O MinistĂ©rio PĂºblico Federal assinou hoje, 13 de março, denĂºncia que serĂ¡ encaminhada amanhĂ£ Ă Justiça Federal em MarabĂ¡ (PA) em face do coronel da reserva do ExĂ©rcito do Brasil, SebastiĂ£o CuriĂ³ Rodrigues de Moura (na Ă©poca conhecido como Dr. Luchini), pelo crime de sequestro qualificado contra cinco militantes, capturados durante a repressĂ£o Ă guerrilha do Araguaia na dĂ©cada de 70 e atĂ© hoje desaparecidos.
Maria CĂ©lia CorrĂªa (Rosinha), HĂ©lio Luiz Navarro MagalhĂ£es (Edinho), Daniel Ribeiro Callado (Doca), AntĂ´nio de PĂ¡dua Costa (PiauĂ) e Telma Regina Cordeira CorrĂªa (Lia) foram todos sequestrados por tropas comandadas pelo entĂ£o major CuriĂ³ entre janeiro e setembro de 1974 e, apĂ³s terem sido levados Ă s bases militares coordenadas por ele e submetidos a grave sofrimento fĂsico e moral, nunca mais foram encontrados. Se condenado, CuriĂ³ pode pegar de 2 a 40 anos de prisĂ£o.
Os sequestros ocorreram durante a Ăºltima operaĂ§Ă£o de repressĂ£o Ă guerrilha, deflagrada em outubro de 1973, denominada de OperaĂ§Ă£o Marajoara e comandada pelo entĂ£o major SebastiĂ£o CuriĂ³. “Houve ainda a institucionalizaĂ§Ă£o das agressões fĂsicas e psicolĂ³gicas, nĂ£o apenas em face dos eventuais detidos, mas tambĂ©m da populaĂ§Ă£o civil local”, narra a denĂºncia criminal do MPF.
“As violentas condutas de sequestrar, agredir e executar opositores do regime governamental militar, apesar de praticadas sob o pretexto de consubstanciarem medidas para restabelecer a paz nacional, consistiram em atos nitidamente criminosos, atentatĂ³rios aos direitos humanos e Ă ordem jurĂdica. Note-se, aliĂ¡s, que “o Estado brasileiro reconheceu oficialmente a existĂªncia dos ilĂcitos de sequestro” e desaparecimento de pessoas no episĂ³dio do Araguaia, lembra o MPF na peça acusatĂ³ria.
A denĂºncia criminal chega Ă Justiça depois que um procedimento investigatĂ³rio criminal foi aberto pela Procuradoria da RepĂºblica em MarabĂ¡ em 2009. Desde entĂ£o, procuradores da RepĂºblica vinham reunindo documentos e organizando os relatos sobre a guerrilha coletados desde 2001. ApĂ³s a requisiĂ§Ă£o de informações e a colheita de outras declarações e depoimentos mais recentes de testemunhas, ex-militares e colonos, o MPF no ParĂ¡ selecionou os primeiros casos de sequestro durante a guerrilha a serem denunciados, por se tratar de crimes permanentes.
A denĂºncia Ă© assinada pelos procuradores da RepĂºblica Tiago Modesto Rabelo e AndrĂ© Casagrande Raupp, de MarabĂ¡, Ubiratan Cazetta e FelĂcio Pontes Jr., de BelĂ©m, Ivan ClĂ¡udio Marx, de Uruguaiana, Andrey Borges de Mendonça, de RibeirĂ£o Preto e SĂ©rgio Gardenghi Suiama, de SĂ£o Paulo.
Crime permanente - Para o MPF, Ă© “irrelevante a mera suspeita de que as vĂtimas estejam mortas”. “O fato concreto e suficiente Ă© que, apĂ³s a privaĂ§Ă£o da liberdade das vĂtimas, ainda nĂ£o se sabe o paradeiro de tais pessoas e tampouco foram encontrados seus restos mortais”, diz a aĂ§Ă£o, que acusa CuriĂ³, “em razĂ£o de sua participaĂ§Ă£o material e intelectual” nos fatos objeto da denĂºncia, de ser “um dos poucos agentes criminosos que ainda tem o conhecimento atual da localizaĂ§Ă£o das vĂtimas sequestradas”.
