FlĂ¡vio dos Santos Brito
IntroduĂ§Ă£o
Este artigo tem por objetivo aprofundar os conhecimentos sobre a questĂ£o de gĂªnero e os estudos sobre a famĂlia, neste caso especĂfico, a FamĂlia Monoparental Feminina.[1]Baseia-se em pesquisa bibliogrĂ¡fica e em entrevistas realizadas com mulheres chefas de famĂlias monoparentais.
Na realidade brasileira, estudos tĂªm apontado para a dinĂ¢mica dos arranjos familiares nas classes populares, demonstrando a permanĂªncia de uma hierarquia de papĂ©is, organizados a partir de uma visĂ£o tradicional, em que o homem representa o papel do provedor moral familiar (SARTI, 1996), ao mesmo tempo em que se verificam mudanças nas famĂlias. Segundo Goldani (1994) entre essas mudanças se verifica uma perda de espaço no percentual de famĂlias compostas pelo casal e filhos e um aumento de famĂlias compostas por um dos membros e filhos ou de pessoas morando sozinhas, ao lado da queda da fecundidade, do aumento da esperança de vida e do tamanho dos mĂ³dulos familiares.
“A presença de famĂlias compostas por um dos membros adultos e filhos, em maior proporĂ§Ă£o mĂ£es e filhos, vĂªm levando demĂ³grafos e sociĂ³logos a criarem termos para nomearem esse tipo de famĂlia. Assim, sĂ£o chamadas de famĂlias quebradas ou reconstituĂdas. Estudos demogrĂ¡ficos, no Brasil colonial, nos mostram que as famĂlias chefiadas por mulheres nĂ£o representam, necessariamente, uma invenĂ§Ă£o da histĂ³ria brasileira contemporĂ¢nea” (DEL PRIORE, 1994).
Segundo Vitale (2002), existe ainda uma percepĂ§Ă£o histĂ³rica que incorpora a denominaĂ§Ă£o de “famĂlias monoparentais” dos paĂses anglo-saxões, a fim de melhor elucidar a origem e importĂ¢ncia desta significaĂ§Ă£o nĂ£o apenas como conceito meramente explicativo de uma imposiĂ§Ă£o normativa, ou, atĂ© mesmo simbĂ³lica , mas, sobretudo o esclarecimento de uma reaĂ§Ă£o de mulheres de hoje, em referĂªncia a imposiĂ§Ă£o social que as subjuga Ă fragilidade e vulnerabilidade econĂ´mico-social – espelhando-se assim, estas mulheres de hoje, em ações feministas de meados dos anos sessenta.
As famĂlias chefiadas por mulheres tĂªm crescido nas Ăºltimas dĂ©cadas. De acordo com o Censo DemogrĂ¡fico de 2000, correspondem a 11,1 milhões de famĂlias. Uma em cada quatro famĂlias brasileiras Ă© chefiada por mulheres. Nesse universo, a maioria das mulheres responsĂ¡veis pelo domicĂlio estĂ¡ em situaĂ§Ă£o monoparental.
Portanto, parafraseando Vitale (2002), afirma-se ser a monoparentalidade um estado em aberto. Por esta razĂ£o deve ser considerada em suas permanĂªncias e recomposições. Assim, pensar monoparentalidade Ă© pensar famĂlias monoparentais e nĂ£o um Ăºnico modelo: as famĂlias monoparentais sĂ£o protagonistas de histĂ³rias peculiares marcadas pelos diversos contextos sociais. Isso nos mostra que nĂ£o Ă© possĂvel analisar as famĂlias monoparentais como um universo especĂfico ou um grupo homogĂªneo, mas sim como um novo grupo modificador das concepções tradicionais de famĂlia (crivos nossos).
Resultados da pesquisa e discussĂ£o
1 – FamĂlia monoparental: como defini-la?
A expressĂ£o “famĂlias monoparentais” foi utilizada, segundo Nadine Lefaucher, na França, desde a metade dos anos setenta, para designar as unidades domĂ©sticas em que as pessoas vivem sem cĂ´njuge, com um ou vĂ¡rios filhos com menos de 25 anos e solteiros (VITALE, 2002:47).
No Brasil, Barroso e Bruschini (1981) apontam que, embora jĂ¡ houvesse no paĂs um contingente expressivo de famĂlias chefiadas por mulheres, Ă© a partir dos anos 1970 que elas passam a ter visibilidade e conquistam um lugar entre as pesquisas sociolĂ³gicas.
