso é em 1964. Aí é que deu o problema comigo que ocasionou minha transferência pra Porto Alegre. Então eu casei em 1968, 1969. Entrei no Banco em 1961.

Tiago Gomes liderou a Campanha Nacional de Educandários Gratuitos l Foto: cnecbarroso.blogspot
Milton — 1961. Vinte anos.
Olívio –
 É, e não tinha feito o terceiro grau. Tinha feito o primário e o ginásio. Fiz a Escola Técnica de Comércio. Comecei a frequentar umas aulas lá na Fidene (Fundação de Integração, Desenvolvimento e Educação do Noroeste do Estado), a Fundação que vem a ser hoje a Faculdade de Filosofia lá de Ijuí, e que depois tem uma extensão lá em Santo Ângelo (a Fidene, hoje, é a mantenedora da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí, do Centro de Educação Básica Francisco de Assis — EFA, do Museu Antropológico Diretor Pestana – MADP e da Rádio e Televisão Educativa — RTVE). Aí eu estudava. Pegava um ônibus pra ir nessa cidade estudar depois do expediente.
Milton — O senhor trabalhava, o senhor estudava e, em 1975, o senhor se formou e se tornou presidente do Sindicato dos Bancários.
Olívio –
 Exatamente.
Milton — Ao mesmo tempo?
Olívio –
 Exatamente.
Milton — Como é que se consegue se formar e se tornar presidente do sindicato?
Olívio –
 Mas eu me formei antes de ser presidente.

“Pra começar a greve teve uma reunião, pra terminar não houve nenhuma consulta. Isso ficou martelando na minha cabeça”

Milton — Mas foi no mesmo ano.
Olívio –
 Claro. Eu militava na base do sindicato. Quer dizer, a primeira coisa que eu fiz, quando cheguei em Porto Alegre, foi me filiar ao sindicato. Eu tinha participado de uma greve, a primeira greve da minha vida, em 1962, lá em São Luiz Gonzaga, um ano depois de ser bancário. Estourou uma greve na nossa categoria no Estado, antes do golpe, em 1962. O sindicato mais próximo era o de Santo Ângelo. O presidente da Federação dos Bancários, naquela época, era o Paulo Eduardo Steinhause, que era de Santo Ângelo. Um grupo, num final de tarde, lá em Santo Ângelo, foi lá pra São Luiz. Mas, primeiro deram umas telefonadas. Pra quem? Pra mim, porque já tinha uma referência e tal. Era uma referência ali até porque minha tarefa como contínuo do Banco era fazer serviço pra fora, entregar aviso de vencimento de duplicata, ir no correio, ir na telefônica, e a telefônica era só na prefeitura, era passar telex, então tinha que ir lá. Isso era o trabalho do contínuo. Então isso fazia eu chegar em todas agências de banco que tinha na época. Tinha poucos bancos: Banco da Província, Banco do Comércio, não tinha ainda o Banco do Brasil, e o Banrisul. Na verdade, eram três agências de banco. Tinha a Caixa Econômica Estadual. Caixa Econômica? Não. Não tinha. Então tocou pra mim dizer pro pessoal e ir convocá-los pra uma reunião depois do expediente, e onde? Na Casa Rural, que é a casa dos fazendeiros. Na Casa Rural de São Luiz Gonzaga. Nos cederam um espaço numa sala lá, para nos reunirmos. Nos reunimos, veio o pessoal do sindicato de Santo Ângelo, a Federação, colocaram as razões da greve, as negociações se desalinhavam e precisaríamos mostrar força pra arrancar alguma proposta dos banqueiros. Então estavam dadas as razões. Teve perguntas nossas pro pessoal. O pessoal decidiu pela greve. Bom, dois dias depois terminou a greve. Mas aí eu fiquei me perguntando: “bom, pra começar a greve teve uma reunião, pra terminar a greve não houve nenhuma consulta?”. Ficou me martelando aquela pergunta. Mas (fazê-la) pra quem? Não tinha sindicato (em São Luiz Gonzaga). O pessoal não voltou lá e tal. E tinha muito bancário lá, que na verdade eram de outras cidades. Naquele tempo bancário tinha certo status.

Na greve de 1962, categoria não estava comprometida com o movimento l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Rachel — Claro.
Olívio –
 Faziam o concurso e eram destacados pra lá. Eles vinham de outras cidades e, na primeira oportunidade que tinham, eles voltavam pras suas cidades, pra visitar os familiares, namorar e tal. Então, estourou aquela greve e, sem muita consciência de coisa nenhuma, o pessoal disse: “então vou aproveitar e vou em casa; vou a Uruguaiana; vou visitar minha família, e tu fica acompanhando aí e qualquer coisa tu me avisa”.
(risos)
Olívio – Mas avisar como? “Vai ali naquele programa gauchesco que tem ali na rádio São Luiz e tal”. E uns de São Luiz pegaram uns engradados de Brahma e foram para a costa do (Rio) Piratini. E bueno, e pum! Termina aquela greve e eu fiquei com aquela tarefa de avisar todo mundo. Fui lá no programa da rádio pra dar a notícia que a greve tinha terminado e tal. Eu sei que houve bancário que chegou um dia depois, né.
(risos)
Olívio — 
Imagina, isso era uma greve antes do golpe de 1964. Bueno, então me ficou martelando na cabeça assim: “mas como é que é esse negócio?”. Bom, 1962. Mas, nesse processo, vem essa luta pela escola da comunidade. Eu e um grupo de jovens achamos que não era possível ficar numa cidade sem uma escola de segundo grau lá. Tinha a União São Luizense de Estudantes. Aliás, também é importante dizer: eu fui presidente dessa União São Luizense de Estudantes.
Igor — Que ano?
Olívio –
 Eu era solteiro ainda, claro, isso foi em 1958. Por aí.
Milton — Tinha dezessete anos.
Olívio –
 É, por aí. Foi uma chapa que fizemos pela oposição. O que era a USLE, União São Luizense de Estudantes? Era uma entidade recreativa né, em que a juventude estudantil lá da cidade ia. Os que estavam na direção da USLE eram aqueles que iam estudar fora. Estavam estudando em Santo Ângelo, Cruz Alta, Santa Maria, até mesmo em Porto Alegre. Então a USLE funcionava nas férias, quando eles vinham pra fazer um baile; o baile da rainha dos estudantes e outras coisas.

"Nós fizemos umas mudanças na atuação da USLE" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Rachel — Por isso que ele observou que era solteiro na época: “rainha dos estudantes”.
(risos)
Olívio –
 E aí nós da cidade, os filhos da família de renda mais modesta, fizemos uma chapa de oposição, e eu fui eleito presidente da USLE. Nós fizemos umas mudanças na atuação da entidade pra ela discutir essas coisas. Mas isso estava dando muito trabalho. Eu tinha que trabalhar; não tinha que estar naquela militância. Eu sei que estive um ano e pouco ali. Acho que antes mesmo de terminar meu período de mandato eu saí. Ficou o vice lá. Eu tinha que estar no batente. Entramos naquela luta da instalação dessa escola. Mas tinha toda uma tramitação. Primeiro que era um movimento da base da Igreja Católica, de cristãos e jovens. E nós éramos uma ala mais, digamos, por ser jovens, justamente, mais rebeldes, e tinha o grupo dos mais velhos naquelas reuniões da base da Igreja, principalmente dos Vicentinos, que é uma congregação dentro da Igreja Católica, da qual a gente participou formalmente. Bom, nessa movimentação toda, nós conseguimos organizar papéis e tudo para essa escola, e quem sabia um pouquinho mais era professor. Eu sabia Inglês, assim como havia outros que sabiam Matemática, Geografia e tal. Tínhamos que nos submeter às exigências que tinham na época. A Fidene em Ijuí nos preparou cursinhos de Pedagogia, de Didática, essas coisas todas, porque era fundamental para que uma escola se instalasse. E aí o golpe já tinha se dado, e qualquer movimento ou coisa integrada já era suspeição de que tinha agito, agitadores e que era subversão e nós, no nosso movimento, nos propúnhamos (ter) eleição direta da direção da escola. O prefeito, por sinal primo do Jango, mas era do antigo PSD, portanto aquele que deu origem à Arena claro. E era cunhado do Gustavo Langsch, que tinha sido presidente da Assembleia Legislativa (de 21 de abil 1962 a 31 de janeiro de 1963) , tinha sido deputado estadual, tinha sido presidente do Banco do Estado, na ocasião era presidente do Banco do Estado do Rio Grande e eu era funcionário do Banco. E o prefeito era cunhado do presidente.

“O prefeito puxou o revólver para mim”

Milton — Só eles.
Olívio –
 E o prefeito se indispôs comigo por conta que eu era o que mais insistia, e inclusive escrevia no jornalzinho “A Notícia” lá o porquê da eleição direta da direção da escola. E hoje eu lembro as coisas…
(risos)
Olívio — 
O prefeito chegou a puxar o revólver pra mim.
Rachel — Não.
Olívio –
 Claro. Fui no Banco trabalhar de manhã. A gente trabalhava sábado inclusive, sábado de manhã. E esse episódio foi um negócio; pra mim, foi um demarcador de situação de vida né, porque aquilo, primeiro, ou me levavam para o quartel para ver se eu estava agindo ao contrário do establishment.

"Caso não aceitasse a transferência, seria demitido" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Poti — Que ano isso?
Olívio — 
Isso já em 1968, acho que já era depois do AI-5.
Poti — Golpe do golpe.
Olívio –
 É.

Antônio Oliveira — Como era o nome do prefeito, tu lembra?
Olívio –
 É João Belchior Marques Goulart. É nome de escola (este é o nome do ex-presidente João Goulart, o Jango. O prefeito chamava-se João Belchior Goulart Loureiro e dá nome a um ginásio de esportes).
Igor — E por que do revólver?
Olívio –
 Porque ele achou que o que eu escrevi no jornal era…
Milton — Libertário.
Olívio –
 Um desaforo, né
Milton — Subversivo.
Olívio — 
É, e foi dentro do Banco. (Eu disse:)“Mas se o senhor tem assunto pra conversar comigo nesse teor, então temos que conversar ali fora, na frente do Banco”. (Ele disse:) “Não, mas o senhor me acompanhe”. Eu digo: “acompanho mas…”. E o carro dele estava ali; tinha motorista e tal. E eu fui (no carro do prefeito) para a direção do quartel. Eu digo: “a troco de que o senhor está me levando nessa direção? Não tem nenhuma autoridade e não vou me submeter a isso daqui.” Pedi pro cara parar o carro para descer. Desci por um lado; ele desceu pelo outro com o revólver na mão. Aí me lembro que teve gente lá que viu aquele negócio. Ele se foi e eu voltei a pé pro Banco.
(risos)
Olívio –
 Mas no dia seguinte, naquele mesmo dia, já estava lá uma transferência, e caso não aceitasse a transferência, uma demissão. Só não me demitiram porque eu não tinha entrado nessa conversa do FGTS, te lembra? O FGTS foi criado para acabar com a estabilidade, e eu não tinha optado. Só fui optar muito mais tarde (O Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS foi criado pela Lei 5.107, de 13 de setembro de 1966). Mas aí, então é isso. Venho pra Porto Alegre, porque se eu ficasse tinha uma indisposição com os poderosos.

"Já faz 41 anos que eu estou aqui em Porto Alegre, e moro no mesmo lugar, no mesmo prédio, no mesmo apartamento" l Foto: Denison Fagundes / Carta Capital
Igor — O clima não era nada bom.
Olívio –
 Uma indisposição com os caras do poder local. Então conversamos com o povo nosso, os estudantes (e dissemos): “é isso aí”. E aí que chegamos em Porto Alegre, em maio de 1970. Já faz 41 anos que eu estou aqui em Porto Alegre, e moro no mesmo lugar, no mesmo prédio, no mesmo apartamento ali na Assis Brasil 280, apartamento 420. Criei dois filhos ali, um casal de filhos num apartamento de dois quartos.
Milton — Mas o senhor casou quando?
Olívio –
 Eu casei lá em São Luiz Gonzaga.
Antônio Oliveira — Já estava casado.
Olívio –
 Claro.