O MPF cita que os relatĂ³rios e registros histĂ³ricos existentes sobre as supostas mortes das vĂtimas “nĂ£o interferem na tipificaĂ§Ă£o do delito (de sequestro), pois, alĂ©m de imprecisos e inespecĂficos, nĂ£o trazem elementos indicativos dessas mortes – e de suas circunstĂ¢ncias”. “AliĂ¡s, os restos mortais dessas vĂtimas sequer foram localizados. Prova material hĂ¡ efetivamente do sequestro e dos maus tratos. Nada mais”, diz a denĂºncia.
Os procuradores da RepĂºblica ressaltam que, como os crimes sĂ£o permanentes - pois nĂ£o se sabe ao certo do paradeiro das vĂtimas, que permanecem desaparecidas -, nĂ£o se pode cogitar de prescriĂ§Ă£o ou da anistia. Por esse motivo, a aĂ§Ă£o afirma que a decisĂ£o do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ArguiĂ§Ă£o de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, quando foi decidida a validade da Lei de Anistia, nĂ£o impede a responsabilizaĂ§Ă£o criminal por crime de sequestro.
O MPF afirma que, para fins penais, nĂ£o se pode presumir a morte, e lembra tambĂ©m, nesse mesmo sentido, recentes decisões do Supremo Tribunal Federal tratando da extradiĂ§Ă£o de militares argentinos implicados no mesmo tipo de crime cometido pela ditadura militar naquele paĂs. “Embora tenham passado mais de 38 anos do fato imputado ao extraditando, as vĂtimas atĂ© hoje nĂ£o apareceram, nem tampouco os respectivos corpos, razĂ£o pela qual nĂ£o se pode cogitar, por hora, de homicĂdio”, disse o ministro Ricardo Lewandowski em um dos casos.
Corte Interamericana - Os cinco crimes de sequestro identificados pelos procuradores foram levados Ă Justiça pouco mais de um ano depois que a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o caso Araguaia determinou que: “o Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdiĂ§Ă£o ordinĂ¡ria a investigaĂ§Ă£o dos fatos do presente caso a fim de esclarecĂª-lo, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções”.
A Corte ainda determinou que a promoĂ§Ă£o da responsabilidade penal dos autores deve ser cumprida em um prazo razoĂ¡vel. E, por se tratar de violações graves aos direitos humanos, o Estado nĂ£o poderĂ¡ aplicar a Lei de Anistia em benefĂcio dos autores, nem como nenhuma outra disposiĂ§Ă£o anĂ¡loga, prescriĂ§Ă£o, irretroatividade da lei penal, coisa julgada ou qualquer excludente similar de responsabilidade para eximir-se da obrigaĂ§Ă£o de punir os autores desses crimes.
O cumprimento da decisĂ£o da Corte IDH, no particular, vem sendo atualmente acompanhado pelo Grupo de Trabalho Justiça de TransiĂ§Ă£o, responsĂ¡vel por discutir as estratĂ©gias de atuaĂ§Ă£o e orientar os procuradores da RepĂºblica em Ă¢mbito nacional. O grupo de trabalho, criado em outubro de 2011 pela 2ª CĂ¢mara de CoordenaĂ§Ă£o e RevisĂ£o do MPF, Ă© constituĂdo por procuradores da RepĂºblica de diversos Estados do pais.
