PapĂ©is liberados pelo Arquivo Nacional mostram que instituições pĂºblicas, como Copel e UFPR, funcionavam como braços avançados do Serviço Nacional de Informações
Documentos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) comprovam a existĂªncia de oito Ă³rgĂ£os de espionagem interna em instituições pĂºblicas civis do ParanĂ¡ durante a ditadura militar (1964-1985). As Assessorias de Segurança e Informações (ASIs) funcionavam como braços avançados do SNI. Elas reportaram centenas de casos de “subversĂ£o” e ajudaram a alimentar a perseguiĂ§Ă£o polĂtica no estado.
HĂ¡ registros de quatro ASIs em instituições do governo do estado: nas universidades de Londrina (UEL) e MaringĂ¡ (UEM), na Copel e na Telepar. No Ă¢mbito federal, havia estruturas na SuperintendĂªncia da Rede FerroviĂ¡ria Federal S/A em Curitiba, na Delegacia Regional do MinistĂ©rio da EducaĂ§Ă£o, na hidrelĂ©trica de Itaipu e na Universidade Federal do ParanĂ¡ (UFPR).
Aliciamento de posseiros
Entre os documentos que ilustram a aĂ§Ă£o das Assessorias de Segurança e Informações do ParanĂ¡, hĂ¡ uma denĂºncia feita ao SNI sobre uma suposta “agitaĂ§Ă£o” na Ă¡rea em que seria construĂda a hidrelĂ©trica de Segredo. Segundo o informe enviado no dia 21 de setembro de 1981, uma funcionĂ¡ria do Instituto de Terra e Cartografia estaria percorrendo regiões prĂ³ximas ao futuro canteiro de obras e aliciando posseiros.
“Em suas andanças, realiza reuniões com posseiros moradores na Ă¡rea, objetivando legalizar a documentaĂ§Ă£o dos mesmos”, diz a sinopse do documento. O material ainda cita que a mulher tem ligações com um bispo e um padre da regiĂ£o. “Em tais reuniões, tem sido tendenciosa, distorcendo a realidade dos fatos relacionados Ă obra”, dizia o investigador. Os nomes foram ocultados pelas autoridades.
“Era um serviço institucionalizado e que funcionava com desembaraço dentro das repartições. Era feito normalmente por militares pagos pelo SNI, que davam expediente e usufruĂam da estrutura do Ă³rgĂ£o civil”, descreve a supervisora do NĂºcleo de Acervos do Regime Militar do Arquivo Nacional de BrasĂlia, Vivien Ishaq. O papĂ©is integram um conjunto de documentos do SNI entregues ao Arquivo Nacional em 2005.
Vivien coordenou a organizaĂ§Ă£o do material, que revelou a existĂªncia de 249 Ă³rgĂ£os setoriais como as ASIs em todo paĂs. Eles formavam uma complexa teia de espionagem, o Sistema Nacional de Informações e Contrainformações (Sisni). Com base nesse trabalho a Casa Civil (na Ă©poca, dirigida pela hoje presidente Dilma Rousseff) expediu em 2007 um aviso circular para todos os Ă³rgĂ£os detectados solicitando o envio de documentos para o Arquivo Nacional.
Sem resposta
Entre as instituições paranaenses, a UFPR informou que nĂ£o tem mais qualquer material referente Ă sua ASI. As demais nĂ£o deram uma resposta definitiva – duas delas nem existem mais, como a Telepar e a Rede FerroviĂ¡ria.
Os documentos que comprovam as ASIs instaladas no ParanĂ¡ constam do banco de dados do Sisni. O acesso do pĂºblico em geral Ă s informações do sistema foi regulamentado no Ăºltimo dia 5 de abril pelo MinistĂ©rio da Justiça. Desde o dia 13, tambĂ©m estĂ£o disponĂveis 50 mil documentos repassados pela AeronĂ¡utica.
Na Ăºltima quinta-feira, a Gazeta do Povo conseguiu cĂ³pias de 14 documentos que ilustram a atuaĂ§Ă£o das ASIs paranaenses. Os nomes dos envolvidos nas investigações, contudo, foram ocultados pelas autoridades– eles sĂ³ podem ser divulgados a pedido da pessoa citada ou com sua autorizaĂ§Ă£o expressa.