Para as autoras:
“É preciso nĂ£o esquecer que as mulheres chefes de famĂlia costumam ser tambĂ©m ‘mĂ£es-de-famĂlia’: acumulam uma dupla responsabilidade, ao assumir o cuidado da casa e das crianças juntamente com o sustento material de seus dependentes. Essa dupla jornada de trabalho geralmente vem acompanhada de uma dupla carga de culpa por suas insuficiĂªncias tanto no cuidado das crianças quanto na sua manutenĂ§Ă£o econĂ´mica. É verdade que essas insuficiĂªncias existem tambĂ©m em outras famĂlias, e igualmente Ă© verdade que ambas tĂªm suas raĂzes nas condições geradas pela sociedade. PorĂ©m, esses fatores sociais sĂ£o ocultados pela ideologia que coloca a culpa na vĂtima, e o problema se torna mais agudo quando as duas vĂtimas sĂ£o encarnadas por uma sĂ³ pessoa” (BARROSO & BRUSCHINI, 1981,p.40).
A vitimizaĂ§Ă£o da mulher chefe de famĂlia Ă© expressĂ£o de uma subjugaĂ§Ă£o social que atribui Ă prĂ³pria mulher a dificuldade de se autogerir e a sua famĂlia.
[...] Ă© complicado, nĂ£o Ă© fĂ¡cil pra uma mulher sozinha administrar uma famĂlia nĂ£o [...] Ă© complicado, eu falo pra vocĂª por experiĂªncia prĂ³pria, nĂ£o Ă© fĂ¡cil de jeito nenhum, mas a gente tenta levar [...] (E:1).
Muitas vezes essas mĂ£es, que tambĂ©m sĂ£o o “pai” e chefe de famĂlia, saem de casa bem cedo, para trabalhar e ficam afastadas da vida cotidiana de seus filhos, retornando as suas casas apenas Ă noite:
Eu saio de casa, nĂ©, eu vejo meus filhos duas vezes por dia, de manha e a noite. [...] eu sinto assim, que eu abandono ele, eu preciso trabalhar, por que sou eu que [...], sou o home e a mulher da casa, entĂ£o tem que trabalhar, nĂ£o tem jeito, o resto Deus me ajuda que eu consigo no final (E:7).
Os relatos evidenciam dificuldades financeiras e o reduzido contato entre mĂ£e e filho(s), sendo a falta de tempo um elemento forçosamente incorporado Ă rotina da mulher, que tem como prioridade sair de casa para trabalhar.
É difĂcil, Ă© um pouco difĂcil porque Ă s vezes eu nĂ£o tenho tempo pra meus filhos eu nĂ£o tenho tempo [...] Ă s vezes falta tempo atĂ© pro que mora com minha mĂ£e, porque, [...] ele Ă© um pouco rebelde, entĂ£o, eu [...], num dĂ¡ [...] num tenho tempo pra eles. [...] falar, dar um conselho pra Ăªs, eu num tenho (E:1).
A famĂlia monoparental feminina constrĂ³i-se sobre esta denominaĂ§Ă£o, muitas vezes, devido Ă separaĂ§Ă£o dos cĂ´njuges e, nesses casos, geralmente nĂ£o hĂ¡ participaĂ§Ă£o financeira do cĂ´njuge masculino na criaĂ§Ă£o dos filhos, como se observa no relato de uma entrevistada: “[...] num teve um centavo do pai dĂªs pra poder criĂ¡-los. Sempre foi com meu suor, com meu trabalho” (E:6).
Nessa perspectiva, muitas sĂ£o as necessidades e a priorizaĂ§Ă£o se faz necessĂ¡ria:
[...] Ă s vezes muitas coisa passa, nĂ© [...] as vezes se eu tiver de comprar uma coisa, prefiro comprar outra, aquela que Ă© mais necessĂ¡ria, nĂ©, nessa parte ai que eu tenho mais dificuldade, as vez eu quero comprar uma coisa, mais tem outra que ta faltando nĂ©, entĂ£o esse dinheiro que ganha tem que controlar assim nĂ©, comprar o mais necessĂ¡rio [...] (E:3).
Lopes e Gottschalk (1990) [2] mostram que as famĂlias chefiadas por mulheres estĂ£o em situaĂ§Ă£o estruturalmente mais precĂ¡rias, mais dependentes de variações conjunturais, quando comparadas com situações das famĂlias pobres, equivalentes no ciclo de vida familiar, que tĂªm chefe masculino presente, dadas as diferenças nas formas de inserĂ§Ă£o da mulher no mercado de trabalho (SARTI, 1996:45 apud VITALE, 2002:51).
