Em 1995, o jesuíta Francisco Jalics publicou
um livro, "Ejercicios de meditación". Ao narrar seu
sequestro, dizia que "muitas pessoas que sustentavam convicções políticas
de extrema direita viam com maus olhos nossa presença nas favelas.
Interpretavam o fato de que vivêssemos ali como um apoio à guerrilha e se
propuseram nos denunciar como terroristas.
Nós sabíamos de onde soprava o vento e quem era o
responsável por essas calúnias. Assim, fui falar com a pessoa em questão e lhe
expliquei que ele estava jogando com as nossas vidas. O homem me prometeu que
faria saber aos militares que não éramos terroristas. Por declarações
posteriores de um oficial e 30 documentos aos quais pude ter acesso mais tarde,
pudemos comprovar sem lugar a dúvidas que esse homem não cumpriu sua promessa,
mas, pelo contrário, havia apresentado uma falsa denúncia aos militares".
Em outra parte do livro, ele acrescenta que essa pessoa tornou "crível a
calúnia, valendo-se de sua autoridade" e "testemunhou diante dos
oficiais que nos sequestraram que havíamos trabalhado na cena da ação
terrorista. Pouco antes, eu havia manifestado a essa pessoa que ele estava
jogando com as nossas vidas. Ele devia ter consciência de que nos mandava a uma
morte certa com as suas declarações".
A identidade dessa pessoa que é revelada em uma carta que Orlando
Yorioescreveu em Roma em novembro de 1977, dirigida ao assistente
geral daCompanhia de Jesus, padre Moura. Esse texto permite conhecer o
resto da história, pelo testemunho direto de uma das vítimas.
A reportagem é de Horacio Verbitsky, publicada no jornal Página/12,
10-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nessa recapitulação escrita 18 anos antes que o livro de Jalics, Yorio conta a
mesma coisa, mas em vez de "uma pessoa" diz Jorge Mario
Bergoglio[cardeal arcebispo de Buenos Aires]. Conta que Jalics
falou duas vezes com o provincial, que "se comprometeu a frear os rumores
dentro da Companhia e a se adiantar para falar com os membros das Forças
Armadas para testemunhar nossa inocência". Também menciona as
críticas que circulavam na Companhia de Jesus contra ele e Jalics: "Fazer
orações estranhas, conviver com mulheres, heresias, compromisso com a
guerrilha", semelhantes às que Bergoglio transmitiu à Chancelaria. Yorio
não conhecia a existência desse documento, que eu encontrei cinco anos depois
de sua morte. Em seu livro, Bergoglio diz o mesmo que lhes transmitia a Jalics
e Yorio: que ele não acreditava na veracidade dessas acusações. Por que, então,
devia comunicá-las ao governo militar, como prova o documento que se reproduz
abaixo?
Uma boca importante
Quando Bergoglio disse que havia recebido relatórios
negativos sobre ele, Yorio falou com os consultados por meio de seu superior.
Pelo menos três deles (os sacerdotes Oliva, José Ignacio Vicentini e Juan
Carlos Scannone) lhe disseram que não haviam opinado contra ele, mas sim a
favor. No clima da Argentina, a acusação de pertencimento à guerrilha em
"uma boca importante (como a de um jesuíta) podia significar simplesmente
a nossa morte. As forças de extrema direita já haviam metralhado um
sacerdote em sua casinha e haviam raptado, torturado e abandonado morto a um
outro. Os dois viviam em favelas. Nós havíamos recebido avisos no
sentido de nos cuidarmos", escreveu Yorio ao padre Moura.
Ele acrescenta que Jalics falou não menos do que duas vezes
com Bergoglio para fazer com que ele visse o perigo em que essas versões os
colocavam. Segundo Yorio, "Bergoglio reconheceu a gravidade do fato e se
comprometeu a frear os rumores dentro da Companhia e a falar com membros das
Forças Armadas para testemunhar nossa inocência. [Mas como] o provincial não
fazia nada para nos defender, começamos a suspeitar de sua honestidade.
Estávamos cansados da província e totalmente inseguros".