“A Judite é um amor antigo. Ela é filha de agricultores de origem alemã”

Poti — Quando desse episódio com o prefeito o senhor já estava casado?
Olívio — 
Claro, nesse episódio que eu falei já estava casado. O Espártaco nasceu lá em São Luiz, a Laura não, ela nasceu aqui. E a Judite é um amor antigo.
Rachel — Mas na época da União dos Estudantes ela não existia. Quando é que surgiu?
Olívio –
 Não, ela existia. Esse colégio, o Ginásio Santo Antônio de Pádua, era a uma quadra da Praça Central, a duas quadras da Igreja. A Judite, que é filha de agricultores de origem alemã, veio do interior do Rolador, hoje um município autônomo. Mais precisamente da localidade chamada Passo da Quaresma, que fica na barranca do rio Ijuí. O pai dela, seu Alfredo, era proprietário com 11 filhos, numa área de 42 hectares. Uma área de terras dobradas, difícil de trabalhar. Mas ele plantava pra subsistência. Me lembro bem que plantava alfafa. Naquele tempo o quartel era cavalaria, então os agricultores daquela região ganhavam bem, sabendo que tinham pra quem vender, produzindo alfafa. O que hoje é soja, naquela época era alfafa. Tinha alfafa, milho e, claro, aquelas coisas de subsistência. Criava porquinhos, galinha, vaca de leite. Então era uma pequena família de 11 filhos numa terra de 42 hectares, grande parte de área dobrada nas barrancas do rio Ijuí. E a Judite tinha uma irmã mais velha que já estava trabalhando na cidade, numa casa de gente rica da cidade, que era na frente do ginásio Antônio de Pádua. E ela foi então com a irmã dela, que já estava nessa casa e trabalhava meio de gerente de uma loja de confecções. Hoje não existe mais. Então, ela levou a Judite lá pra Judite trabalhar nessa casa também e estudar no colégio de freiras salesianas, duas quadras dali. E foi ali que eu conheci a Judite, porque eu era semi-interno naquele colégio ali, na frente. No outro lado da rua era a casa dessa família onde ela trabalhava e aparecia num balcão. Não sei como chama, numa sacada, e eu lá embaixo…

Judite: um amor de 50 anos l Foto: flor-em-poemas.blogspot.com
Rachel — De olho.
Olívio –
 É, de olho no outro lado da rua, no jardim dos padres. E é isso, e ia na missa, a primeira missa… É aí que nos conhecemos. Mas isso durou oito anos. Namoramos oito anos. Depois um ano de noivado e casamos. Então é isso, casamos depois de nove anos de sequência. Naquele tempo também a gente não se via todo dia, às vezes nem toda semana, passava duas, três…
Poti – Namorava no sofá lá na casa do seu sogro.
Olívio –
 Não, (ele) morava pra fora; não tinha como ir lá. Tinha que ir de ônibus. Depois, quando já estava no Banco, comprei uma lambretinha. Fiz um empréstimo, um financiamento e comprei uma Lambreta, pra vim lá de casa no Banco. Mas não tinha calçamento; quando chovia, não podia. A Lambreta não anda no barro.
Olívio – Outras ocasiões, quando ia lá (na casa da Judite) e caia uma chuva, digamos sábado, eu posava lá e, no domingo, tinha que voltar porque segunda tinha que estar no batente. Bah! Teve ocasiões que chovia e formou barro e lodo e os rios saiam da caixa. E como é que eu ia sair de lá? Aí os meus cunhados (diziam:) “nós vamos sair bem cedo de madrugada de carroça”. E eu colocava a Lambreta numa carroça puxada a boi e ia lá de onde eles moravam, nos fundões da barranca do Ijuí, até uma estrada um pouco melhor, por onde passava o ônibus. Se desse pra eu vim de bicicleta… de Lambreta pegava. Senão, eles levavam (a lambreta) de volta e eu pegava o ônibus. Então era isso. Nós nos víamos muito pouco; talvez isso tivesse feito resistir…
Milton — Como é que foi tão rápido? Em 1975, o senhor já era presidente do sindicato. Como é que foi esse período?
Olívio – 
Aí, então, em 1970, eu chego com essas experiências já. Acho que já estou me demorando…
Milton — Já deu um contexto.
Olívio –
 …me demorando demais nesses relatos.

“Em Porto Alegre, na agência mais periférica da rede do Banco”

Antônio Oliveira — Em Porto Alegre, foste trabalhar em uma agência central logo?
Olívio — Eu fui transferido nessas condições e me colocaram na agência mais periférica da rede do Banco aqui em Porto Alegre. E, naquela época, a mais periférica era a agência ali na esquina da Francisco Trein com a Assis Brasil. Na frente tinha a Varig funcionando.
Milton — O Sindicato dos Metalúrgicos.
Olívio –
 Isso. E perto do Hospital Cristo Redentor, e tinha aquelas carrocerias Eliziário que depois o Martins comprou e agora é Marcopolo (A empresa Carrocerias Eliziário foi vendida por seu proprietário, Eliziário Goulart, em 1969, para os irmãos Dorval e Paulo Nicola, do Grupo Nicola que, em 1971, passou a se chamar Marcopolo S/A). Então eu vim. Primeiro tinha que vir solito. Digo: “Judite, tem que ser assim, porque tenho que arrumar onde é que nós vamos morar”. Tinha que chegar lá e alugar, ver onde é que eu vou trabalhar e conhecer bem. A Judite era professora do Estado. Ela se formou e passou no concurso e foi lecionar. A Judite também passou um sacrifício, porque, antes de casar comigo, ela foi lecionar sabe onde? Na Coudelaria do Rincão. Coudelaria do Rincão é um enorme latifúndio do Exército lá perto de São Borja, onde eles têm os cavalos; fazem criação de gado e de cavalos. E também serve para manobra do Exército, de exercício. Eu servi o Exército e estive fazendo manobra naquele local. Então a Judite, professora primária, a primeira escola pública que ela foi lecionar foi lá nesse fundão. Ela tinha que morar na escola junto com as outras colegas da Coudelaria do Rincão. Mas isso antes do casamento. Depois de casada, claro, viva, foi transferida para lecionar em São Luiz Gonzaga. Nós morávamos, digamos, no Norte (da cidade), e o colégio que ela lecionava ficava no Sul. Então, pra ir da nossa casa pro Centro, ela tinha que subir. Depois, pra ir de lá pra escola tinha que descer, porque é uma coxilha né. Cidades missioneiras são sempre assim. E nós morávamos na periferia, logo nós morávamos embaixo, tinha que subir, o colégio estava lá na outra periferia…

Coudelaria de Rincão, em Bagé: onde Judite, a mulher de Olívio, começou a lecionar l Foto: Comando Militar do Sul
Poti — Tinha que cruzar.
Olívio –
 Tinha que cruzar. Aí quando nós chegamos (em Porto Alegre) … Eu vim e consegui aquele apartamento, até porque aquele pessoal (lá da agência) disse: “olha, colega, eu estou sabendo que tem um colega nosso que mora ali na Cairú, que foi premiado com um apartamento num prédio aqui na Assis Brasil, logo aqui perto, onde tem a agência do Banrisul ali”. Era a agência Passo d’Areia, e (eu) estava falando com o pessoal da agência Cristo Redentor. Então, (fui) naquele prédio lá. Digo: “então posso falar com ele lá?”. (Ele) Disse: “pode, te dou o endereço e tu vai lá e tal”. E aí conversei com ele. Era boa pessoa, familiar, uma família grande, que morava ali na Cairú quase com a Farrapos, e ele realmente tinha sido sorteado. O banco financiou a construção daquele prédio, o Mário Trindade. Foi o primeiro prédio construído com o financiamento do antigo BNH. Então, o construtor pegou financiamento do banco e depois se deu mal: terminou a construção, não por completo ainda, e o Banco sentiu que a coisa não estava bem, que o cara não ia pagar ou vender. E o Banco rapidamente se agilizou: fez outros credores. O Banco se pagou com a área onde ele foi instalar a agência e (tinha) seis apartamentos lá, no conjunto 218. Seis apartamentos ali. O Lazzari, esse meu colega, tinha sido sorteado. O Banco sorteou entre os funcionários mais antigos, mais afamiliados como se diz da pessoa da família. E o Lazzari se inscreveu, preencheu os requisitos e foi um dos sorteados lá. Mas claro que tinha que pagar o financiamento do BNH (Banco Nacional de Habitação, criado em 1964 e extinto em 1986). Então ele estava pagando lá e tinha que pagar o apartamento em que ele morava. Estava pesado pra ele. Então, paguei pra ele a transferência pra mim. Paguei em prestação a transferência. E continuei pagando a prestação pro BNH. Tinha duas prestações pra pagar do apartamento. Não é fácil.
Rachel — Não tinha Minha Casa, Minha Vida.
Olívio — 
Não, não tinha Minha Casa, Minha Vida. E a gente se instalou ali e criamos nossos filhos. E a Judite foi lecionar na Vila Santa Rosa. Lá, na Vila Santa Rosa. Ficou lá por três anos lecionando. Bom, aí eu fui colocado ali nessa agência Cristo Redentor, a mais periférica de toda rede. Não tinha ainda a da Wenceslau Escobar que é na Tristeza. Agora o Banco tem até na Serraria. Tem lá em…

Poti — Belém.
Olívio –
 Em Belém tem.
Poti — No Lami.
Olívio –
 Tem lá naquela vila lá …

Poti — Itapuã.
Olívio — 
Lá depois do… quem vai pro Lami, antes, tem um enorme conjunto habitacional…

“Era o tempo em que questão social era caso de polícia”

Poti — Restinga.
Olívio –
 É a Restinga. Então hoje tem, é claro, muito mais longe, mas naquela ocasião era a mais longe. E eu me enturmei já, e já tratei de me sindicalizar. Seu Antônio Luiz — eu me lembro bem — era a cara do Khrushchov (Nikita Serguêievitch Khrushchov, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética de 1953 a 1964. No XX Congresso do PCUS, em 1956, acusou Josef Stalin de crime de genocídio). Chegava no Banco com um sobretudo e percorria as agências em que, ele sabia, estavam chegando bancários transferidos ou admitidos. Ele ia lá com a proposta… Seu Antônio Luiz, quando eu cheguei, já estava com setenta e tantos anos e ia lá com materialzinho sindical e com proposta de filiação e tal. Ele tinha sido dirigente sindical. Tinha sido bancário. Mas antes, ele tinha sido motorneiro de bonde, da antiga Carris. Então ele tinha histórias interessantíssimas, que eu gostava de ouvir, do sindicato, do tempo da ação direta. O pessoal da ação direta, o pessoal anarquista, que era a base do movimento sindical, e que estavam mais na área da ação, na área do transporte, particularmente de bonde. E o velho Antônio Luiz contava boas e diversas situações de como se dava a solidariedade entre uns e outros. Coisas incríveis, Ele (era) motorneiro de bonde, e a polícia andava atrás. Eles tinham jogado uns cartuchos de dinamite nos trilhos do bonde, E não era da categoria dele, porque a categoria dele não estava em greve. Mas eles tinham que parar os bondes e a polícia, claro… Era o tempo em que questão social era caso de polícia.

"Saia de lá da agência, pegava um ônibus e vinha direto ao Centro, ao sindicato" l Foto:Ramiro Furquim/Sul21
Igor — Eram criminosos.
Olívio –
 E o Antônio Luiz contava situações horríveis. Esse era o seu Antônio Luiz. Se recolhessem depoimentos, (daria) a biografia dessa figura.
Milton — O senhor ficou amigo do Khrushchov?
Olívio –
 Eu fiquei. Ele ficou muito meu chapa. Ele era um cara que percorria os bancos e, claro, que ele ganhava um dinheirinho por conta de…
Antônio Oliveira — Fazia a cobrança…
Olívio –
 Isso. Fazia a cobrança e tal. Foi através do seu Antônio Luiz, um bancário aposentado, com mais de setenta anos (que me sindicalizei). Eu acho que ele tinha quase oitenta, quando eu cheguei em Porto Alegre. Eu acho que ele morreu com quase cem anos. E era a cara do Khrushchov. Aí então me sindicalizei e vinha no sindicato. Saia de lá da agência, pegava um ônibus e vinha direto ao Centro; passava por dentro do Mercado (Público), estava quase caindo o Mercado, e subia e ia lá na…
Antônio Oliveira — Rua da Praia, né?
Olívio –
 Era no edifício Cacique ali, é Rua da Praia.
Antônio Oliveira — Quase esquina com a Caldas Junior.
Olívio –
 Era ali no Hipólito…

Rachel — Hipólito José da Costa (Museu de Comunicação).
Olívio –
 É isso, bem do lado do Museu ali. Edifício Cacique, 11º andar, ali era a sede do sindicato na época. Depois, nós adquirimos uma sede ali na Galeria Malcon e depois essa sede na General Câmara. Eu conheci o sindicato, a primeira sede do sindicato, a mais antiga, era no edifício Bier Ulmann, ali na rua Uruguai com a Siqueira Campos. Ali naquele prédio foi a primeira sede do sindicato. Bom, aí eu não deixava de vir no sindicato. O pessoal da minha agência dizia: “Olívio, tu é um cara que traz coisinhas do sindicato. Não sei se tu é comunista. Esses comunistas são um perigo. Tu não tem medo de ser preso?” (Eu respondia:) “Não, não”.