Esse contexto de precariedade social de famĂlias monoparentais femininas pĂ´de ser comprovado em nossa pesquisa. Constatou-se que a renda mĂ©dia mensal das dez mulheres entrevistadas fica em torno de um salĂ¡rio mĂnimo (60%) e com variações de um a trĂªs salĂ¡rios mĂnimos (40%). TambĂ©m perguntou-se Ă s entrevistadas como consideravam sua cor de pele. Neste quesito, declararam-se brancas (40%), morenas (40%) e negras (20%), Segundo dados do SEADE na pesquisa de Condições de Vida para a RegiĂ£o Metropolitana de SĂ£o Paulo (1994), as famĂlias monoparentais chefiadas por mulheres negras representam a parcela com menores condições de oferecer cuidados bĂ¡sicos para seus filhos. Este vĂnculo nĂ£o Ă© desconhecido e expressa as difĂceis condições de vida desses grupos (VITALE, 2002:51).
Como diz Vitale (2002), a relaĂ§Ă£o entre famĂlias monoparentais femininas e pobreza acaba, de um lado, por construir outro estigma, o de que as mulheres sĂ£o menos “capazes” para cuidar de suas famĂlias ou para administrĂ¡-las sem um homem. De outro, Ă© apontado que as mulheres, hoje, ganharam maior independĂªncia e, portanto, podem assumir suas famĂlias. No entanto, enquanto houver a associaĂ§Ă£o maciça entre monoparentalidade e pobreza – e os dados do Censo DemogrĂ¡fico de 2000 o confirmam, em especial quando se observa a distribuiĂ§Ă£o por regiões do paĂs – acaba por fortalecerem-se muito mais a adjetivaĂ§Ă£o dessas famĂlias como vulnerĂ¡veis ou de risco do que como potencialmente autĂ´nomas.
A rotina da mulher chefe de famĂlia encontra na mĂ£o-dupla trabalho/vida familiar, uma problemĂ¡tica que acaba por se refletir na participaĂ§Ă£o dessa(s) mulher(es) na vida e formaĂ§Ă£o de seus filho(s), o que pĂ´de ser apreendido nas entrevistas.
[...] eu tenho que ser o exemplo para meu filho [...] eu tento explicar pra eles o que Ă© bom, o que Ă© ruim [...] tento colocar na cabecinha deles [...] Ă s vezes a gente num consegue fazer tudo que eles querem [...] tem hora que eles querem uma coisa e a gente num pode dĂ¡, nĂ©, complicado um pouco (E:1).
Portanto, o desafio da conciliaĂ§Ă£o entre o trabalho e sua vida familiar pela mulher chefe de famĂlia estĂ¡ presente nos depoimentos apresentados, reveladores da dificuldade da mulher/mĂ£e e provedora em promover o sustento da famĂlia e preservar uma participaĂ§Ă£o mais efetiva junto a seus filhos e ao ambiente familiar.
Tabela 1. Dados colhidos em 10 (dez) entrevistas feitas com mulheres chefes de famĂlias monoparentais femininas em Salinas/MG.
Entrevistadas
|
Idade
|
Cor
|
Escolaridade
|
Nº Filhos
|
Renda
|
E:1
|
36
|
Morena
|
Fundamental
|
3
|
1 salĂ¡rio
|
E:2
|
47
|
Negra
|
MĂ©dio
|
3
|
1 salĂ¡rio
|
E:3
|
50
|
Branca
|
Superior Completo
|
1
|
2 a 5 salĂ¡rios
|
E:4
|
51
|
Morena
|
Fundamental
|
1
|
1 salĂ¡rio
|
E:5
|
43
|
Branca
|
Fundamental
|
2
|
1 salĂ¡rio
|
E:6
|
38
|
Negra
|
Superior Completo
|
1
|
2 a 5 salĂ¡rios
|
E:7
|
46
|
Branca
|
Superior Incompleto
|
2
|
2 a 5 salĂ¡rios
|
E:8
|
43
|
Morena
|
Fundamental
|
4
|
1 salĂ¡rio
|
E:9
|
35
|
Morena
|
Fundamental
|
3
|
1 salĂ¡rio
|
E:10
|
51
|
Branca
|
Fundamental
|
3
|
1 salĂ¡rio
|
Mais que isso, nessas circunstĂ¢ncias, o trabalho passa a ser encarado como uma necessidade extrema, um sacrifĂcio necessĂ¡rio para guiar e manter a unidade familiar:
Pra eu parar de trabalhar pra cuidar deles nĂ£o dĂ¡, eu sobrevivo desse salĂ¡rio, entĂ£o tem que trabalhar nĂ©, e aĂ os mais velhos estĂ£o aqui e vĂ£o cuidando do outro. Levanto de madrugada, faço o almoço, deixo o almoço pronto e vou trabalhar (E:10).