Tinham seus motivos. Durante anos, Bergoglio os
havia submetido a um fustigamento insidioso, sem assumir de forma aberta as
acusações contra ele, que sempre atribuía a outros sacerdotes ou bispos que,
uma vez confrontados, o desmentiam. Bergoglio havia lhes garantido uma
continuidade de três anos em seu trabalho na vila de Bajo Flores. Mas informou
ao arcebispoJuan Carlos Aramburu que estavam ali sem autorização. O aviso
lhes chegou por meio de um dos fundadores do Movimento de Sacerdotes para
o Terceiro Mundo e da pastoral "villera",Rodolfo
Ricciardelli, a quem o próprio Aramburu havia contado. Quando Yorio o
consultou, Bergoglio lhe disse que Aramburu "era um mentiroso" e que
empregava essas "táticas para incomodar a Companhia".
A infâmia pública
Em nosso intercâmbio epistolar, Yorio defendeu que, no clima
de medo e delação instalado dentro da Igreja e da sociedade, os
sacerdotes que trabalhavam entre os mais pobres "eram demonizados, postos
em suspeita dentro de nossas próprias instituições e acusados de subverter a
ordem social".
Nesse contexto, foram submetidos por Bergoglio "à proibição e à infâmia
pública de não poder exercer o sacerdócio, dando assim ocasião e justificação
para que as forças repressivas fizessem com que desaparecêssemos. Podiam nos
avisar de que havia perigos, mas sem frear as difamações das que os mesmos que
nos faziam o serviço de nos avisar eram cúmplices. Podiam nos alertar que
estávamos marcados e acusados, mas mantendo no mistério e na ambiguidade as
causas da acusação, tirando-nos assim a possibilidade de nos defender".
Uma vez que saíram da Companhia de Jesus, Bergoglio lhe recomendou
que fossem ver o bispo de Morón, Miguel Raspanti, em
cuja diocese poderiam salvar o sacerdócio e a vida. O provincial se ofereceu
para enviar um relatório favorável para que os aceitasse. Yorio e Jalics
souberam pelo vigário e por alguns sacerdotes da diocese de Morón que la carta
do provincial Bergoglio a Raspanti continha acusações "suficientes para
que não pudéssemos exercer mais o sacerdócio".
– Não é verdade. Meu relatório foi favorável. O que acontece é que Raspanti é
uma pessoa de idade que às vezes se confunde – defendeu-se Bergoglio diante de
Yorio. Mas em seu novo encontro com o bispo de Morón, ratificou as acusações,
segundo o relato que Raspanti transmitiu a outro sacerdote da comunidade de
Bajo Flores, Luis Dourrón. Yorio insistiu então com Bergoglio.
– Raspanti diz que seus sacerdotes se opõem a que vocês entrem na diocese –
arguiu desta vez o provincial.
Outra alternativa possível era que eles se integrassem à Equipe da Pastoral "Villera" do
Arcebispado de Buenos Aires. Seu responsável, padre Héctor Botán,
propôs isso ao arcebispo Aramburu.
– Impossível. Há acusações muito graves contra eles. Não quero nem vê-los –
respondeu-lhe.
Um dos sacerdotes "villeros" se queixou ao vigário
episcopal da região de Flores, Mario José Serra.
– As acusações vêm do provincial – explicou-lhe Serra.
O próprio Serra foi encarregado de comunicar a Yorio que
haviam lhe retirado sua licença para exercer seu ministério na arquidiocese,
devido ao fato de que o provincial havia informado que "eu saí da
Companhia".
– Não tinham por que te tirar a licença. Essas são coisas do Aramburu. Eu te
dou licença para que continues celebrando missa em privado, até que consigas um
bispo – disse-lhe Bergoglio.
A última tentativa para lhes conseguir um bispo que os incardinasse foi feita
pelo sacerdote da arquidiocese Eduardo González. Convocado à Assembleia
Plenária do Episcopado que começou no dia 10 de maio de 1976, ele
propôs o caso ao arcebispo de Santa Fe, Vicente Zazpe.
– Não é possível se encarregar deles, porque o provincial anda dizendo que vai
lhes tirar da Companhia – defendeu.
A Equipe da Pastoral "Villera" enviou uma carta de
protesto a Bergoglio, com cópia ao nuncioPio Laghi, a Aramburu e
a Raspanti, que não responderam. O tempo havia se esgotado, epoucos
dias depois Yorio e Jalics foram sequestrados, conduzidos à Esma [Escola
de Mecânica da Armada] e depois a uma casa operativa, na qual foram
torturados.