“Sou um comunista mais de coração, de sentimento”

Igor — E o senhor era comunista naquela época?
Olívio –
 Não.
Igor — E como foi o processo de o senhor virar um comunista?
Olívio –
 Olha, eu sou um comunista mais de coração, de sentimento, na ideia do comunismo como uma partilha não só de bens materiais, mas da convivência, fruição dos bens da vida, de forma não personalista, pessoal. Esse é o meu sentimento. Sou um comunista de sentimento. Mas nunca fui filiado organicamente. Teve — talvez seja bom também (dizer) nas rememorações — uma ocasião em que um tio meu — é vivo ainda o tio Pedro Beis (faleceu há poucos dias, depois da entrevista, aos 94 anos), irmão da minha mãe, irmão mais velho da minha mãe. Deve estar com noventa e poucos anos. Eu era guri, em São Luiz Gonzaga. Nós morávamos nessa periferia da cidade. Morávamos desse lado da rua e o tio Pedro Beis morava do outro lado, nas casinhas humildes. Então, o tio Pedro Beis era gaioteiro. Gaioteiro (é aquele) que tem uma carroça de duas rodas, daquelas puxadas por um cavalo. E ele prestava serviço pra uma loja, que era a Casa Verde, lá no Centro, entregando os ranchos que as pessoas compravam lá. Ele ia entregar naquela gaiota. Colocava ali e levava na casa das pessoas. Era empregado daquela loja.

"A favor do comunismo como uma partilha não só de bens materiais, mas da convivência, fruição dos bens da vida" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Milton — Gaioteiro?
Olívio — 
Gaioteiro. Claro, ele tinha aquele cavalo dele, que ele tinha que dar boia, tinha que dar água. Então, nós andamos muito naquele cavalo. Meus primos e nós nos encarregávamos de montar no cavalo e ir no banhado ali embaixo — nos fundos da casa da gente tinha um banhado — pra dar água pro cavalo do tio Pedro. E também trazer pasto, né. Então, uma parte da infância da gente foi isso. Mas lá um dia, o tio Pedro Beis não vem pra casa e a tia Dolzira ficou preocupada. Falou pra minha mãe: “não sei o que está acontecendo com ele”. Até que veio o delegado, o inspetor, na casa e disse que o tio Pedro Beis estava preso. “Preso? O que ele fez?” Foi preso lá na Praça da Matriz colando cartazes. Isso em 1954, antes do suicídio do Getúlio. Depois é que a história se esclareceu. O tio Pedro Beis, que era o Pedro Goela, que minha mãe chamava, minha mãe tinha discussões com ele. Tinha com outros também. Só que os velhos eram do PTB e ele também. Só que ele era do PTB, mas estava na periferia do partido. Era comunista e a gente nem sabia. Mas, tinha uma célula do partidão, que era uma célula mais do pessoal que morava no Centro: advogados, um ou outro classe média ilustrada e tal. E o tio Pedro foi trazido por esse povo. Ele, cumpridor de tarefa. O PC tinha uma divergência com o Getúlio naquela época. Tinha umas críticas duras ao Getúlio e expressava isso em um material que o Pedro foi destacado pra ir colar. (Devia colar) aqueles cartazes nos postes da Voz Alegre. Ali era uma espécie de radiação de notícias. Em cada canto da praça, tinha um poste com alto-falantes. Então lá da rádio ligavam aqueles alto-falantes. Lá de casa, que era 12 quadras da praça, a gente ouvia as notícias. Um troço que vale. As pessoas ficavam perto daquele poste e vinham. Era um ponto de referência. E o Pedro, em uma madrugada, foi colar cartazes no poste. Colou em um, colou em outro. Ocorre que na frente ficava o clube Harmonia, que era um clube mais grã-fino da cidade. As autoridades ficam lá, carteando, e o promotor, na época, saiu de uma carteada dessas e (o tio Pedro) foi pego pelo próprio promotor, colando. O promotor deu voz de prisão pra ele.
(risos)
Olívio –
 Bom, mas e daí, como é que a família ia sobreviver e tal? Claro a minha mãe e nós, os pobres tudo ali, nos cotizávamos e tal, pra não deixar faltar comida pra família e ir levar boia pra ele na cadeia. Levei a viandinha de boia pro tio Pedro lá na cadeia da cidade. Na ocasião, me lembro, final de semana, a família ia lá pra visitar o parente na cadeia. E ali tinha uma cela em que estavam presos contrabandistas. Naquela época tinha, também, uns falsificadores de dinheiro. Na frente (da cadeia) tinha um carro — pra época era carro de luxo –, gente bem-vestida pra ir visitar aquelas figuras que estavam ali. E nós naquelas nossas roupinhas pra ir ver o tio Pedro lá. “O tio Pedro vai morrer na cadeia, quem é que vai vim defender?”, minha mãe perguntava: “Mas meu irmão não matou, meu mano não roubou, como é que o homem está preso? Esses aí eu acho que até mataram, esses roubam, esses falsificam, estão aí, vão sair, têm dinheiro, têm advogado. Meu irmão não matou, não roubou e não temos dinheiro pra pagar advogado”. Até que um dia chegou, numa dessas visitas, um advogado famoso na região de Santiago, um criminalista, e disse: “quem são os parentes do seu Pedro?” Minha mãe: “eu sou imã, aquela é a esposa” e tal. E diz ele: “eu vim aqui defender o seu irmão”. E deu o nome e minha mãe disse: “mas o senhor é um advogado de fama. Nós não temos dinheiro pra pagar”. (O advogado disse:) “Mas eu não estou vindo aqui por conta de dinheiro, dona Amélia. O seu irmão está amparado pelo nosso partido, o Partido Comunista.” Ô! A minha mãe…
(risos)
Igor — Deixa preso.
Olívio –
 Não, a minha mãe passou a dizer: “O meu irmão não matou, o meu irmão não roubou, e tem gente que se dispõe a defender, então nós estamos tudo comunista”. E aí era o Danton, um advogado famoso de Santiago, criminalista, ficou famoso tribuno e tal. Bueno, ele liberou o tio Pedro, e aí o tio Pedro ia ficar fazendo o quê lá em São Luiz? Comunista…
(risos)
Olívio –
 …quem é que ia dar emprego pra ele? O tio Pedro também pegou a família e as trouxinhas. Colocaram tudo num trem e vieram pra Porto Alegre, morar na Dona Teodora, ali no Navegantes. Situação das mais difíceis. Ele passou a trabalhar na TJ, indústria de importação e exportação de papel e coisas assim. TJ não sei das quantas. Acho que nem existe mais. Então, enquanto isso…
Antônio Oliveira — T. Janér.
Olívio — 
T. Janér. É a T. Janér. Meu tio veio a ser empregado ali, no almoxarifado, essas coisas assim. Eu conto isso por quê? Porque, quando houve intervenção no nosso sindicato, em 1979, e eu fui preso junto com outros pela Polícia Federal, lá um dia o custodiante dos presos veio dizer, com respeito assim, um carioca, boa gente: “O senhor sabe seu Olívio, tem uma pessoa que diz que é seu parente que veio lhe ver aqui.” “Como é o nome dele?” “Seu Pedro Beis, como o senhor é Dutra..”.

"Meu pai sempre muito quieto. Tinha posições, mas não externava. Minha mãe externava posição" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Milton — É Bes?
Olívio — 
Beis, B-E-I-S. Mas, levaram até meu tio, tio Pedro Beis, que eu não via há muito tempo. Disse: “olha meu sobrinho, eu vim aqui te trazer um cigarro, porque o tempo que eu fui preso tu levou uma vianda de boia pra mim”.
(risos)
Olívio –
 Ele era da periferia do Partidão, né. Depois daquilo (a prisão), ele estava mais que crente dessa religião. Me lembro de conversas. Meu pai sempre muito quieto. Tinha posições, mas não externava. Minha mãe externava posição. Minha mãe escutava rádio. E o tio Pedro discutia com ela. Minha mãe defendendo o Getúlio, o trabalhismo e o tio Pedro dizendo: “olha, não se iludam, não se iludam porque esses caras (são) tudo gente do dinheiro, fazendeiro. Nós não temos nem fazenda, nem dinheiro e nem emprego. Eles se ajeitam lá e nós levamos ferro aqui”. (Minha mãe dizia:) “Não, mas não, o Getúlio é isso…”. (E ele:) “Não Amélia, a gente não pode se iludir e tal.” São as conversas que eu me lembro, que tinha naquela periferia de mundo, naquela ocasião da minha infância. Bom, então, vejam que eu estou mais voltando pra trás do que…
(risos)
Olívio –
 Então sou um militante da base do sindicato. Isso em 1970. E, ao mesmo tempo, me preparo pra fazer vestibular, porque eu saí daquela luta por aquela escola e aquela escola precisava de professores e eu não tinha formação de professor né. Eu digo: “não, mas essa luta vai continuar, e eu posso ser convocado pra ela. Então, quero estudar, aproveitar que estou aqui”. E fiz vestibular direto pra fazer Língua e Literatura Inglesa por conta dessa pequena experiência.
Poti — O senhor tinha vontade de ser professor?
Olívio –
 Era, por conta daquela experiência. Tinha sido professor naquela escolinha que a gente instalou. Não tinha como não ser. Era gratuita a escola. Claro, tinha que funcionar num colégio público. Era gratuita. Não tinha dinheiro pra cobrar, não tinha como cobrar dos alunos. Portanto, não tinha como pagar professor. Então, era mais um trabalho de consciência assim. Hoje elas são pagas. Por isso têm o nome de Escolas da Comunidade. São boas escolas. Algumas. A maioria, eu penso. Tratei, então, de fazer vestibular pra isso, por conta dessa perspectiva e tal. Minha fonte de renda, meu trabalho profissional, era bancário. Então, o meu expediente começava às 12h30 lá nessa agência da Francisco Trein com a Assis Brasil, 12h30 tinha que estar lá, e o curso era aqui na Paulo Gama, perto da Reitoria.

“Demorei mais um ano do que minha turma original pra fazer o curso”

Poti – Na Filosofia.
Olívio –
 Instituto de Filosofia, Ciências e Letras ali. Se não fosse ali não podia ter feito. Então, eu pegava um ônibus lá na Assis Brasil e descia ali na Farrapos com a Barros Cassal, perto da Igreja da Pompeia. Então, subia a Barros Cassal e descia lá, atravessava a Oswaldo Aranha e ia na Paulo Gama. Era sempre um dos primeiros, senão o primeiro a chegar na aula, porque a última aula não podia pegar, tinha que sair mais cedo de lá.
Milton — Tinha que sair correndo.
Olívio — 
Tinha que sair correndo, porque nem boia podia pegar. Portanto, demorei mais um ano do que minha turma original pra fazer o curso, mas fiz. Isso em setenta. Ao mesmo tempo, atuava no sindicato. De noite né, depois do expediente, ia pro sindicato; tinha reunião. Essa é uma questão também séria: o primeiro contato que eu tive com a base do sindicato, com o pessoal que já tinha alguma referência sobre mim, de uma área meio que da Igreja, esquerda e tal, tinha dois bancários presos. Um era o Valneri. Te lembra do Valneri? O Valneri foi vereador do PDT aqui, mas foi cassado. Mas antes o Valneri era bancário. Então, em 1970, quando cheguei aqui, o Valneri estava preso e era da direção do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre (Valneri Antunes, ex-presidente do Sindicato dos Bancários, foi preso em 1968, e eleito vereador de Porto Alegre, pelo PDT, em 1984, tendo sido cassado. Hoje é nome de rua, escola e praça). Tinha sido preso por ser um agitador bancário. Tinha o outro, que era secretário da Federação dos Bancários, que é… sempre me esqueço o nome dele, mas hoje é um alto executivo do Santander. Então estavam esses dois presos. Incomunicáveis. Aí aquele pequeno grupo diz: “olha, esses dois estão presos pela ditadura e não se sabe o que está acontecendo com eles. E isso precisa ser denunciado e nós temos que construir essa coisa toda”. Foram torturados. E aí estavam presos e nós dissemos: “pôxa, e o sindicato? O sindicato não tem feito nada”. Então, nós já tínhamos uma indisposição com o sindicato. O presidente era o Luiz Carlos Mazuhy Cunha, uma boa pessoa, um cara do Banco do Brasil, e acho que (era da) periferia do Partidão. Mas, eu não conhecia. Não conhecia nem o sindicato, nem a direção. Estava tomando pé naquela situação e entrando de corpo inteiro pra organizar uma denúncia sobre aquelas duas prisões. Fizemos muitas reuniões. E eu sem conhecer a cidade, sem conhecer o ônibus que tinha que pegar pra ir aqui, pra ir ali, pra fazer uma reuniãozinha semiclandestina, pra organizar um texto que denunciasse aquelas duas prisões. E, depois de produzir aqueles textos, como imprimir? Como fazer chegar na categoria? Então foi um tempo que… Mas, foi possível.