ConvĂ©m ainda ressaltar que a associaĂ§Ă£o entre famĂlias monoparentais chefiadas por mulheres e pobreza aponta claramente estes segmentos como foco de critĂ©rios para programas sociais. Na Ăºltima dĂ©cada, estudiosos da famĂlia, na perspectiva demogrĂ¡fica, como Ă© o caso de Goldani (1994), jĂ¡ chamavam a atenĂ§Ă£o, a partir dos dados dos censos anteriores, para esta prioridade.[3]Os possĂveis programas dirigidos para as famĂlias pobres monoparentais femininas deverĂ£o contribuir para a sua maior autonomia e nĂ£o para estigmatizĂ¡-las como sem condições de oferecer cuidados e proteĂ§Ă£o aos seus membros (VITALE, 2002:52).
A contemplaĂ§Ă£o Ă s famĂlias monoparentais femininas, no municĂpio de Salinas/MG, por parte das polĂticas e programas sociais, mostrou-se dentre o universo pesquisado[4] pouco significativa. Apenas cerca de 40% das famĂlias participam de algum programa social que contribua para a inclusĂ£o social dos membros da famĂlia e os demais 60% nĂ£o tĂªm nenhuma ajuda social por parte dos poderes da federaĂ§Ă£o.
Entendemos que, a inclusĂ£o social e participativa da famĂlia monoparental feminina, deve ser respaldada por programas sociais que englobem todo o contingente que demanda esta atenĂ§Ă£o.
2 – SituaĂ§Ă£o financeira: um agravo familiar
Como diz Mishra (1995: 104), o pluralismo de bem-estar contemporĂ¢neo “Ă© muito mais do que uma simples questĂ£o de decidir quem pode fazer o melhor [Estado ou sociedade] em termos de vantagens comparativas na produĂ§Ă£o de serviços de bem-estar”. É tambĂ©m, e principalmente, uma estratĂ©gia de esvaziamento da polĂtica social como direito de cidadania, jĂ¡ que, com o “desvanecimento das fronteiras entre as esferas pĂºblicas e privadas”, se alarga a possibilidade de privatizaĂ§Ă£o das responsabilidades pĂºblicas, com a conseqĂ¼ente quebra da garantia de direitos (apud PEREIRA, 2006:33).
E, o que seriam, afinal, esses direitos? Em que se fundamentam? SĂ£o direitos exorbitantes, ou, apenas direitos, necessidades para uma afirmaĂ§Ă£o social, preservando a dignidade de seus reclamantes?
Essas indagações nos remetem a fatos reais como se constata:
[...] a maior necessidade, Ă©, eu gostaria que minha famĂlia tivesse bem estruturada financeiramente [...] (E:2).
A questĂ£o financeira nos faz voltar Ă s pontuações aqui inicialmente articuladas, jĂ¡ que a sociabilidade do indivĂduo e do mesmo modo, da famĂlia se constroem atravĂ©s do aspecto econĂ´mico, sem, no entanto, deixar de lado os laços de afetividade que simbolizam o termo “famĂlia”. Assim, a fragilidade financeira e educacional fomenta a dificuldade econĂ´mico-social, que promove, como jĂ¡ mencionamos a falta de tempo das mulheres chefes de famĂlias monoparentais para uma maior participaĂ§Ă£o na vida familiar.
Percebe-se, dessa forma, que a situaĂ§Ă£o financeira nĂ£o Ă© uma aliada da famĂlia monoparental feminina, como se verifica: “[...] tem de fazer tudo pra nĂ£o deixar faltar e nem deixar de pagar as contas em dia, mas nĂ£o tem como nĂ£o pagar atrasado” (E: 10). Ou ainda:
[...] meus minino arranjo, ta trabalhando, mas ganha o mĂnimo assim, pouco mas ganha [...] minha moça de 20 anos trabalha olhando crianças, a outra vai terminar o curso agora, vai tentar o vestibular [...], ela vai tentar o curso de Sistema de InformaĂ§Ă£o [...] (E:6).
A preocupaĂ§Ă£o com o futuro dos filhos Ă© ponto fundamental, principalmente, em relaĂ§Ă£o Ă conquista de um emprego:
Meus “fi” arranjar um emprego, Ă© isso que eu gostaria assim ter uma casinha pres poder morar e tudo empregado, pramim puder viver com Ăªs, assim, independente de meu povo (E:4).