Um interrogador com ostensivos conhecimentos teológicos disse a Yorio que
sabiam que ele não era guerrilheiro, mas que, com o seu trabalho na vila, unia
os pobres, e isso era subversivo. Sua liberdade foi negociada pelo
governo em troca de que o episcopado recebesse o chefe do Estado Maior do
Exército, Roberto Viola, e o ministro da Economia, José
Martínez de Hoz. Um dia antes dessa visita ao episcopado, Yorio e Jalics
foram drogados e depositados por um helicóptero em um banhado de Cañuelas.
Depois de recuperar a liberdade, Yorio se refugiou em uma
igreja e depois na casa de sua mãe. A proteção de um bispo era mais urgente do
que nunca. O único que o aceitou foi Jorge Novak. Quando começaram
as batidas policiais na região e soube que perguntavam por Yorio, Novak
insistiu para que ele saísse do país. "Bergoglio não queria me mandar para Roma,
mas por pressão da minha família e de Novak eu saí. Estava escondido, porque
houve uma ordem deVidela para me buscar", escreveu-me Yorio em
1999.
Quando reapareceram em Cañuelas, a então irmã Norma Gorriarán, da Companhia
de Maria, visitou Yorio na casa de sua mãe. Em uma entrevista para o meu
livro "Historia política de la Iglesia Católica argentina",
realizada no dia 27 de julho de 2006, ele lembrou que estavam descascando
ervilhas quando chegou a irmã de Yorio com a informação de que o estavam
buscando. "Eu o levei a uma casa de irmãs em Villa Urquiza,
onde tive Orlando por um mês, em uma salinha, no
terraço".
Bergoglio exigiu que dissesse onde estava Yorio,
"aparentemente para protegê-lo. Mas não me parecia confiável". A
religiosa se negou. Bergoglio "tremia, furioso pelo fato
de que uma freira insignificante o enfrentava. Apontava para mim e me dizia:
`Você é responsável pelos riscos que Orlando corre, onde quer que esteja`. Ele
queria saber onde ele estava".
Por último, Laghi conseguiu os documentos para ele, e Bergoglio lhe
pagou a passagem para Roma. "Mas ele não pôde me dar nenhuma explicação
sobre o ocorrido antes. Adiantou-se a me pedir por favor que não as desse,
porque se sentia muito confuso e não saberia me dar essas informações. Eu
também não lhe disse nada. O que poderia lhe dizer?".
Yorio lembrou que apenas em Roma o secretário do geral dos jesuítas
"tirou a venda dos meus olhos". Esse jesuíta colombiano, o padre Cándido
Gaviña, "me informou que eu havia sido expulso da Companhia. Também me
contou que o embaixador argentino no Vaticano havia lhe informado que o governo
dizia que havíamos sido capturados pelas Forças Armadas porque os nossos
superiores eclesiásticos haviam informado o governo que pelo menos um de nós
era guerrilheiro. Gavigna pediu-lhe que confirmasse isso por escrito, e o
embaixador o fez".
Em troca, Jalics viajou aos Estados Unidos e
depois à Alemanha. Escreveu que tinha mais ressentimento para quem
os havia entregue do que contra seus capturadores e, apesar da distância,
"não cessavam as mentiras, calúnias e ações injustas". Mas, conta em
seu livro, em 1980, queimou os documentos comprovatórios do que ele chama de
"o delito" de seus perseguidores. Até então, os havia guardado com a
secreta intenção de utilizá-los. "Desde então me sinto verdadeiramente
livre e posso dizer que perdoei de todo o coração".
Em 1990, durante uma de suas visitas ao país, Jalics se reuniu no instituto Fe
y Oración, da rua Oro 2760, com Emilio e Chela
Mignone. Segundo a ata desse encontro, escrita por Mignone, Jalics lhes
disse que "Bergoglio se opôs a que, uma vez posto em
liberdade, ele permanecesse na Argentina e falou com todos os bispos para que
não o aceitassem em suas dioceses em caso de se retirar da Companhia de
Jesus". Bergoglio diz agora que, quando Jalics vem ao país, ele o visita. A
família de Yorio tem uma informação diferente: é Bergoglio quem o busca, como
parte de sua operação de dissimulação.
O papel de Bergoglio na ditadura argentina
Bergoglio amistosamente cumprimentando o ditador genocída Videla
Fonte : Unisinos
Diante de um grande público, no qual se encontravam membros da Igreja Católica
e de outras confissões, foi apresentado nesta sexta-feira o livro "El
jesuita: Conversaciones con el cardenal Jorge
Bergoglio", dos jornalistas Francesca Ambrogetti e Sergio
Rubin.