“É interessante pesquisar essas informações regionais para perceber que os principais afetados pelo regime foram pessoas comuns. Normalmente se dĂ¡ muita atenĂ§Ă£o Ă s grandes personalidades, Ă situaĂ§Ă£o de polĂticos como a presidente Dilma Rousseff, e se esquece dessa gente”, diz Vivien.
RepressĂ£o
Um dos maiores pesquisadores sobre a ditadura militar no estado, o jornalista Milton Ivan Heller afirma que apesar de o estado ser considerado perifĂ©rico politicamente na Ă©poca, recebeu uma repressĂ£o especialmente dura. Segundo ele, as ASIs funcionavam como mais um foco de “acusações absurdas”. “Por mais que uma denĂºncia nĂ£o fosse adiante porque era notoriamente inconsistente, sĂ³ o fato de ter o nome em um informe que chegou ao SNI jĂ¡ prejudicava toda a vida do sujeito.”
JĂ¡ o advogado trabalhista EdĂ©sio Passos, que passou dois anos preso pelo regime nos anos 1970, afirma nĂ£o ter ficado surpreso com a proliferaĂ§Ă£o das ASIs no estado. “DifĂcil mesmo Ă© achar qual Ă³rgĂ£o pĂºblico nĂ£o era vigiado.”
Universidades foram mais vigiadas
As Assessorias de Segurança e Informações (ASIs) da UFPR, UEM e, principalmente, na UEL estiveram entre as mais ativas do paĂs. De acordo com artigo do pesquisador Rodrigo Patto SĂ¡ Motta, publicado na Revista do Arquivo Nacional de dezembro de 2008, o serviço de espionagem em Londrina se estendeu atĂ© 1982. A maioria das universidades fechou suas ASIs entre 1979 e 1980, impulsionadas pela Lei da Anistia em vigor a partir de agosto de 1979.
Os documentos consultados pela Gazeta do Povo contĂªm diversos informes sobre as ações do movimento estudantil da UEL. Em 15 de dezembro de 1980, o SNI foi informado sobre a tentativa de infiltrar alunos ligados a ações polĂticas no Projeto Rondon, iniciativa do governo federal para aproximar os universitĂ¡rios Ă realidade do interior do paĂs.
“AlĂ©m da participaĂ§Ă£o, os estudantes deverĂ£o transmitir as palavras de ordem do movimento estudantil e tambĂ©m se aproximarem principalmente do homem do campo e dos habitantes das pequenas comunidades urbanas, aproveitando-se das reuniões para pregar sua luta contra o regime”, dizia o documento 2.613 produzido pela ASI da UEL naquele ano. O material traz fichas com a orientaĂ§Ă£o polĂticas de 18 possĂveis “infiltrados”.
Em outro documento, aparecem dois ofĂcios destinados ao reitor da UFPR entre janeiro e fevereiro de 1980. Eles sĂ£o assinados pelo diretor da DivisĂ£o de Segurança e Informações do MinistĂ©rio da Cultura na Ă©poca, que coordenava as ASIs (nĂ£o Ă© possĂvel identificar quem assina). No segundo, Ă© comunicado o encerramento das atividades da ASI e hĂ¡ agradecimentos ao reitor (o nome nĂ£o aparece no ofĂcio, mas o reitor do perĂodo era Ocyron Cunha) pela “prestimosa colaboraĂ§Ă£o” Ă assessoria.
Demitida da universidade em 1972 apĂ³s ser presa pelos militares por envolvimento na AĂ§Ă£o Popular, a professora aposentada ZĂ©lia Passos disse que sĂ³ descobriu sobre o funcionamento da ASI da UFPR hĂ¡ pouco tempo. “Era um perĂodo de extrema desconfiança, todo mundo via todo mundo como possĂvel informante. Mas nunca passou pela minha cabeça que havia um serviço de informações interno e institucionalizado”, disse a professora, que entrou na Justiça e foi readmitida em 1988.
(GP/ANDRÉ GONÇALVES)