Segundo Jacinto e Suarez (1994:138), aqueles que conseguem permanecer no sistema educacional formal, tĂªm acedido habitualmente aos segmentos deteriorados do sistema, obtendo credenciais que nĂ£o implicam ganhos educacionais semelhantes aos de seus pares de outros setores sociais.
As relações econĂ´mico-sociais se entrecruzam, formando uma teia de prosperidade ou derrocada do indivĂduo. Tal uniĂ£o tem seu vĂ©rtice na educaĂ§Ă£o propiciando qualificaĂ§Ă£o e capacitaĂ§Ă£o para o mercado de trabalho.
3 – Escola e ascensĂ£o social
Como nĂ£o poderia deixar de ser, uma grande preocupaĂ§Ă£o das mulheres que foram entrevistadas Ă© com a educaĂ§Ă£o de seus filhos. JĂ¡ que a maioria das entrevistadas, apresentam os seguintes Ăndices de formaĂ§Ă£o escolar: 60% tĂªm apenas o ensino fundamental; 20% o ensino superior completo; 10% o ensino mĂ©dio e outras 10% o ensino superior incompleto. Esta preocupaĂ§Ă£o pode relacionar-se inclusive com a ausĂªncia paterna na famĂlia, como expressa uma entrevistada:
[...] sem a companhia do pai meus filhos nĂ£o vĂ£o a escola, entĂ£o [...] a maior necessidade minha Ă© que eles estudassem, pensar um pouco no futuro nĂ© porque hoje tudo Ă© o estudo, pra mim, minha maior dificuldade Ă© essa (E:1).
A educaĂ§Ă£o como garantidora de um futuro mais promissor Ă© compartilhada por outras famĂlias:
[...] Ă© muito difĂcil estudar um filho, nĂ£o Ă© fĂ¡cil. Minha minina mesmo, nem terminou o estudo porque ela adoeceu e foi obrigada a afastar, agora que eu falei pra ela: vocĂª volta que a gente sem o estudo, a gente nĂ£o Ă© nada. E meu minino graças a Deus, [...] ele ta sim, ta indo bem, por enquanto, enquanto eu to podendo dar o estudo ele ta aĂ, e eu espero que eu consigo, atĂ© que ele forme (E:7).
E ainda observa-se que, o acesso ao ensino superior Ă© segundo uma outra entrevistada,
a maior necessidade, os mininos jĂ¡ formano, e a gente ainda nĂ£o tem. Assim, eu nĂ£o sei qual caminho que eles quer seguir, mais [...] Pra vocĂª pagar nĂ©, tirar do salĂ¡rio, da boca dos menores pra manter [...] igual, eu tenho os dois maiores, pra manter eles lĂ¡ fora Ă© uma dificuldade imensa, nĂ£o tem como (E:10).
O acesso ao ensino superior apresenta caracterĂsticas de exclusĂ£o e de nĂ£o-acesso como pode se perceber na anteposiĂ§Ă£o aqui mencionada. Retorna-se ao tema das limitações econĂ´micas e a necessidade maior da provedora dedicar-se quase que exclusivamente ao laboro.
Para Mitscherlich[5] (1970:175-179, 182-184), a “relaĂ§Ă£o pai-filho”, pode ser atingida ou completamente destruĂda em dois pontos de ruptura: no contato afetivo e no contato objetual, que se influenciam mutuamente em estreita interdependĂªncia. No inĂcio, porĂ©m, situa-se a relaĂ§Ă£o com a mĂ£e, na qual pode ter Ăªxito ou fracassar a criaĂ§Ă£o da “confiança primordial” (E. H. ERIKSON), que depende totalmente do sentimento de segurança, da correspondĂªncia afetiva – consciente ou inconsciente – que o recĂ©m-nascido encontra na mĂ£e. Segundo Canevacci (1987:237), nasce assim, a aspiraĂ§Ă£o Ă autonomia e Ă iniciativa, ou seja, do esquema-base dos modos de comportamento.
A falta de participaĂ§Ă£o paterna na criaĂ§Ă£o dos filhos põe-se como um obstĂ¡culo a ser superado pela famĂlia monoparental feminina. Esta falta se caracteriza de maneira mais aguda quando inclui simultaneamente a omissĂ£o financeira e presencial do pai na vida e formaĂ§Ă£o dos filhos.