Os sequestros – Durante a repressĂ£o Ă guerrilha no Araguaia, as Forças Armadas estabeleceram bases em MarabĂ¡ (Casa Azul, Incra, um presĂdio militar e a base conhecida como Bacaba), XambioĂ¡, AraguaĂna, Araguatins e SĂ£o Domingos do Araguaia (Oito Barracas e SĂ£o Raimundo). A militante do PCdoB Maria CĂ©lia Correa, conhecida como Rosinha, foi vista por vĂ¡rias testemunhas na base da Bacaba, depois de ter sido capturada em janeiro de 1974. Ela estava sob a guarda das Forças Armadas e estĂ¡ desaparecida desde entĂ£o. Uma das testemunhas declarou inclusive tĂª-la visto amarrada em uma cadeira de choque.
AlĂ©m dos choques elĂ©tricos, camponeses e moradores da regiĂ£o do Araguaia que conseguiram sair vivos das bases do ExĂ©rcito relataram ao MPF, em diversos depoimentos, outros tipos de agressões, sevĂcias e maus-tratos que ocorriam nas bases militares sob o comando do major CuriĂ³ e muitas vezes por ele infligidas pessoalmente aos militantes e colonos ilegalmente detidos.
Outro desaparecido, HĂ©lio Luiz Navarro MagalhĂ£es, conhecido como Edinho, tambĂ©m foi visto com vida na base da Bacaba, apĂ³s ser ferido a bala em confronto na mata, preso ilegalmente por homens de CuriĂ³ e levado de helicĂ³ptero. Assim como no caso de Rosinha, vĂ¡rias testemunhas viram Edinho ser colocado vivo no helicĂ³ptero e chegar em uma maca Ă base militar. As testemunhas dizem que, depois disso, ele nunca mais foi visto.
No caso do guerrilheiro Daniel Ribeiro Callado, o Doca, testemunhas afirmam tĂª-lo visto vivo na base militar, de onde foi retirado de helicĂ³ptero e depois nunca mais encontrado. A prisĂ£o ilegal de Doca com vida foi registrada por ex-militares e colonos, que presenciaram inclusive o Dr. Luchini (CuriĂ³) esmurrar e chutar o guerrilheiro Daniel Ribeiro enquanto este estava privado de sua liberdade. AlĂ©m disso, consta ainda da aĂ§Ă£o declarações no sentido de que Doca foi coagido a indicar a localizaĂ§Ă£o de outros dissidentes polĂticos.
Outro personagem conhecido da repressĂ£o, o tenente JosĂ© Jimenez, na Ă©poca conhecido como Chico DĂ³lar, foi quem relatou ter prendido em 24 de janeiro de 1974 o guerrilheiro conhecido como PiauĂ, AntĂ´nio de PĂ¡dua Costa. “Jimenez afirma que PiauĂ foi duramente torturado na base de Bacaba, sendo entĂ£o posteriormente levado com vida Ă base denominada Casa Azul, em MarabĂ¡”, relata a aĂ§Ă£o do MPF. Jimenez confirmou todas as informações em seu depoimento Ă ComissĂ£o Especial sobre Mortos e Desaparecidos PolĂticos. AlĂ©m do testemunho dele, o MPF contabilizou nove testemunhas que viram PiauĂ vivo depois de preso ilegalmente pelos homens de CuriĂ³ e uma fotografia dele detido tambĂ©m foi encontrada durante as missões de busca feitas no Araguaia.
Em depoimento ao MPF, dois ex-militares que participaram da operaĂ§Ă£o Marajoara afirmaram que Telma Regina Cordeiro CorrĂªa, a Lia, chegou presa na base militar no dia 7 de setembro de 1974. Disse ainda que SebastiĂ£o CuriĂ³ estava presente quando do interrogatĂ³rio de Telma Regina, tendo sido ela posteriormente levada para a casa do comando. Em seguida, foi ela entregue ao capitĂ£o Cabral e levada de helicĂ³ptero supostamente para BrasĂlia. Ela continua desaparecida atĂ© hoje.
O processo contra o major CuriĂ³ tramitarĂ¡ na Justiça Federal de MarabĂ¡ e ainda nĂ£o possui numeraĂ§Ă£o.
Assessoria de ComunicaĂ§Ă£o
Procuradoria da RepĂºblica no ParĂ¡