A nota é do jornal Clarín, 12-06-2010. A tradução é de Moisés
Sbardelotto.
No livro, Bergoglio defende sua atuação durante a última ditadura depois que o
jornalistaHoracio
Verbitsky o acusou em uma série de artigos de ter virtualmente
"entregue" ao governo militar dois sacerdotes de sua congregação, a Companhia
de Jesus, que trabalhavam em uma vila portenha.
Bergoglio também se refere à atuação da Igreja nos anos de chumbo. A
apresentação esteve a cargo de "Canela" (a
jornalista Gigliola Zecchin); Juan Carr, da Rede
Solidária e de Alberto Zimerman, da DAIA..
A "operação conclave" de Bergoglio
Bergoglio com o general Videla: colaboração com a ditadura
Fonte: Unisinos.
12 de Abril de 2010
Quando a publicação mais importante da Alemanha, a revista Der Spiegel, se refere ao "papado falido" do seu compatriota Joseph Ratzinger (o mesmo termo que a Inteligência norte-americana aplica aos Estados com vazio de poder nos quais justifica sua intervenção), o primaz da Argentina e arcebispo de Buenos Aires, cardeal Jorge Bergoglio (foto), empreende uma operação de lavagem de sua imagem com a publicação de um livro autobiográfico.
O ostensivo propósito de "El Jesuita", como o livro é intitulado, é defender seu desempenho como provincial da Companhia de Jesus entre 1973 e 1979, manchado pelas denúncias dos sacerdotes Orlando Yorio e Francisco Jalics, que ele entregou aos militares. Ambos foram sequestrados cinco meses a partir de maio de 1976. Em troca, as quatro catequistas e dois de seus esposos sequestrados dentro da mesma operação nunca reapareceram. Entre eles, estavam Mónica Candelaria Mignone, filha do fundador do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais), Emilio Mignone, e María Marta Vázquez Ocampo, da presidente das Mães da Praça de Maio, Martha Ocampo de Vázquez.
A reportagem é de Horacio Verbitsky, publicada no jornal Página/12, 10-04-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Ratzinger tem 83 anos e, segundo a Der Spiegel, muitas vozes pedem a sua renúncia. O sacerdote Paolo Farinella escreveu na prestigiosa revista italiana de filosofia MicroMega, cujo diretor Paolo Flores D’Arcais participou de debates públicos sobre filosofia com o Papa, queBento XVI deveria pedir perdão aos crentes afetados pela restrição do celibato, pelas condições nos seminários e pelos milhares de casos de abusos de crianças e dizer-lhes: "Vou me retirar para um monastério e passarei o resto dos meus dias fazendo penitência pelo meu fracasso como sacerdote e como Papa".
Ninguém se surpreenderia se, depois de beber uma tisana noturna falhasse o coração de um homem entristecido e angustiado por causa das injustas críticas que atingem seu desempenho como bispo da Baviera e não perdoam nem seu amado irmão Georg. A revista alemã menciona o antecedente de Celestino V, um Papa do século XIII, que renunciou porque não se sentiu capaz de cumprir com suas funções.
Se algo disso ocorrer, Bergoglio precisa de uma folha de serviços limpa. Diante de uma pergunta sobre o Papa ideal, o presidente da Associação Alemã da Juventude Católica, Dirk Tänzler, disse à Der Spiegel que preferiria que o escolhido tivesse trabalhado em uma parte pobre da América do Sul ou em outra região atingida pela pobreza, já que teria uma visão diferente do mundo. A compaixão pela pobreza, compartilhada com a Sociedade Rural e aAssociação Empresarial AEA, é o nicho de oportunidade escolhido pelo episcopado sob a condução de Bergoglio.
O Silêncio
É o cardeal que vincula seu descarrego com a eleição papal. Seu livro narra que quando a vida de João Paulo II se apagava e o nome de Bergoglio figurava nos prognósticos dos jornalistas especializados, "voltava a se agitar uma denúncia jornalística publicada poucos anos atrás emBuenos Aires" e que, "às vésperas do conclave, que devia escolher o sucessor do Papa polonês, uma cópia de um artigo com a acusação, de uma série do mesmo autor, foi enviada aos endereços de correio eletrônico dos cardeais eleitores com o propósito de prejudicar as chances que eram outorgadas ao purpurado argentino". Bergoglio diz em seu livro que nunca responder à acusação "para não fazer o jogo de ninguém, não porque tivesse algo para esconder". Ele não explica porque mudou agora.