"Passamos uma semana datilografando os endereços das agências bancárias" l Foto:Ramiro Furquim/Sul21
Nós pegamos a lista telefônica e pegamos todos os endereços das agências de banco aqui de Porto Alegre. Depois pegamos envelopes em branco, e uma máquina velha. Passamos uma semana datilografando com os endereços das agências bancárias, em duas, três máquinas diferentes. Depois, nós distribuímos em diferentes pontos da cidade para entregar no Correio. Fomos nas agências de periferia e tal. Colocamos para cada agência, dependendo do tamanho que nós calculávamos para aquela agência, um número maior de folhas. E eu trabalhando na agência. Estava ainda lá na Cristo Redentor. Era o seu Calegaro o gerente. Ele me respeitava muito, porque eu sempre fui de cumprir horário, fazer bem as tarefas. O meu trabalho sempre foi elogiado, né. O gerente me chamava para ser o redator de correspondência e tal. E, claro, eu recebia a correspondência e distribuía. Aí chega aquele envelope (e eu disse:) “seu Calegaro, também tem esse envelope; chegou aqui, junto com outro”. Entreguei pra ele e fiquei né (esperando); aí o seu Calegaro diz: “olha, essa correspondência aqui está meia… Mas, tudo tem cara do sindicato entrega aí pras pessoas que acho que elas têm que ler”. Aí, eu entreguei.
(risos)
Olívio — 
Aí eu desci. Passei em outro banco na Assis Brasil. Tinha três ou quatro agências (no caminho) antes de chegar em casa, e tive ocasião de ver se tinham recebido ou não. Em algumas, o gerente simplesmente tinha horror. Botava no lixo como se estivesse pegando fogo nas mãos dele.
Olívio – Eu continuei trabalhando no Banco e estudando. Sei que chega um tempo lá (em que) os três diretores antes de mim efetivos, ou quatro, fizeram acordo com o Banco. Foram fazendo. Naquela época os caras queriam se resguardar do sindicato né, para depois não serem demitidos dos bancos. Estavam querendo sair por uma outra, então fizeram acordo com o Banco. Aí o Mazuhy (presidente do Sindicato) disse: “olha, tu é o quarto suplente, e não tem mais (ninguém) aqui. Tu vai ter que assumir e tal”. Aí que eu assumi naquela área de comunicação do Sindicato. A partir dali, nós trabalhamos “O Bancário” (jornal do Sindicato), feito lá pela cooperativa (Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre), e começamos a estabelecer uma relação e a fazer as circulares do Sindicato ser mais atrativas para ser lidas, debatidas, (fazendo) deseínho e tal. Já tinha também a experiência que comecei a ter com o Lula (Luiz Inácio Lula da Silva) — a gente se conheceu em 1975. Também acho que no país já estava começando a ter algum respiro por conta de uma série de coisas. Depois na próxima eleição, em seguida, um ano depois de isso aí, encabecei uma chapa. Encabeçamos uma chapa e apareceu uma chapa… uma chapa…

Experiência de Lula como líder sindical ajudou Olívio l Foto: xavierpt.blogspot.com
Antônio Oliveira — Uma chapa de oposição.
Olívio –
 Não, não de oposição.
Antônio Oliveira — Não?
Olívio — 
Não, eu não fui oposição ao Mazuhy. Mas tinha uma área daquela direção que não queria nada com o pastel. Muito escagaçada, muito com medo das coisas. E tinha um setor da base que era de centro-direita, de direita escondida, que veio pra eleição e foi derrotada. Aí as coisas vão se desdobrando, se desabrochando o sindicalismo de base que nós sempre propugnamos e começamos a colocar em prática. Aí que eu vim ter a resposta para aquela pergunta que ficou me martelando na cabeça: “por que lá, em 1962, naquela greve, nós fizemos uma reunião pra participar da greve, decidir, e dois dias depois ela terminou sem nenhuma consulta, sem uma nova reunião?” Eu perguntava pra um pessoal mais antigo, pra um colega meu, por sinal já falecido, bela pessoa, o apelido dele era Pelegão.
Igor Natusch — Por que será?
Olívio –
 Porque ele era…
Rachel — Ah ele que te deu a resposta né? Está certo.
Olívio –
 É, foi o Pelegão quem me deu a resposta. O apelido dele era Pelegão. O Pelegão vinha para a zona do sindicato, mas ele também era bancário, profissional. Bancário de terno e gravata. Fazia questão disso. Não sei qual era a ligação ideológica e partidária (dele), mas eu acho que ele também era de uma área de periferia do Partidão. O Pelegão vinha pras assembleias e o pessoal, lá na agência dele, da mesa ali do lado, no outro dia, perguntava pra ele: “e aí, o que aconteceu na assembleia? Qual foi a decisão?” E ele ficava (dizendo:) “pô! Por que vocês não foram? Não faltou convite. Tem que ir. Vocês são tudo uns pelegos”. O pessoal carinhosamente começou a chamar ele de Pelegão.
(risos)
Olívio –
 E ficou com esse apelido carinhoso de Pelegão. Ele era querido do pessoal.

“Se alguém puxasse a nossa gravata, de tão mal que nós estávamos, era capaz de dar descarga”

Rachel — O senhor não tinha apelido?
Olívio — 
Não.
Rachel – Não?
(risos)
Olívio –
 Não, não tinha não. Esse pessoal que eu estou falando era um pessoal mais antigo né, que eu vim conhecer aqui. O Pelegão era essa pessoa. Eu disse: “Pelegão, me diz por que aconteceu aquilo?” E o Pelegão diz: “olha, Olívio, seguinte: nós fizemos uma reunião, e os bancários estavam tão mal, que a gente passava de gravata na Rua da Praia no final de expediente com a canetinha Bic, dando as nossas palavras de ordem, mas eu te confesso: se alguém na beirada da calçada puxasse a nossa gravata, de tão mal que nós estávamos, era capaz de dar descarga. A situação estava tão mal, mas nós tínhamos que andar de gravata. Mas se alguma pessoa puxasse a gravata ali dava descarga. Pois era essa a situação em que nós estávamos vivendo. E fizemos uma assembleia aqui na Adega Espanhola”. É aqui perto, na rua dos… Andrade Neves.
Antônio Oliveira — Andrade Neves.
Olívio –
 Andrade Neves. Adega Espanhola, espaço da antiga Sociedade Espanhola…

"A direção do sindicato historiou a situação e a resposta só podia ser uma: greve. Estourou a greve" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Antônio Oliveira — Salão de cima.
Olívio — 
Mas é um salão que, com 300 pessoas, fica apinhado. Fizeram a reunião lá, e aquilo estava apinhado de gente. Aí a direção do sindicato historiou a situação e a resposta só podia ser uma: greve. Estourou a greve. Aí, depois, eles foram ver que eram 300 bancários, que não tinham relação nenhuma com as agências. Tinha a necessidade da categoria. Tinha um dado concreto. Aprovada a greve naquela reunião, eles contornaram aquela esquina na Rua da Ladeira e subiram. Era quase meia-noite. (Foram) no palácio, falar com o Brizola, que era o governador. E ficaram ali chateando pra entrar, pra falar com o governador e tal. E não abriram. O pessoal da assessoria do Brizola dizendo: “mas, a essa hora?! O governador tem a agenda pesada e tal”. Aí o Brizola recebeu (o pessoal), depois de um tempo e disse: “o que vocês querem?” (Responderam:) “olha governador, é o seguinte: a situação é essa: os banqueiros estão sem nenhum diálogo conosco. Não fizeram nenhuma proposta. A categoria está mal. Nós temos feito passeata de fim de expediente. Fizemos assembleia agora e a categoria decidiu pela greve. Não queremos que amanhã a gente chegue na porta do Banco e a polícia esteja lá, impedindo nossos piquetes”. “Ah é só isso? Está bem, a polícia não vai estar impedindo vocês de levar adiante o movimento, com ordem e tal” (afirmou Brizola). Então, no dia seguinte, eles chegaram — os que puderam ir nas portas dos bancos, dos principais bancos — pra dizer que estavam em greve. Muitos realmente não foram trabalhar, voltaram pra casa ou foram para seus estudos. Digamos, metade da categoria foi trabalhar. No dia seguinte, digamos 80% da categoria não foi trabalhar. Mas no dia seguinte a esse tinha a convenção estadual do PTB, que iria designar o sucessor … o candidato à sucessão do Brizola. E aí é que a porca torceu o rabo. O diretório elegeu para ser o sucessor, o candidato à sucessão do Brizola, o Egídio Michaelsen, que era, na época, dirigente do Sindicato de Bancos. Porque ele era da diretoria do Banco Agrícola Mercantil. Mas lá no passado, de 60 anos atrás, ele tinha sido bancário. Era uma pessoa boa, do PTB. O Egídio Michaelsen depois veio a ser ministro da Fazenda naquele curto período do parlamentarismo com o… esse daí, que morreu aí… o Tancredo (Neves, primeiro dos três premiers do regime parlamentarista).

“Fizemos um trabalho intenso de organização do sindicato pela base”

Poti — Isso.
Olívio — 
Foi essa figura que a convenção do PTB, naquele dia, elegeu para ser o candidato da situação à eleição seguinte, para substituir o Brizola. Aí não interessava mais pro governo, pro Brizola, os bancários em greve. O outro lado era o Egídio Michaelsen, na direção do Sindicato dos Bancos. Então, o Brizola chamou o comando da greve. (E disse:) “vocês vieram aqui conversar comigo, agora eu quero conversar com vocês. (risos) Então, se vocês têm força pra fazer a greve, façam, mas o governo não pode estar, de forma alguma, descuidando disso, porque o nosso candidato é o doutor Egídio Michaelsen”. “Bom, mas aí vai ser melhor governador, porque ele pode convencer lá os seus pares do Sindicato de Bancos”, (disseram os bancários). “Ah! Vocês querem jogar na mão do nosso candidato essa situação?” (perguntou Brizola). Eu sei que o pessoal saiu dali, e não tinha condições (de continuar a greve), porque o sindicato não estava organizado pela base, (para) segurar a greve. Então fizeram uma assembleia com pouca gente. Diga-se os 300 que tinham ido antes, por conta da situação, e a greve então terminou com a negociação que pudesse acontecer. Por conta disso, na minha cabeça eu tenho razão: naqueles tempos pré 1964, o movimento sindical estava muito atrelado aos governos, (era) aparelho do estado. (Estava atrelado) pela própria CLT. O capítulo quarto da CLT coloca o sindicato como uma extensão do estado, com controle do Ministério do Trabalho, da Delegacia Regional do Trabalho. Mas, durante o PTB no governo, né, a CLT nunca foi aplicada. Mas, na verdade, (o governo) tinha um controle sobre a vida do sindicato. Havia o peleguismo. Tanto que se os dirigentes estivessem apascentando o rebanho, garantindo para os governantes uma relação com o trabalho, estava tudo bem. Os dirigentes (sindicais) dependiam do humor dos governantes. Não era da base (que dependiam). Não instigavam a base para se organizar, para se mobilizar. Então, nós (dissemos:) “mas, assim não. O Sindicato não pode ser isso. Não é assim. Não deve ser assim”. E já tinha um grande movimento das oposições sindicais pelo país a fora, nas diferentes categorias. O jornalismo também tinha. Tanto que os jornalistas ganharam a direção do Sindicato lá em Brasília com o Castello Branco e outros (o colunista político Carlos Castello Branco foi eleito presidente do Sindicato dos Jornalistas de Brasília em 1977 e exerceu o cargo até 1981). Já tinha um processo grande no país. Começavam esses movimentos. Nós, aqui, do nosso jeito, já fizemos um trabalho intenso de organização do sindicato pela base. (Promovemos) núcleos de encontro, seja nas igrejas, nos bairros, em associações comunitárias, em clubes ou até mesmo em pequenos espaços culturais locais. Reunia pouco, mas reunia um pessoal que irradiava. Então, a categoria teve ressurgimento na sua organização, elevação de seu grau de consciência, de compreensão. E a luta democrática então se complicou com a luta…