O nĂ£o reconhecimento por parte do genitor masculino de seus laços com os filhos, promove muitas vezes, a revolta por parte da mulher que se vĂª “obrigada” a arcar sozinha com a questĂ£o financeira e tentar suprir tambĂ©m os laços paternos na famĂlia.
4 – GĂªnero: presença masculina, ela Ă© necessĂ¡ria?
Olha, no meu haver em num, eu num acho nĂ£o, eu num acho assim que eles vĂ£o ter problema por eles nĂ£o ter um pai dentro de casa, porque meus filhos nunca teve [...] o mais novo sim, ele teve, pode atĂ© ser igual, a gente comenta a morte do pai dele entĂ£o [...] ele fica triste mais eu tento conversar com ele, mais [...] nĂ£o sente nĂ£o (E:1).
A famĂlia monoparental feminina alĂ©m do processo de vulnerabilidade social a que estĂ¡ submetida na maioria dos casos, enfrenta na falta da figura paterna por – falecimento – um fato que indiscutivelmente acomete a formaĂ§Ă£o psicolĂ³gica e social da mĂ£e/provedora e principalmente dos filhos.
Os reflexos da perda muitas vezes permanecem em uma espĂ©cie de incubaĂ§Ă£o que poderĂ¡ emergir em fases posteriores da vida dos filhos. Nesse aspecto, a mulher tenta proteger seus filhos de uma situaĂ§Ă£o irremediĂ¡vel.
Nos casos de viuvez ou separaĂ§Ă£o sem nova uniĂ£o, a mĂ£e torna-se a figura aglutinadora do que resta da famĂlia, e sua casa acaba sendo o lugar para onde acorrem os filhos nas situações de desamparo. Sendo o ponto de referĂªncia para toda a famĂlia, Ă mĂ£e Ă© devido um respeito particular – sobretudo se ela tiver uma idade mais avançada – que tem o sentido de uma retribuiĂ§Ă£o do filho Ă mĂ£e que o criou (SARTI, 2007:69).
A dificuldade de substituiĂ§Ă£o da paternidade na famĂlia monoparental Ă© relatada por uma das entrevistadas: “uma ausĂªncia que nĂ£o dĂ¡ pra suprir, mas, cĂª consegue, cĂª busca Deus, busca religiĂ£o, os amigos, a famĂlia reunida pra isso, pra superar isso” (E:8).
Substituir a paternidade Ă© segundo as mulheres entrevistadas um fato cheio de orgulho e motivaĂ§Ă£o para a mulher chefe de famĂlia que, abraça essa causa de coraĂ§Ă£o, a bem da prĂ³pria famĂlia. A importĂ¢ncia e necessidade da presença masculina no meio familiar se relacionou, em alguns depoimentos de nossa pesquisa, com determinadas tarefas domĂ©sticas socialmente atribuĂdas ao homem:
É, Ă© um pouco complicado [...] que tem horas assim que eu sinto mais falta quando quebra um cano nĂ©, quando[...] uma coisinha de resolver dentro de casa, sabe? Que meu marido fazia, entĂ£o aĂ, nesse ponto aĂ que eu sinto dificuldade que [...] (E:1).
Nos casos em que a mulher assume a responsabilidade econĂ´mica da famĂlia – como se percebe acima – ocorrem modificações importantes no jogo de relações de autoridade, e efetivamente a mulher pode assumir o papel masculino de “chefe” (de autoridade) e definir-se como tal (SARTI, 2007:67).
Essa percepĂ§Ă£o surge a seguir: “Bom pra mim num tem dificuldade nenhuma. Eu faço tudo, eu [...] o que eles precisa, [...] com esse pouco de salĂ¡rio queu ganho da pra mim dar pra meus filho tudo o que Ăªs precisa[6] (E:4).
Mesmo com uma vida financeira modesta, as mulheres chefes de famĂlia monoparental feminina, deixam claro que a presença masculina no nĂºcleo familiar se faz desnecessĂ¡ria.
[...] eu vou levano a vida [...] sem, nĂ©, sentir falta dele, que tem meus filho pra cubrir a falta nĂ©, aĂ [...] pra mim tanto faz, tanto fez, Ă© uma coisa sĂ³ (E:4).
A experiĂªncia pode inclusive remeter a mulher Ă convicĂ§Ă£o de nĂ£o mais querer constituir outra famĂlia:
Sobre assim [...] eu, ter outro companheiro eu nĂ£o quero! Eu nĂ£o quero! Eu jĂ¡ coloquei esse objetivo na minha vida. Eu nĂ£o quero! Pessoas falam comigo: “ah, vocĂª tem que casar, vocĂª Ă© nova, eu nĂ£o quero!” (E:1).