Pastores e lobos
Na realidade, a primeira versão do episódio não se deve a nenhum jornalista, mas sim a Emilio Mignone. Em seu livro "Iglesia y dictadura", editado em 1986, quando Bergoglio não era conhecido fora do mundo eclesiástico, Mignone exemplificou com seu caso "a sinistra cumplicidade" com os militares, que "se encarregaram de cumprir a tarefa suja de limpar o pátio interior da Igreja, com a aquiescência dos prelados".
Segundo o fundador do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), durante uma reunião com a Junta Militar em 1976, o então presidente da Conferência Episcopal e vigário castrense,Adolfo Servando Tortolo, concordou que, antes de deter um sacerdote, as Forças Armadas iriam avisar o bispo respectivo. Mignone acrescenta que, "em algumas ocasiões, a luz verde foi dada pelos próprios bispos. No dia 23 de maio de 1976, a Infantaria da Marinha deteve, no bairro de Bajo Flores, o presbítero Orlando Yorio e o manteve durante cinco meses na qualidade de desaparecido. Uma semana antes da detenção, o arcebispo [Juan Carlos]Aramburu havia lhe retirado sua licença ministerial, sem motivo nem explicação. Por diferentes expressões ouvidas por Yorio em sua detenção, fica claro que a Armada interpretou tal decisão e, possivelmente, algumas manifestações críticas de seu provincial jesuíta, Jorge Bergoglio, como uma autorização para proceder contra ele. Sem dúvida, os militares haviam advertido a ambos acerca de sua suposta periculosidade". Mignone se pergunta "o que a história irá dizer sobre esses pastores que entregaram suas ovelhas ao inimigo sem defendê-las nem resgatá-las".
A chaga aberta
Eu publiquei a história nesta mesma coluna, no dia 25 de abril de 1999. Além da opinião deMignone, a nota incluiu a opinião de quem foi sua colaboradora no CELS, a advogada Alicia Oliveira, que disse o que agora repete no livro: que seu amigo Bergoglio, preocupado com a iminência do golpe, temia pelo destino dos sacerdotes do assentamento e lhes pediu que saíssem dali. Quando foram sequestrados, ele tentou localizá-los e buscar sua liberdade, assim como ajudou os outros perseguidos.
Por causa dessa nota, Orlando Yorio se comunicou comigo do Uruguai, onde vivia. Por telefone e por e-mail, refutou as afirmações de Bergoglio e Oliveira. "Bergoglio não nos avisou do perigo iminente" e "também não tenho nenhum motivo para pensar que ele fez alguma coisa pela nossa liberdade, mas sim todo o contrário", disse.
Os dois sacerdotes "foram libertados pela gestão de Emilio Mignone e a intercessão do Vaticano e não pela atuação de Bergoglio, que foi quem os entregou", acrescentou Angélica Sosa de Mignone, Chela, a esposa durante meio século do fundador do CELS. Seus testemunhos foram incluídos na nota "La llaga abierta", publicada no dia 09 de maio de 1999. Também foram transmitidas ali as posições de Bergoglio e do outro padre sequestrado naquele dia, Francisco Jalics.
Questão de Estilo
Em seu livro, Bergoglio diz agora que Yorio e Jalics "estavam preparando uma congregação religiosa, e lhe entregaram o primeiro rascunho das regras aos bispos Pironio, Zazpe e Serra. Conservo a cópia que me deram". Bergoglio também me entregou uma cópia. Expressa o tipo de dúvidas e de conflitos que foram comuns em um alto número de sacerdotes a partir doConcílio Vaticano II, com "a crise das congregações religiosas, os sinais dos tempos modernos, a coincidência com o sentir da busca dos jovens e a confirmação espiritual que sentimos em nosso modo de viver atual".
O problema, nesse caso, era como compatibilizar "o estilo inaciano da vida religiosa" com "a vida moderna [que] pedia um estilo novo". A ata acrescenta que as Congregações Apostólicas estão organizadas de modo que seus superiores "parecem se ocupar mais com as obras do que pela atenção espiritual de seus súditos". Em troca, eles idealizam o modelo das fundações monásticas e propõem que "a comunidade se una em torno de uma busca espiritual e de um projeto de vida e não em torno de obras". Isso apresenta uma "incompatibilidade pessoal" aos sacerdotes subordinados à disciplina de sua congregação.