“Ah! Vocês querem jogar na mão do nosso candidato essa situação?” perguntou Brizola aos grevistas de 1961 l Foto: Acervo Fotográfico do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa
Milton — Como é que foi a prisão…
Olívio 
– …a luta econômica da categoria, pelas questões próprias, específicas da categoria se enlaçou com as questões da liberdade, da democracia, dos direitos sociais, numa legislação trabalhista que não a corporativa, fascista. E aí vai se ligando as coisas com a luta também pela liberdade dos presos políticos, contra a tortura, pela volta dos exilados, pela anistia, pela Constituinte. Então, isso é um processo, e nesse processo que o sindicato nosso teve papel importante, mas sempre junto com outros sindicatos: o Sindicato dos Jornalistas foi importante, o Sindicato dos Eletricitários, do Vestuário, dos Metalúrgicos…
Antônio Oliveira — Petroleiros.
Olívio –
 …Petroleiros. Tinha sindicatos também de classe média, dos Arquitetos, e até mesmo…
Antônio Oliveira — Dos Engenheiros.
Olívio –
 É, dos Engenheiros. O dos engenheiros tinha um cidadão lá que falava francês e era… (risos) Mas assim mesmo … nós fomos pelas beiradas e aí começa também o ressurgimento da Intersindical né. E aquele texto que nós fizemos contra as alterações na Previdência. Nós saímos a campo, perseguidos pelas federações, pelas confederações, pelos TRTs, pela Polícia Federal, mas conseguimos constituir uma afirmação de uma posição e as coisas foram se revigorando e as relações também inter-regionais das diferentes categorias de nível nacional foram acontecendo, porque nós começamos, também, a ser mais criativos, para romper aquelas amarras do regime. O regime era esperto. Naquele determinado momento colocou nas secretarias estaduais do Trabalho os democratas cristãos. Tinha o Marchezan (Nelson Marchezan, que era do Partido Democrata Cristão, no bipartidarismo, filiou-se à Arena. Foi deputado estadual e federal. Faleceu em 11 de fevereiro de 2002), tinha aquele outro ali de Pelotas, que foi senador biônico e era representante do Brasil no OIT. Esses caras eram os cabeças. Tinham um discurso anticomunista né, mas não arreganhavam as mandíbulas. E então criavam áreas de cooptação, como a Semana Sindical antes do Primeiro de Maio. O regime militar bolou e as diferentes delegacias regionais do trabalho organizaram nos estados uma semana sindical oficial. Fazer aquelas coisas de bandeiradas pelo Brasil: Ame-o ou deixe-o. Nessa época não tinha essa coisa de potência, patriotismo, nacionalismo, e também distribuição de favores, de, enfim, negócio pra lambuzar bem o beiço.
Antônio Oliveira — Pelotas era o Chiarelli.
Olívio –
 Era. O Chiarelli (Carlos Chiarelli foi deputado federal, senador e ministro da Educação do governo Fernando Collor) foi o secretário do Trabalho. Foi o Marchezan. Aquele grupo de democratas cristãos e tal. Esse pessoal, por um tempo, dominou as áreas sociais, desempenhando o papel que o regime queria que desempenhasse. Aí nós criamos as semanas sindicais paralelas. Os sindicatos realizaram uma Semana Sindical paralela àquela oficial, para reunir…

“Quando a nossa greve aconteceu, em 1979, não só o regime achava que ela ia ser quebrada pelo meio imediatamente”

Milton — Na mesma época?
Olívio –
 Sim. Debatia temas, também fazíamos teatro. Fizemos um filme. Nós trazíamos uma pessoa do movimento sindical popular, de outras regiões, até do Centro do país. O Lula esteve aqui numa dessas ocasiões. Aí também passamos a criar situações para que isso se espraiasse, se alastrasse. Então, tinha aniversário de sindicatos importantes. Organizávamos a nível nacional. Aniversário do Sindicato dos Bancários aqui em Porto Alegre, do Sindicato dos Metalúrgicos. Bolávamos coisas assim, além do Primeiro de Maio. Em torno disso, nós nos congregávamos, trocávamos ideias, estabelecíamos redes. Eu acho que isso é muito importante porque, quando a nossa greve aconteceu em 1979, não só o regime achava que ela ia ser quebrada pelo meio imediatamente, como até áreas mais próximas de nós, como é o caso do pessoal do Brizola. O Brizola estava chegando no país naquele mesmo dia da intervenção do Sindicato. O Brizola chegou no país, desceu lá em São Borja. Não veio pra cá. Ele ia esperar até o fim daquela questão. Certamente, com a derrota da categoria, com o fim da greve, e pela imposição e intervenção no Sindicato e a nossa prisão. Mas a greve não foi uma coisa intempestiva, aloprada. Foi uma construção que veio sendo feita, primeiro, pela necessidade da categoria em torno de suas demandas salariais, condições de trabalho, data de reajuste, e, segundo, pelo momento político, pelas relações que já tinham se estabelecido com outras demandas mais gerais, de democracia, liberdade, liberdade de autonomia sindical, essas coisas. Então, a categoria estava com um bom preparo de base, boa consistência, tessitura organizativa, que, com a minha prisão e a prisão de outros companheiros da direção, como o Felipão e outros. É. Tinha uns quatro ou cinco presos, mas eu fui o que ficou mais tempo.

Greve dos bancários em 1979 l Foto: Memorial do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre
Poti — Quanto tempo o senhor ficou preso?
Olívio –
 Dezenove dias.
Igor — Na sede da Polícia Federal?
Olívio –
 Da Polícia Federal, na Avenida Pernambuco…

Antonio Oliveira — Paraná.
Olívio –
 Avenida Paraná, isso.
Milton — E o PT?
Igor –
 É justamente o que eu ia perguntar. tive oportunidade de assistir a um vídeo, que eu considero histórico, que é o vídeo do congresso da fundação do PT, que mostra todo o ambiente, todo o processo, inclusive a necessidade de conseguir acomodação pra todo mundo, alimentação. Então eu queria perguntar para o senhor isso aí: como foi esse processo de conceber o PT e como é que o senhor entrou nessa história? Como o senhor foi participar da fundação desse novo partido?
Olívio –
 Então, as coisas se imbricam né. Chega um certo momento que não tem como se fazer as coisas separadas, compartimentadas. Em um processo de luta como aquele no final da década de 70, as coisas estão conjugadas. A luta por liberdade e autonomia sindical é a luta pela democracia, pela liberdade no sentido mais caro para todos. A luta por melhores salários e condições de trabalho era a luta contra a política econômica do regime. A luta pelas leis sociais, pelo funcionamento do Estado no atendimento das demandas mais caras para a maioria da população é uma luta contra o regime que colocou o Estado a serviço das elites mais tradicionais, mais reacionárias. Então, foi nesse bojo que se começou a discutir o papel dos sindicatos e os limites, os partidos e os seus limites. Como? Os sindicatos têm que ter uma luta que os recupere, uma estrutura corporativa. E os partidos não podem ser uma decisão de cima pra baixo, aquele bipartidarismo do MDB e da ARENA, aquela que era senhor sim, sim senhor. E também, claro, uma visão sobre os partidos tradicionais, históricos, da esquerda. De certa forma, uma crítica, na nossa visão, de que não existe essa do partido da classe operária. Até porque vivemos em um tempo que o sujeito histórico operário é uma fração da classe trabalhadora. Então essa discussão foi sendo feita, foi andando por dentro do movimento sindical. Já tinha nos movimentos sindicais, nas oposições sindicais, a presença, evidentemente, do pessoal de organização de esquerda, organizada. Eu nunca tive nenhum vínculo orgânico com nenhuma organização. Isso não é virtude, mas eu também acho que não é defeito. Mas sempre (estive) numa periferia na esquerda. Sem estar ligado organicamente, mas comprometido com um processo de não se acomodar nos cargos, nas estruturas da burocracia, mas buscar fazer que essas estruturas fossem apropriadas por sujeitos novos da base da sociedade nas lutas sociais, enfim. Isso tudo foi costurando a ideia de ter um partido não surgido nos gabinetes executivos ou legislativos, nem nos gabinetes burocráticos da estrutura sindical corporativista. E isso levou muito tempo, várias reuniões. Eu integrei a primeira comissão nacional pró-PT. Acho que aqui estava também o Clóvis Ilgenfritz (da Silva, vereador, deputado federal suplente e candidato derrotado ao governo do Estado, em 1986) nessa comissão. Tinha uns outros aqui do Rio Grande. E essa comissão então passou a circular. Muitos nos seus próprios estados, e também convocados para ir em outras regiões aqui e ali, em um intercâmbio que foi amadurecendo essa ideia. Claro que, em um determinado momento, nós vimos que os companheiros, parceiros de luta social e política contra a ditadura, mais ligados com os partidos da esquerda, como o PCB, o antigo Partidão, o PC do B e outras frações do partido, começaram a ter uma postura um pouco mais distante da ideia de um partido como se propunha a ser o futuro, então, Partido dos Trabalhadores. Lembro do tempo em que fui eleitor aqui do (senador peemedebista Pedro) Simon, quando o Simon se candidatou a senador. (Lembro) como a gente foi em torno do Brossard. O Brossard era mais lá na primeira metade da década de 70, né.

Bancários em greve esperavam pelo apoio de Brizola, que acabara de retornar ao país l Foto: Memorial do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre
Igor — Brossard contra Nestor Jost.
Olívio — 
É, contra o Nestor. Foi memorável aquilo. Eu ainda estava fazendo curso lá, nem estava na direção do Sindicato ainda.
Milton — Foi uma coisa aquilo.
Olívio –
 É, mas depois, lá pro final da década de 70, nós, nesse processo, lutávamos no campo mais progressista, por dentro do PMDB. O Fernando Henrique Cardoso muitas vezes foi no sindicato lá em São Bernardo (SP). Estive em reuniões com Lula e ele. E ele, em determinado momento, estava querendo nos convencer que o partido de corte como se propunham os trabalhadores não teria futuro. Então, ele estava entrando numa de um partido popular, mas não de corte classista como pretenderia ser o PT, na linguagem dele, essas conversas…
Milton — Quando isso?
Olívio –
 Lá em…

“FHC e Gabeira faziam palestras concorridíssimas naquela época”