Portanto, tanto a questĂ£o da presença paterna na famĂlia, quanto uma possĂvel tentativa de superaĂ§Ă£o da falta desta, Ă© encarada pela mulher provedora como uma assimilaĂ§Ă£o do papel do homem e dessa forma, constata-se que:
Eu sou mĂ£e e pai, entĂ£o [...] em termos de conversas, eu converso abertamente com meus filhos, em termos de tudo, qualquer dĂºvida que eles tiver e precisarem de alguma coisa, eles vĂªm atĂ© mim e perguntam (E:10).
5 – Afetividade na famĂlia monoparental
As trocas afetivas na famĂlia imprimem marcas que as pessoas carregam a vida toda, definindo direções no modo de ser com os outros afetivamente e no modo de agir com as pessoas. Esse ser com os outros, aprendido com as pessoas significativas, prolonga-se por muitos anos e frequentemente projeta-se nas famĂlias que se formam posteriormente (SZYMANSKI, 2002:12).
[...] tudo que eu falo com eles, me obedecem, respeitam! Graças a Deus, nesse ponto aĂ eu nĂ£o tenho que queixar de meus filhos nĂ£o (E:1).
As ralações afetivas na famĂlia monoparental feminina se expressam como um fator aglutinador que promovem uma relaĂ§Ă£o de troca contĂnua, respeitosa e afetuosa dos filhos com suas mĂ£es e destas para com aqueles.
As mudanças na composiĂ§Ă£o familiar, sua visibilidade e a aceitaĂ§Ă£o da sociedade exigem que se leve em conta o reflexo daquelas na sociedade mais ampla, nas formas de se viver em famĂlia e nas relações interpessoais. Para compreendĂª-las e desenvolver projetos de atenĂ§Ă£o Ă famĂlia, o ponto de partida Ă© o olhar para esse agrupamento humano como um nĂºcleo em torno do qual as pessoas se unem, primordialmente, por razões afetivas (SZYMANSKI, 2002:10).
Assim,
A gente tem um relacionamento muito bom, graças a Deus. Em termos de hoje ter muitos adolescentes Ă© [...] eles [...] a gente Ă© muito liberal sabe, transparente, entĂ£o a gente [...] eles nunca me deram trabalho nĂ©, entĂ£o eu agradeço a Deus por isso e graças a Deus [...] Ă© difĂcil, mas o que vale Ă© a educaĂ§Ă£o, como se diz, a educaĂ§Ă£o vem do berço nĂ©, graças a Deus atĂ© o dia de hoje nĂ£o me deram trabalho nĂ£o (E:6).
Mais uma vez fica claro que o relacionamento intra-familiar ocorre sobre bases educacionais e de conscientizaĂ§Ă£o, tanto da mĂ£e quanto dos filhos e da importĂ¢ncia de ambos para a estruturaĂ§Ă£o do ambiente familiar.
O trecho de GuimarĂ£es Rosa (2001), citado adiante, expressa bem o modo de interpretar-se e ao outro, incluindo os sentimentos correspondentes:
Sentimentos ternos em relaĂ§Ă£o Ă mĂ£e, associados a um modo de ser valorizado por ela:
“Miguilim gostava pudesse abraçar e beijar a MĂ£ezinha, muito, demais muito, Ă quela hora mesma...” Agora, ele ia gostar sempre de MĂ£e, tenĂ§Ă£o de ser menino bem comportado, obediente, conforme o de Deus, essas orações todas” (p.48).
A valorizaĂ§Ă£o terna expressa pelas mĂ£es na provisĂ£o dos filhos, encontra seu reconhecimento cotidiano em gestos simples, que refletem bem a sensaĂ§Ă£o de apaziguamento e bem-estar dentro da casa, dentro da famĂlia monoparental feminina.
O trecho de GuimarĂ£es Rosa (2001) mostra bem isso, o prazer de Miguilim em receber e doar carinho e afeto para sua mĂ£e. O mesmo se percebe nos trechos de entrevista da nossa pesquisa:
[...] a gente conversa, a gente brinca, principalmente eu e meu filho, a minina nĂ£o, que a minina Ă© evangĂ©lica, Ă© mais fechada, nĂ©, mas assim, a gente tambĂ©m brinca, mas mais Ă© com meu minino, dĂ£o muito bem nĂ³s dois(E:7).