Em sua carta ao padre Moura, Yorio menciona essa ata como resposta à pressão deBergoglio para que dissolvessem a comunidade em Bajo Flores. Acrescenta que deixaram paraPironio, Zazpe e Serra "um esboço de estruturação de vida religiosa em caso de que não pudéssemos continuar na Companhia e fosse possível realizá-la fora", o que não implica que eles quisessem sair dela. Em uma viagem posterior à Argentina, Pironio disse-lhe que não havia consultado o assunto em Roma, porque Bergoglio "havia ido lhe ver para lhe dizer que o padre geral era contrário a nós". Zazpe respondeu que "o provincial andava dizendo que nos tiraria da Companhia", e Serra comunicou-lhe que lhe retirariam a licença na arquidiocese porqueBergoglio havia comunicado "que eu estava saindo da Companhia".
Segundo Bergoglio, o superior jesuíta Pedro Arrupe disse que eles deviam escolher entre a comunidade em que viviam e a Companhia de Jesus. "Como eles persistiram em seu projeto e o grupo se dissolveu, pediram a saída da Companhia". Bergoglio acrescenta que a renúncia de Yorio foi aceita no dia 19 de março de 1976. "Diante dos rumores da iminência do golpe, eu lhes disse que tivessem muito cuidado. Lembro que lhes ofereci, se chegasse a ser conveniente para sua segurança, que viessem viver na casa provincial da Companhia", disse Bergoglio. Afirma também que nunca acreditou que eles estivessem envolvidos em atividades subversivas. "Mas, por causa de sua relação com alguns padres das vilas de emergência, eles ficavam muito expostos à paranoia da caça às bruxas. Como permaneceram no bairro, Yorio e Jalics foram sequestrados durante um rastreamento".
Papeizinhos
Bergoglio também nega ter aconselhado os funcionários de Culto da Chancelaria que rejeitassem a solicitação de renovação do passaporte de Jalics, que ele mesmo apresentou. Segundo Bergoglio, o funcionário que recebeu o pedido lhe perguntou pelas "circunstâncias que precipitaram a saída de Jalics". Ele diz que respondeu: "Ele e seu companheiro são acusados de serem guerrilheiros e não tinham nada a ver".
O cardeal acrescenta que "o autor da denúncia contra mim revisou o arquivo da Secretaria de Culto, e a única coisa que mencionou foi que encontrou um papelzinho daquele funcionário no qual ele havia escrito que eu lhe disse que fossem acusados como guerrilheiros. Eu havia entregue essa parte da conversa, mas não a outra na qual eu lhe indicava que os sacerdotes não tinham nada a ver. Além disso, o autor da denúncia ignora minha carta, na qual eu colocava minha cara por Jalics e fazia o pedido".
Não foi nada disso. Em notas publicadas aqui e em meus livros "El Silencio" e "Doble juego", narrei a história completa e publiquei todos os documentos, começando pela carta de cuja omissão Bergoglio reclama. Depois, segue a recomendação do funcionário de Culto que o recebeu, Anselmo Orcoyen: "Em atenção aos antecedentes do requerente, esta Direção Nacional é da opinião de que não deve aceder".
O terceiro documento é o definitório. Esse papelzinho, assinado por Orcoyen, diz que Jalicstinha atividade dissolvente em comunidades religiosas femininas e conflitos de obediência, que esteve com Yorio na ESMA (detido, diz, em vez de sequestrado) por "suspeito contato com guerrilheiros". O ponto mais interessante é o seguinte, porque remete a intimidades da Companhia de Jesus, vistas a partir da ótica de Bergoglio, que não tinha nenhuma necessidade de confiar ao funcionário da ditadura: "Viviam em uma pequena comunidade que o Superior Jesuíta dissolveu em fevereiro de 1976 e se negaram a obedecer solicitando a saída da Companhia em 19/03".
Ele acrescenta que Yorio foi expulso da Companhia e que "nenhum bispo da Grande Buenos Aires quis lhe receber". A "Nota Bene" final é inegável: Orcoyen diz que esses dados lhe foram repassados "pelo padre Jorge Mario Bergoglio, firmante da nota, com especial recomendação de que não se fizesse o que é solicitado".
(não duvido nada que Bergoglio seja eleito Papa - ele tem o perfil ideal para o cargo)