Poti — 1979.
Olívio –
 É, 1978, 1979. Uma vez, aqui mesmo em Porto Alegre, o Tarso (Genro, governador do RS), que não estava na fundação do PT, nem na comissão de fundação do PT — Tarso se filiou no PT em 1984 –, era advogado do Sindicato dos Bancários, e eu era o presidente do Sindicato. O Tarso atuava, partidariamente, dentro do PMDB, ideologicamente em correntes ali. Tinha um corte mais de esquerda, aquelas frações dentro dos PCs. Então, ele uma vez me convidou pra ir na casa dele, lá na Tristeza, porque tinha uma conversa lá. Ele ia reunir as pessoas — intelectuais, advogados, professores, as figuras que estavam discutindo ideias, propostas. Estaria lá o Fernando Henrique Cardoso, que eu já conhecia. O Fernando Henrique Cardoso, naquela época, fazia palestras concorridíssimas nas universidades, nos sindicatos, assim como o (ex-deputado Fernando) Gabeira. São dois caras que eram concorridíssimos. O Gabeira fazia palestra no meio da praça, da rua. Lembro de uma palestra do Gabeira na Praça da Alfândega ali, e o Fernando Henrique nas universidades. Então, o Fernando Henrique estava na crista da onda do pensamento que se opunha à ditadura, com expectativa de uma saída. Então, o Tarso me convenceu que eu devia ir lá. Bom, fui lá. Fiquei sentado num canto, e o Fernando Henrique falando pro povo ali. Então, eram movimentos que estavam sendo feitos para tentar — não digo ganhar o nosso projeto, mas tentar — fazer com que arrefecêssemos aquela ideia de um partido com aquele corte, aquela origem. E para nós não tinha isso; seria, mais uma vez, os trabalhadores, os sujeitos sociais novos, surgindo naquele momento, serem uma espécie de rebanho né, massa de manobra. Nós tínhamos uma radicalidade. Temos de assumir os nossos limites, evidentemente, mas o Partido dos Trabalhadores tem uma visão de país, de protagonismo. Enfim, (perguntamos) o que está em jogo? Qual o papel do Estado brasileiro? A sociedade, o estado, o governo, as leis, quem faz? Quem sofre isso? Enfim, nós passamos a fazer muito debate em torno disso, da história, dos estudos que já tinham, que estavam surgindo, das experiências de luta. Começou a se intensificar um intercâmbio dessas coisas, dessas experiências, que ligavam a história com o presente; as experiências contemporâneas, tudo ligado com a ideia da democracia como uma coisa viva e o Estado como algo que tinha que sofrer profundas mudanças. O Estado não podia ser um instrumento de controle da sociedade. A sociedade é que tinha que ter um controle sobre o Estado. E o Estado não é uma extensão da propriedade dos mais ricos, dos mais poderosos, dos mais influentes. O Estado tem que estar permeado pela ideia de nação. Enfim, essas coisas que foram entrando pro nosso entendimento. O Estado brasileiro, nessa ideia, funciona muito bem pra muito poucos e não funciona ou funciona muito mal para a maioria. Então, como mudar isso? Contemporizar com ele? Compor com quem dele se beneficia? Então, tínhamos uma radicalidade, sempre partindo da transformação e não da acomodação. Resistiu-se a esses assédios, a essas conversas. Saímos a campo com todos aqueles impedimentos que a ditadura colocou para surgir o partido. Lembra que nós tínhamos que ter cinco candidaturas majoritárias no estado, um número percentual X de filiados registrados nos tribunais para poder existir. E nós, primeiro, para ter candidato, nós tínhamos que ter um percentual X por estado e tal. Nós saímos a campo, e não foi fácil, mas construímos esses elementos básicos, que transformassem aquela ideia numa possibilidade do partido…
Milton — A primeira eleição que houve foi a de 1982 quando o senhor já se elegeu governador.
Olívio –
 É, aí nós conseguimos registrar o partido. Fizemos aquele célebre encontro no colégio… como é o nome daquele colégio? Nem lembro (Colégio Sion, em São Paulo). Tem uma foto ali de que me orgulho. Estou sentado ao lado do Sérgio Buarque de Holanda e do Lula. O Sérgio Buarque de Holanda é um dos fundadores do PT. O (escritor) Antônio Cândido. Aquele… grande figura trotskista, grande crítico de arte, qual é o nome dele? Escreveu “A opção imperialista”. É bela pessoa, grande intelectual.

Sérgio Buarque de Holanda, Olívio Dutra e Luiz Inácio Lula da Silva l Foto> picassoventura.blogspot.com
Milton — A opção imperialista?
Olívio
 — É, e…

Poti — Mário Pedrosa (autor, também de A Opção Brasileira).
Olívio –
 Mário Pedrosa, Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Holanda. Tinha outros nomes. E o jovem Apolônio de Carvalho (militar, pertenceu ao Partido Comunista Brasileiro, militou na ANL – Aliança Nacional Libertadora). Bom, aí entra uma geração bem anterior à nossa, e tantos outros. Bom, aí enfrentamos a primeira eleição do partido em 1982. Tínhamos que ter candidatos em cinco estados da Federação. Então, o Lula foi candidato ao governo de São Paulo. Eu fui candidato aqui no Rio Grande. Nós tivemos a candidatura ao governo de Santa Catarina (Eurides Luiz Mescolotto, que teve como candidato a vice Vitório Sistherenn) que hoje parece que é presidente daquelas centrais elétricas ali (Eletrosul – Centrais Elétricas S/A, subsidiária da Eletrobrás – Centrais Elétricas Brasileiras S/A). Tivemos um candidato ao governo lá no Rio de Janeiro, um companheiro metalúrgico (Lysâneas Maciel, advogado trabalhista, deputado federal por diversas legislaturas, cassado e exilado). Tinha um candidato ao governo de Minas, um companheiro petroleiro (Sandra Starling de Azevedo, fundadora do PT, foi candidata ao governo do estado e Milton Freitas de Carvalho, a vice-governador. Sandra deixou o PT em 2010, por não aceitar que o peemedebista Hélio Costa fosse o candidato da base governista ao governo de Minas). Tínhamos uns cinco estados.

Apoio dos bancários à candidatura de Olívio ao governo do Estado l Foto: Memória do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre
Milton — Eram quatro candidatos né, em 1982?
Olívio –
 Parece que eram cinco que tinha que ser.

Milton — Não, não, mas aqui no Rio Grande do Sul eram quatro partidos.
Olívio — 
Ah sim, aqui.
Milton — E aí ganhou o Simon.
Olívio –
 Ganhou o Jair Soares.
Milton — Jair Soares, desculpe. Jair, Simon, Collares... (os candidatos ao governo no RS em 1982 foram Jair Soares, do PDS; Pedro Simon, do PMDB; Alceu Collares, do PDT, e Olívio Dutra, do PT).
Olívio – Britto (Antonio Britto foi candidato vitorioso em segundo turno, pelo PMDB, em 1994, vencendo Olívio Dutra, do PT. Perdeu, em segundo turno para Olívio Dutra, em 1998).

Poti — O Simon jogou a toalha em seguidinha
Foi para a praia (o peemedebista Pedro Simon ganhou as eleições de 1986, disputadas com Aldo Pinto, do PDT; Carlos Chiarelli, do PFL; Clóvis Ilgenfritz, do PT, e Fúlvio Petraco, do PSB).
Milton — Ah é, porque tinha a questão da recontagem.
Olívio — 
Então, na sequência ali, ganhou o Jair, que era homem do regime.
Milton — Claro, PDS.
Olívio — 
PDS, não, era ARENA né?
Milton — Acho que era PDS.
Antônio Oliveira – Era PDS.
Olívio –
 É, PDS (o bipartidarismo – PMDB e Arena – foi extinto em 1979). Então ganhou o Jair, depois o Simon, depois o Collares, depois o Britto e depois nós.

Milton — Chiarelli não era candidato?
Olívio –
 Não, eu digo quem ganhou as eleições nessa sequência. Os candidatos eu não me lembro quantos candidatos que eram.

Antônio Oliveira — O Marchezan foi candidato naquela do Jair 
(Nelson Marchezan foi candidato a governador em 1990, pelo PDS, juntamente com Alceu Collares, pelo PDT, José Fogaça, pelo PMDB, e Tarso Genro, pelo PT. Collares venceu em segundo turno, derrotando Marchezan).
Olívio — Eu sei que eu fui candidato em 1982. Depois nós tivemos outras eleições e o PT teve candidato ao governo também. Acho que o Clóvis (Ilgenfritz) foi nosso candidato (em 1986); acho que o (deputado) Raul (Pont) também foi nosso candidato (Pont não concorreu ao governador do Estado. Foi vice-prefeito de Porto Alegre, de 1993 a 1996, e prefeito, de 1997 a 2000). Não me lembro. A nossa candidatura à vice na época era uma mulher, companheira gráfica, Geci Prates (em 1982). Geci Prates, nossa candidata à vice-governadora, gráfica lá de Caxias do Sul (Geci faleceu no dia 15 de junho de 2010).

“Nós lutávamos por uma Constituinte livre, soberana e exclusiva”

Milton — Mas em 1986 o senhor não foi candidato a governador. Já foi candidato a deputado federal e ficou com o Lula em Brasília.
Olívio –
 A Constituinte. É isso. Veio a Constituinte, né. Fomos eleitos eu e o (senador Paulo) Paim. Tive a maior votação, o Paim, a segunda, a deputado federal constituinte. É bom lembrar que nós lutávamos por uma Constituinte livre, soberana, exclusiva. Tinha uma legitimação importante. Acabou sendo um Congresso Constituinte, inclusive com constituinte biônico né, que eram os senadores que tinham sido eleitos há quatro anos atrás e tinham mais quatro anos de mandato pela frente. Não foram eleitos para essa Constituinte, né. Então veio a Constituinte, e fomos eleitos, e andamos por esse país afora. Aí é que fomos morar no mesmo apartamento lá em Brasília, que é um potreirão aquele apartamento lá. E nós fizemos daquele apartamento um espaço para o movimento social popular sindical. Para quem fosse a Brasília. E foram muitas vezes levar as reivindicações, (fazer) a pressão sobre o Congresso Constituinte, (apresentar) as demandas sobre as comissões. Então, aquele apartamento pulava de gente. E eu era encarregado de não deixar a coisa degringolar no gasto, na conservação das coisas. Prestava contas mensalmente para nós ali. O Paim esteve um tempo conosco, mas ele logo em seguida…
Bruno Alencastro/Sul21
Paim foi eleito deputado constituinte e por um tempo dividiu o apartamento com Olívio e Lula lFoto: Bruno Alencastro/Sul21
Poti — Quem morava no apartamento oficialmente?
Olívio –
 Era eu, o Lula e o Paim. O Paim ficou acho que uns seis meses; nós ficamos todo o tempo. O Lula não levou a mulher, nem eu. Mas, eventualmente, elas iam, no final de semana. Agora eu levei o meu cunhado com a minha irmã, para eles ficarem lá. Ele é bom cozinheiro. Era cozinheiro do quartel. Então, cozinhava bem para bastante gente. O Edgar da Silva Martins e a minha irmã moraram ali para atender as questões de manutenção, conservação e atendimento daquele pessoal todo ali. Foi uma experiência também interessante de compartilhar, de não se encantar com as facilidades, com as mordomias. Nós éramos contra aquele fundo dos parlamentares (Fundo de Aposentadoria Parlamentar). Não aceitamos aquele Fundo. Mas, disseram: “não, não adianta vocês não aceitar. Vocês vão pagar igual. É descontado em folha”. Aí nós fizemos — foi o meu caso — contribuição como trabalhador autônomo. Nos meus dois anos de mandato lá, eu contribui para o INPS (Instituto Nacional de Previdência Social, criado em 1966. Em 27 de junho de 1990, com a fusão do INPS e do Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social – IAPAS, surge o INSS – Instituto Nacional de Seguro Social) como trabalhador autônomo. Mas não pude evitar que me descontassem. Continuei contribuindo para o tal do Fundo lá, que nós sempre quisemos derrubar e não conseguimos. Aí, quando chegou a hora de eu me aposentar, em 1996…
Milton — Mas vocês eram altamente minoritários, né?
Olívio –
 Ah sim, éramos. Nossa bancada, acho que era 16, e, no conjunto, nós, a esquerda e centro-esquerda, éramos 112 parece.
Milton — Tomavam um vareio certo.
Olívio –
 E tinha o Centrão (formado pelo PFL, PDS, PTB, parte dos parlamentares do PMDB e outros partidos menores).