Ou ainda:
É um relacionamento aberto, muito diĂ¡logo, porque isso Ă© o necessĂ¡rio. Tem algum problema com um, entĂ£o todos ta sabeno, eu gosto sempre que eles vem falar comigo, a gente sempre Ă© unido nĂ©, aqui Ă© 5 nĂ©, Ă© 5 por 1 e 1 por todos, entĂ£o, graças a Deus Ă© muito bom (E:10).
A afetividade entre mĂ£e e filhos Ă© um elemento de coesĂ£o familiar:
[...] sou sĂ³ eu e eles, aĂ eles sente mais forte atravĂ©s de mim, que se eu fraquejar, a fraqueza [...] atravĂ©s de mim vai enfraquecer toda a famĂlia. EntĂ£o, eu tenho que ser forte o suficiente pra mim manter eles (E:10).
A “afetividade Ă© um meio de penetrar no que hĂ¡ de mais singular na vida social coletiva, pois ela constitui um universo peculiar da configuraĂ§Ă£o subjetiva das relações sociais de dominaĂ§Ă£o” (SAWAIA, 2005:40 apud VIEIRA, 2006:36). Complementarmente, Vygostsky (1934-1982) discute que “a afetividade Ă© um fenĂ´meno privado, mas cuja gĂªnese e conseqĂ¼Ăªncia sĂ£o sociais, constituindo-se em ponto de tramitaĂ§Ă£o do social e do psicolĂ³gico, da mente e do corpo e, principalmente, da razĂ£o e da emoĂ§Ă£o” (VYGOSTSKY, 1934 – 1982 S.P. apud SAWAIA, 2005: p.40). Desta forma, a afetividade se configura como a passagem do meio social para o meio psicolĂ³gico e, ainda que exista relaĂ§Ă£o de dominaĂ§Ă£o entre os indivĂduos, ela se faz presente entre os mesmos (VIEIRA, 2006:37).
Conclusões
A pesquisa que propiciou a elaboraĂ§Ă£o deste artigo foi importante para a obtenĂ§Ă£o de maior conhecimento a respeito dos estudos de gĂªnero e conseqĂ¼entemente da mulher, especialmente sobre o papel da mulher na conduĂ§Ă£o da famĂlia monoparental, na qual a figura feminina Ă© ponto central.
A anĂ¡lise abordou os aspectos socioeconĂ´micos e afetivos que circundam o ambiente da famĂlia monoparental feminina. Nos dados colhidos na pesquisa de campo, constatou-se que a renda mĂ©dia das famĂlias monoparentais femininas pesquisadas gira em torno de 1 salĂ¡rio mĂnimo com variações de atĂ© 3 salĂ¡rios. Isso se explica pela pouca escolaridade da maioria das entrevistadas que apresentam os seguintes Ăndices de formaĂ§Ă£o escolar: 60% tĂªm apenas o ensino fundamental; 20% o ensino superior completo; 10% o ensino mĂ©dio e outras 10% o ensino superior incompleto. A pouca qualificaĂ§Ă£o remete a baixos salĂ¡rios e pouco reconhecimento social, repercutindo na qualidade de vida da famĂlia monoparental feminina e formaĂ§Ă£o sĂ³cio-familiar dos filhos.
No entanto, ao lado das dificuldades sociais e financeiras, os laços de afetividade e das relações familiares de respeito mĂºtuo entre a mulher chefe de famĂlia e seus filhos, estĂ£o presentes nos depoimentos. As entrevistadas relatam que a dedicaĂ§Ă£o por elas direcionada aos filhos os une e fortalece o ambiente familiar.
Da mesma forma, a busca de superaĂ§Ă£o da falta da figura paterna dentro de casa Ă© um aspecto mencionado pela maioria das mulheres como nĂ£o prioritĂ¡rio e ao mesmo tempo incentivo para a auto-superaĂ§Ă£o dos entraves financeiros (principalmente) causados pela nĂ£o partilha das despesas familiares. Desse modo, o diĂ¡logo e as relações “transparentes” sĂ£o mencionados como necessĂ¡rios para conduzir a formaĂ§Ă£o da prole na famĂlia, e conseqĂ¼entemente, para a sociedade.
A pesquisa permite concluir que a mulher chefe de famĂlia monoparental, enfrenta jornadas Ă¡rduas de trabalho extra e intrafamiliar, jĂ¡ que labora durante o dia de trabalho e depois volta a trabalhar dentro da prĂ³pria casa, alĂ©m da funĂ§Ă£o de educar e cuidar dos filhos, papel jĂ¡ tradicionalmente atribuĂdo Ă mulher e que no caso da famĂlia monoparental, põe-se como mais um dever entre todos os que ela realiza sozinha no seu papel de mulher chefe de famĂlia.