“A concentração de renda no Brasil só perde para a Bolívia e o Haiti”


Ulysses Guimarães abre a Assembleia Nacional Constituinte l Foto: educacional.com.br
Milton — Ah o Centrão.
Olívio –
 E o Centrão manobrava muito bem ali. Neles estava o (ex-deputado constituinte e atual ministro da Defesa Neslon) Jobim. O Jobim chegou a aprovar uma coisa sem levar para o plenário. Ele mesmo ainda hoje se gaba disso. E era um homem de saber jurídico e tal. Então, o Ulysses (Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte), espertíssimo né, o Senhor Constituinte, manobrava de tudo para a esquerda não assumir nenhuma das principais comissões. O trabalho da Constituinte se desdobrou em várias comissões. Então, eu percebia que o Ulysses, com o reconhecimento que tinha geral, trabalhava nos bastidores para a esquerda não assumir as principais comissões. Mas eu acho que foi um trabalho sério, importante que fizemos. A Constituição de 88, acho que é um negócio enorme pro país, na incorporação de direitos fundamentais. É muito detalhista em alguns pontos; em outros pontos é geral demais. Muitos ficaram para ser regulamentados e até hoje não foram regulamentados. Outros foram e sofreram reformas, que reduziram o impacto do avanço, que no original significava. O processo de Brasil e nação, país, sob o controle da sociedade brasileira, com o Estado funcionando bem, não para alguns ou pra poucos, mas para a maioria, isso é um… Está em andamento esse processo; ainda não é algo que conquistamos. Os dois governos do presidente Lula foram muito importantes, mas a estrutura fundamental do Estado brasileiro não foi mexida. Não tínhamos condições para fazer isso. Tanto que nós estamos com um país com concentração de renda que só perde para a concentração de renda do Haiti e da Bolívia. Com uma população de mais de 16 milhões de pessoas vivendo com a renda diária de R$ 2,50. Imagina se não tivéssemos os dois governos do presidente Lula, para reduzir como se reduziu enormemente a distância entre os mais ricos e os mais pobres. Mas tem hoje a estrutura do Estado e da sociedade brasileiros. Acho que a importância do PT é não se acomodar, não passar de um partido de transformação a um partido da acomodação. Mas isso depende muito do debate que tem que ter sempre nas instâncias de base do partido, de ele não deixar de ser um partido que debata as coisas. Não (devemos) confundir o projeto estratégico do partido, (nem) a visão de sociedade brasileira, de Estado brasileiro, com o mandato parlamentar, o mandato do Executivo ou o programa de execução que tem que acontecer por um mandato. Nós temos que ser capazes de, num mandato Executivo e Legislativo, produzir o máximo que pudermos para avançar as coisas. Mas, o partido é parte da sociedade. Também tem que ter essa consciência. Ele não é toda sociedade. Então, também tem que estar dialogando com as outras partes, que têm alguma possibilidade de comprometimento com o processo de avanço e transformação. Mas, principalmente, temos que estar aprendendo muito com o povo em movimento, se organizando, se mobilizando. Com os movimentos sociais, que não podem ser correia de transmissão do partido, assim como o partido não pode ser mera correia de transmissão do governo. Mas, nós temos que respaldar e apoiar os governos que nós elegemos. Sabendo dos seus limites. Nós respaldamos, principalmente, quando enfrentam grupos poderosos. Querem fazer que o governo atenda às demandas dos grupos privados em detrimento, em prejuízo, das políticas públicas, no interesse público. Os nossos governos têm que ter um respaldo partidário, social, mas sem que arriemos as bandeiras mais estratégicas. Não fizemos ainda uma reforma agrária com a radicalidade que o desenvolvimento econômico, social, cultural e político do país precisa. E não é por falta de vontade política. Nós, na Constituinte, não conseguimos retirar do texto da Constituição uma espécie de aura sagrada da propriedade. Então, tu vê, tudo que é conflito sobre a terra não se resolve no Executivo, na negociação, tem que ir pro Judiciário.

Assembleia de fundação do PT, no Colégio Sion, em São Paulo l Foto: jcsgarcia.blogspot.com
Milton — O senhor ficou dois anos em Brasília e interrompeu seu mandato para concorrer a prefeito aqui, contra nosso amigo Britto. Nosso amigo não, contra o Britto.
(risos)
Olivio –
 Até nem tanto. Veja que o Britto foi candidato ali, mas nós ganhamos na verdade é do PDT, porque era o (Alceu) Collares o prefeito, e era o Carlos Araújo o candidato (em 1988).
Milton – Ah, é verdade.
Olívio — 
Era o Carlos Araújo o candidato da situação. E o Britto foi candidato ali muito abaganhado, muito enaltecido pela mídia, pela RBS e outras mídias do Centro do país e tal. Ele perdeu a eleição. Eu acho que ele não foi o segundo (em segundo lugar ficou Carlos Araújo, do PDT. Antônio Britto foi o quarto colocado entre sete candidatos).

Milton — Carlos Araújo foi o segundo.
Olívio –
 É.
Milton – Ele (Britto) era, segundo as pesquisas, para ser o segundo, mas o Carlos Araújo passou.
Olívio –
 É. E depois nós perdemos uma eleição no Estado pro Britto né. Perdemos aquela eleição. Acho que fui candidato, né?

Milton — 1994.
Olívio — 
Eu acho que não fui candidato, ou fui?
Milton — Pesquisei a respeito do senhor: “1994, perde o Estado para o Brito”.
Olívio –
 Ah, então foi isso.
(risos)
Olívio — 
Fomos ganhar em 1998, né?
Milton — 1998, exatamente. Quando teve grandes problemas com a dona RBS.
Olívio –
 Ah, é verdade.
http://www.youtube.com/watch?v=2lN4yKUpOcA

“Reduzimos em R$ 100 milhões o custo da permanência da General Motors aqui no Estado”

Poti — Mas governador, a situação na Segurança não foi mais desqualificado ainda o debate?
Olívio –
 Aí teve, claro, preconceitos de toda ordem com relação à nossa visão de humanização do braço armado do Estado, da atuação do (ex-secretário de Segurança, José) Bisol, que já tinha desentendimentos com a RBS. Então, claro, tinha coisas. Mas eu acho que tudo que fizemos – na Segurança, Agricultura, até no desenvolvimento do Estado — foi feito em uma visão integrada de desenvolvimento, de semeadura, não só para o presente, mas para o futuro do Estado. O governo estabeleceu e criou no Estado possibilidades de descentralização, de desconcentração e de valorização de vocações locais, articulando setores entre si e possibilitando que a micro e pequena empresa mais local e regional desabrochasse. Foi isso que possibilitou que o estado crescesse acima da média nacional nos quatro anos. Não dependia, e não depende, de uma única empresa. A nossa ação com relação à Ford não foi uma ação contra a Ford, mas com uma visão de desenvolvimento. A General Motors sentou na mesa, e nós reduzimos em R$ 100 milhões o custo da permanência da General Motors aqui no Estado. Não foi à toa que a direção mundial da Ford jogou toda aquela equipe para a rua. Aquela equipe, que ficou na mão da oposição nossa aqui. Ficou reunida com o Britto. Aquela direção da Ford, ela se reunia com o Britto. Depois de o Britto ter saído do governo, ela se reunia com o Britto para o Britto fazer as articulações com o Fernando Henrique. Uma empresa que estava agindo com interesse pelo o campo ideológico.

"A nossa ação com relação à Ford não foi uma ação contra a Ford, mas com uma visão de desenvolvimento" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Poti — Não recordo governador, a GM já estava instalada aqui?
Olívio –
 Claro, claro. A GM foi junto
Milton — Estava negociando também.
Olívio –
 Sim, estava aqui. Mas, tinha custos enormes para o estado cobrir. Tinha custos enormes. Quando passo ali e vejo a Corsan dentro do parque da GM, digo: “pô! uma empresa pública dentro de um parque de um grupo privado”. E nós brigamos muito. Por quê? Porque no acordo que (a GM) tinha feito com o Britto, a instalação da Corsan era só pra servir a Ford. (Dissemos:) “Não. Está instalada aqui, vai ter as vilas aqui perto, e ela tem que estender, ela vai ter que atender a circunstância aqui, a periferia daqui”.
Milton — Mas o seu governo foi desqualificadíssimo pela RBS em função de todas essas medidas, porque a Ford virou uma panaceia. Ia resolver todos os problemas do Estado, ia ser uma maravilha e tal. A guerra fiscal era…
Olívio –
 Eu penso que não sustentam hoje o que…
Milton — Não, acho que não. Mas na época foi uma coisa muito violenta.
Olívio — 
É, mas eu não estranho, né. Eu não estranho. Acho que não é uma perseguição. É uma visão ideológica de uma empresa de comunicação que tem interesses concretos, que não são públicos. São interesses privados. E se chocou com um governo que defendia, acima de tudo, o interesse público. É natural que tivessem a reação que tiveram.

“O Estado tem que ser na proporção e no tamanho das necessidades e demandas do povo”

Poti — E essa posição dessa empresa, o senhor também entende como uma expressão de parte da sociedade.
Olívio – 
Claro. Sem dúvida que o pensamento conservador, até de direita, não é uma coisa solta no espaço. Tem relações sociais, tem raízes culturais e históricas. Mas, perdem muito cada vez que têm que ficar quieto, engolir em seco um avanço de pensamento, que coloca o estado como um espaço não de propriedade de alguns ou de poucos, se sobrepondo à sociedade. O Estado não precisa ser máximo, mas muito menos mínimo. O Estado tem que ser na proporção e no tamanho das necessidades e demandas do povo, com capacidade de atender bem, de forma qualificada, as demandas da maioria da população. Eu acho que tem distorções enormes no Estado brasileiro. Esses grandes grupos, eles têm favores tributários. Não só isenções, mas outros favores tributários. Além da sonegação, eles não pagam muitos impostos, por conta de leis que eles conseguem nas Câmaras de vereadores, nas Assembleias, no Congresso Nacional, por conta dos liames que eles estabelecem até com o poder Judiciário. Então é um dado da realidade. Acho importante que se debata na sociedade esses liames, essas relações, para ninguém se iludir e a gente não se conformar, mas não sair com um tijolo em cada mão. Nós temos é que sofisticar nossas ferramentas de embate e enfrentamento.
Antônio Oliveira — Essa empresa que foi contra o seu governo divulga até hoje que o governo Olívio Dutra foi o que mais processou jornalistas. O senhor processou algum jornalista durante o seu governo?
Olívio –
 Não. Eu não me lembro de nenhum. A não ser que tu diga que aquele… qual é o nome daquele jornalista, que não sei se era da RBS. Acho que não era.

"A mídia também tem dificuldades de tratar com um governo claramente definido em defesa do interesse público" l Foto:Ramiro Furquim/Sul21
Antônio Oliveira – Barrionuevo (José Barrionuevo, então colunista político da RBS).
Olívio – Barrionuevo. Eu não processei. Eu simplesmente chamei ele às falas, porque ele, a qualquer coisa, dizia que eu (era) borracho, que eu, o governador,… Ele sempre colocava algo não que depreciasse a política, o que eu pensava, mas uma depreciação…

Todos — Pessoal.
Olívio — 
Pessoal, claro, uma espécie de desmerecimento, de desrespeito.
Antônio Oliveira — Foi o único então?
Olívio –
 O único. Ninguém mais.
Poti — Quando encerrado o seu governo o discurso que prevaleceu, na RBS e em parte da imprensa, é que o governo tinha dificuldades de se relacionar com a mídia, que o governo tinha sido incompetente nesse sentido. O senhor acha que o seu governo teve de fato dificuldades que eram próprias, que eram suas, independente dessa oposição ou dessa desqualificação?
Olívio — 
Ora, quem não tem limites… a mídia também tem dificuldades de tratar com um governo claramente definido em defesa do interesse público. Eu acho que tem, em determinado setor da mídia, muita dificuldade de lidar com um estado ou um governo efetivamente republicano, comprometido com o interesse efetivamente público. A mídia…
Milton – Isso até hoje.
Olívio –
 A grande mídia, as grandes empresas têm dificuldade, né. É uma empresa. Não vamos confundir a notícia, a liberdade de informação e acesso à informação, à diversidade com o interesse das empresas. São empresas; têm atividade econômica. Tem empresas de comunicação em que a notícia para elas é uma mercadoria. Está na prateleira, e elas escolhem qual a notícia que lhe dá mais lucro, para divulgá-la ou para formatá-la no seu interesse. Então, não vamos confundir as coisas. Não vamos confundir o trabalho do jornalista com o trabalho do dono da empresa jornalística. Aliás, eu vi qualquer coisa, não me lembro (onde). Foi um grande jornalista que esses dias falou: “no Brasil é estranhíssimo, (algo) que só no Brasil acontece: os donos de jornais são também filiados aos sindicatos dos jornalistas”. Os donos dos jornais.

Poti — O patrão…
Olívio — 
É só no nosso país. Mas tem que se assumir com interesses diferentes. É da sociedade democrática. E não confundir ou tergiversar.

“Não sou candidato. Não estou me preparando para ser candidato”

Milton — É que na verdade para nós, ao menos para mim, a participação da RBS, a opinião da RBS, era uma coisa muito chocante. Como o senhor disse, existia um jornalista, o Barrionuevo, e outros, que sugeriam que o senhor era um bêbado e cachaceiro. E para a esquerda o senhor era uma referência ética. Eu ficava assim: mas que problema para esse governador, porque o cara aqui é acusado de ser um bêbado, e aqui ele é uma referência ética, quer dizer, é um negócio. Nem peço resposta, porque é uma coisa paradoxal.
Antônio Oliveira — 
Eu tenho uma fonte de cocheira que diz que o senhor vai ser o candidato a senador na próxima eleição para o senado. Vai colocar o seu nome à disposição do partido.
Olívio — Tu tem de cocheira que eu vou colocar meu nome…
(risos)

Antônio Oliveira — A minha fonte está certa ou não?
(risos)

Olívio – Não está certa. Tu tá atirando assim para (faz gesto demonstrando que algo foi jogado para cima e caiu, esparramando-se sobre a mesa). Mas, tu está fazendo o direito da especulação.
Milton — Vai ou não vai?
Olívio –
 Não, eu não sou candidato, eu não estou me preparando para ser candidato. Não, eu estou na luta política. Acho que tenho obrigações e compromissos com um ideário, com o meu partido, com aquilo que eu acho que não pode perder nunca, que esse é um partido de esquerda, do socialismo democrático, que aprende com os seus lutadores sociais, que tem um projeto estratégico que vai além dos mandatos, do Legislativo, do Executivo, e que cometeu erros e tem cometido sérios, e tem que ter formas de evitar isso ou de trabalhar isso de forma que não se equipare aos partidos tradicionais, no jeitinho, na acomodação. Então eu vou estar sempre no campo, mas não para ser candidato.

"Vou estar sempre no campo, mas não para ser candidato" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Milton – E os 70 anos?
Olívio –
 Espero que vocês possam estar lá (a entrevista foi concedida antes de Olívio completar os seus 70 anos, no dia 10 de junho).
(risos)
Poti — Em junho o senhor faz aniversário?
Olívio –
 Vai ser dia 11. Meu aniversário a data é 10, mas a festinha vai ser lá no Clube Farrapos, dia 11.
Milton — Festinha?
Olívio –
 É, o pessoal está preparando lá…
(risos)

Antônio Oliveira — O Lula já confirmou?
Olívio — 
O Lula já me confirmou há uns três meses atrás (o ex-presidente Lula não pôde comparecer à festa dos 70 anos de Olívio).
Olívio – Ali na Voluntários, eu me lembro de 1959. A primeira vez que eu vim para Porto Alegre, foi em 1959. Eu tinha 18 anos incompletos. Vim porque o meu irmão mais velho já tinha vindo há dois anos atrás para trabalhar, e trabalhava num escritório pela Farrapos. Depois foi prestar serviço militar lá no Rio de Janeiro. Esse meu irmão se formou em Economia. Esse foi um dos que estava lá em Ibiúna. Esse meu irmão mais velho esteve em Ibiúna. A polícia pegou ele. Levaram de volta para o Rio de Janeiro (em 12 de outubro de 1968, foram presos os estudantes que participavam do Congresso da UNE, em Ibiúna). Esse meu irmão hoje é economista aposentado. Trabalhou como executivo da… dessa indústria alemã, que levou ele para a Alemanha… Agora, está aposentado. Então, eu vim em 1959 em um trem de segunda. Parei numa pensão, aqui na Riachuelo, e saí em busca de emprego. Fiz testes até chegar lá na Fiateci, lá na Voluntários, de bonde. E tu sabe que passei lá nos testes e me chamaram na pensão e fui lá apresentar documento. E pediram um documento que era exatamente o que eu não tinha.
Milton — A Fiateci, que fazia cobertores?
Olívio –
 A Fiateci. Agora, naquele enorme pátio com aquela enorme indústria ali, vão agora fazer construções de prédios em condomínio fechado. Mas eu me lembro bem. Eu passo de bicicleta e fico olhando. Foi em 1959, acho que em fevereiro. Cheguei naquele portão ali, esperançoso que ia pegar o emprego e aí faltava a carteira de terceira ou o certificado de prestação de serviço militar. E aí? Dinheirinho escasso, boleei a perna de volta, cabecinha baixa. Coitados dos meus pais lá, né. E voltei pra lá.
Milton — Foi esquecimento?
Olívio –
 Não, eu não tinha prestado o serviço militar.
Antônio Oliveira — Não tinha dezoito, claro.
Olívio –
 Já estava listado lá, mas não tinha prestado o serviço militar. O meu irmão tinha vindo mais cedo, mas não tinha se alistado lá.
Milton — Se alistou em Porto Alegre?
Olívio — 
Meu irmão se alistou aqui e foi ser paraquedista do Exército. Mas eu já estava alistado lá. Então, tinha que prestar o serviço militar lá. Voltei pra lá e prestei o serviço militar da metade de 1959 até a metade de 1960. Saí do Exército cabo. Sou cabo sapador do glorioso exército nacional.
(risos)
Milton — Te mete, heim?
Poti — Cabo sapador?
Olívio — 
Claro, sapador. Com uma pá abria trincheira. E fiz duas marchas a cavalo de São Luiz à Coudelaria do Rincão. Nós saíamos às cinco da manhã e chegávamos às seis da tarde. E depois na lida, ajudava meu pai lá. E trabalhei de gráfico no “A Notícia”. Foi indo, foi indo. Mas então eu passo de bicicleta ali e digo…

Antônio Oliveira — Poderia ter mudado a tua vida.
Olívio –
 Pois é né, como as coisas acontecem na vida da gente.
Milton — Ia ser completamente diferente; era outro sindicato, era outro tudo, era outra vida.
Olívio — 
Passo ali na Fiateci. Foi a possibilidade do meu primeiro emprego ali.
Milton — Mas é engraçado. Até há uns 20 anos atrás era importante ter o certificado de reservista. Já, hoje, eu perdi essa porcaria e nem sei onde está. Ninguém pede mais.
Antônio Oliveira — Até hoje pedem.
Olívio –
 Mas eu, agora, sou considerado. Inclusive fui homenageado na unidade do quartel lá. Colocaram em forma.

"O que me orgulha é que eu nunca vi aqueles caras que me comandaram metidos nas coisas da repressão" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Milton — Colocaram todo mundo em forma para a chegada do cabo sapador.
Olívio — 
Eu era governador uma vez que fui lá. Agora que não sou governador nem nada, eu sou convidado para ir lá. O meu irmão, com mais posto que eu — entrou como soldado e agora é capitão da reserva — é o presidente da confraria dos caras da reserva lá. E aí acharam que eu tinha também que participar da confraria; afinal de contas, eu servi lá, saí cabo e não sei o que mais. O que me orgulha é que eu nunca vi aqueles caras que me comandaram naquele quartel metidos nas coisas da repressão. Nunca vi nenhum dos nomes dos que eu conhecia lá. Pode ser que tenha. O comandante do meu esquadrão me chamou para dizer: “olha, soldado Dutra, você tem condições de seguir a carreira militar”. E eu já tinha ido para o quartel chateado, porque foi por conta de ter perdido o emprego, mas cheguei lá e respondi bem. Eu era um cara disciplinado; tinha passado por um colégio de padres, com meu pai, também, não tinha essa coisa de malandragem.
(risos)
Olívio –
 E tem um exame preliminar lá em Santa Maria. E o Exército selecionando. E este comandante colocou quase que como uma ordem para mim, e aí eu fui, fardado e tudo, lá para aquela unidade em Santa Maria, na (Rua) Doutor Bozano, lá em baixo. Parei em uma pensão ali perto, fardado, para fazer os tais de testes, de exame, fiz e não passei. Digo: “que bom!”.
(risos)
Milton — E esses roteiros que o senhor faz atualmente…
Olívio — 
Ãhn??

“Nas viagens ao interior, sempre falo sobre a construção partidária”

Milton — E esses roteiros que o senhor faz para chegar ao Senado, como é que é?
Olívio — 
Mas que é isso?
(risos)
Milton — Mas o senhor falou que faz uns roteiros no interior.
Olívio — 
Eu faço, porque os movimentos sociais me convocam; o partido me convoca, os diretórios municipais, as lideranças comunitárias, e aí é o partido que faz isso para mim, não é eu. O partido, a direção do partido, o companheiro presidente Raul Pont designou inclusive a Sônia Rösler lá, que trabalha na secretaria do partido, para ela acolher as demandas sobre os pedidos para mim estar aqui ou ali. Ela organiza minha agenda.
Milton — O senhor tem um tema preferencial que o senhor aborda nesse…
Antônio Oliveira –
 Tem falado sobre reforma política?
Olívio – É sempre (sobre) a construção partidária: o que é o partido, que compromissos nós temos, como é que nós podemos ser um partido que está no governo, é governo, e, ao mesmo tempo, é um partido da luta, um partido que procura a transformação, que não se acomoda. E tem situações que nosso partido já está absorvido. Então, às vezes, eu não sou bem-visto em algumas situações que eu tenho que fazer esse tipo de intervenção crítica. Sobre reforma política especificamente não, mas a gente dá ideia. O partido defende um partido com contornos ideológicos claros, tanto à direita quanto à esquerda, ao centro. Chega essa do (prefeito de São Paulo, Gilberto) Kassab, que não é contra nem a favor, muito aliás pelo contrário. Um partido tem que ter contornos ideológicos claros, se assumir como parte, né. O PMDB quer ser um partido que não tem contornos ideológicos claros para dizer que representa a sociedade brasileira. É uma pretensão. É tão perniciosa essa pretensão quanto a pretensão da ideia do partido único. Um partido que acomoda todos os interesses tem um balaio de coisas para negociar, não para afirmar as propostas e tal, e, digamos, instigar a cidadania consciente. Então, o partido não pode ser uma coisa gelatinosa, sem contorno, um balcão de negócios para o toma-lá-dá-cá da política mais rastaquera. E é isso que eu falo, que eu coloco, e eu ouço das pessoas, também, os problemas que têm a nível local, mas sempre se levanta os problemas do dia a dia. Problema econômico, problema da falta disso, daquilo e tal, a possibilidade de conseguir com o governo, governo federal, estadual, a emenda parlamentar. É evidente que isso faz parte, mas não é a minha tarefa tratar dessas questões. Nós temos que possibilitar que as pessoas relacionem coisas.

Olívio anda sempre com o distintivo do Internacional l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Milton — Doutor Olívio, nosso fotógrafo vai tirar uma fotografia do seu pulso, porque tem um distintivo aí. Como é que está nosso time?
Olívio — 
Nosso time, né… nos deu um cagaço, né…
(gargalhadas)
Olívio – Que sofrimento, né tchê?
Milton — Que sofrimento, que jogo horrível.
Olívio — 
Credo! Mas depois tinha que saborear né? Ganhamos nos 95 minutos (o Internacional venceu o Grêmio, nos pênaltis por 5 a 4. No tempo normal, a partida, havia terminado em 3 a 2, para o Inter, que se sagrou Campeão Gaúcho de 2011, no dia 15 de maio).
Igor — É, eu estava lá assistindo do lado do Grêmio.
Olívio –
 É.

Milton — Ele é gremista.
Olívio –
 Ganhamos nos pênaltis e ganhamos na casa dos nossos queridos adversários, na Azenha.
Igor — É verdade. Espero que vocês tenham se sentido bem recebidos por nós.
(gargalhadas)
Milton — Foi esforçado.
Olívio –
 Queremos retribuir mas não nesse…
(risos)
Milton — Não com tanta gentileza.
Olívio –
 Aliás, nós simplesmente retribuímos o resultado do Gre-Nal anterior né, que também perdemos em casa.
Poti — O senhor era conselheiro do Inter, né?
Olívio — 
Eu sou conselheiro meio relapso. Não vou nas reuniões com a frequência que devia ir, né, mas eu até que me viro razoavelmente, né. Mas o que menos se discute é futebol, nas reuniões do Conselho. E eu acho que o Conselho não é pra isso mesmo. O Conselho é mais pra discutir mais a estrutura do clube, e agora essas coisas das obras, essas coisas…

“A democracia dos clubes de futebol não pode ser exemplo para a democracia que nós queremos”

Milton — O que o senhor acha da Andrade Gutierrez?
Olívio –
 Eu era daquela opinião que não podia ser uma única empresa a biscoitar. Tinha que abrir para outras propostas. Então, no fim, se compôs uma forma até razoável ali para… bueno, são instituições, os clubes. A democracia dos clubes é muito centrada no presidente.

"A democracia dos clubes é muito centrada no presidente" l Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Igor — A democracia nos clubes é bem inexistente.
Olívio –
 Bah, para a democracia que nós queremos não pode tirar como exemplo a democracia dos clubes de futebol. Não sei do tempo que tinha a chamada democracia corinthiana. Mas parece que foi meio que a república de Weimer (período da História da Alemanha que se estende do fim do Segundo Reich alemão, em 1918, à ascensão de Hitler ao poder em 1933).
(risos)
Olívio — Eu me lembro que houve um tempo que nós tínhamos um grupo de colorados, com bastante gente até do campo de esquerda. E aí tinha situações, em que havia problemas para serem resolvidos, e alguém levantava (e dizia): “vamos constituir uma comissão para estudar isso”. (E outros diziam:) “Não, isso é coisa do PT”.
(risos)
Olívio –
 Lá na ponta assim, um cara levantava (e dizia:) “isso é coisa do PT. Aqui é um clube”. O cara chegava a ficar com vergonha e se desculpar porque ele não tinha nada com o PT.
(risos)

 
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