quarta-feira, 7 de abril de 2010

Saiu no Zé Beto:

As 12 estações de uma Via Crúcis brasileira


Hoje não é dia de rir nem brincar, como a gente tantas vezes aqui faz. É Sexta-Feira da Paixão, dia de jejuar, de lembrar o Cristo crucificado, sua paixão, os suplícios sofridos em nome de salvar a Humanidade de seus próprios horrores. São as 14 estações da Via Crúcis, que nós nos acostumamos a ver nas paredes das igrejas. Mas hoje, dia de chorar e carpir dores, percorreremos juntos as 12 estações de uma Via Crúcis diferente. Uma Via Crúcis brasileira, vivida e sofrida por mulheres notáveis, que vocês agora vão descobrir. Elas são parte das 27 sobreviventes e das 45 assassinadas ou desaparecidas, que não eram nem assaltantes nem traficantes nem criminosas. Eram brasileiras patriotas, jovens idealistas, estudantes na maioria, militantes que lutavam para reconduzir nosso país ao estado democrático, para que pudéssemos todos exercer a liberdade do pensamento, do ir e do vir, do discutir, do divergir, para que pudéssemos voltar a ser cidadãos, voltar a pensar como indivíduos, e não como um rebanho perfilado e obediente, um Brasil de catatônicos, sob a ditadura militar.

Essas mulheres bravas, corajosas, únicas, enchem as páginas do livro Luta, substantivo feminino — mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura, lançado, pelos ministros Paulo Vannuchi e Nilcéia Freire, no auditório superlotado da PUC de São Paulo, gente em pé, gente sentada no chão. Todos os casos, comprovados pela Comissão dos Mortos e Desaparecidos, nos dão vergonha, nos tiram qualquer possibilidade de inocência e revelam o quanto sórdido pode ser o homem quando detém poder absoluto sobre seu semelhante. São horrores com técnicas de tortura à altura desses "micro-ondas", onde traficantes assam pessoas nas favelas cariocas, e praticados por agentes do Estado que agiam com a mesma frieza de um Elias Maluco. Tudo pago com o dinheiro do contribuinte! Perdão, meus amores, mas a Hildezinha tão confortável de todos os dias vai hoje soar tão amarga quanto as lembranças relatadas aqui. Mas, creiam, dói tanto em mim escrever sobre isso quanto será dolorosa, para vocês, a leitura. É a penitência que a coluna propõe nesta Sexta a todos nós, na esperança de que cada vez mais brasileiros apóiem a Comissão da Verdade e entrem nessa luta, para que tais horrores, sob ordem e patrocínio daqueles governos vigentes, não caiam no esquecimento e jamais se repitam...A paixão segundo Rose "Sobe depressa, 'Miss Brasil', dizia o torturador enquanto me empurrava e beliscava minhas nádegas escada acima no Dops. Eu sangrava e não tinha absorvente. Eram os '40 dias' do parto.

Na sala do delegado Fleury, num papelão, uma caveira desenhada e, embaixo, as letras EM, de Esquadrão da Morte. Todos deram risada quando entrei. 'Olha aí a Miss Brasil. Pariu noutro dia e já está magra, mas tem um quadril de vaca', disse ele. Um outro: 'Só pode ser uma vaca terrorista'.

Mostrou uma página de jornal com a matéria sobre o prêmio da vaca leiteira Miss Brasil numa exposição de gado.

Riram mais ainda quando ele veio para cima de mim e abriu meu vestido.

Segurei os seios, o leite escorreu. Eu sabia que estava com um cheiro de suor, de sangue, de leite azedo. Ele (delegado Fleury) ria, zombava do cheiro horrível e mexia em seu sexo por cima da calça com um olhar de louco. O torturador zombava: 'Esse leitinho o nenê não vai ter mais'".

Rose Nogueira, que conheci quando eu apresentava, na Globo, um quadro no programa TV Mulher, dirigido por ela, é jornalista e foi presa, em 1969, em São Paulo...A paixão segundo Gilze "Eu estava arrebentada, o torturador me tirou do pau de arara. Não me aguentava em pé, caí no chão. Nesse momento, fui estuprada".

De Gilze Cosenza, assistente social aposentada de Belo Horizonte. Foi presa em 1969. Sua filha tinha quatro meses.A paixão segundo Izabel "Eu, meu companheiro e os pais dele fomos torturados a noite toda ali, um na frente do outro. Era muito choque elétrico. Fomos literalmente saqueados. Levaram tudo o que tínhamos: as economias do meu sogro, a roupa de cama e até o meu enxoval. No dia seguinte, eu e meu companheiro fomos torturados pelo capitão Júlio Cerdá Mendes e pelo tenente Mário Expedito Ostrovski.

Foi pau de arara, choques elétricos, jogo de empurrar e ameaças de estupro. Eu estava grávida de dois meses, e eles estavam sabendo. No quinto dia, depois de muito choque, pau de arara, ameaça de estupro e insultos, eu abortei. Quando melhorei, eles voltaram a me torturar"...

A professora Izabel Fávero foi presa em 1970, em Nova Aurora, no Paraná. Hoje, ela é docente universitária, lecionando administração, no Recife.A paixão segundo Hecilda "Quando fui presa, minha barriga de cinco meses de gravidez já estava bem visível. Fui levada à delegacia da Polícia Federal, onde, diante da minha recusa em dar informações a respeito de meu marido, Paulo Fontelles, apanhei e comecei a ouvir, sob socos e pontapés: 'Filho dessa raça não deve nascer'. (...) me colocaram na cadeira do dragão, bateram em meu rosto, pescoço, pernas, e fui submetida à 'tortura científica'. Da cadeira em que sentávamos saíam uns fios, que subiam pelas pernas e eram amarrados nos seios. As sensações que aquilo provocava eram indescritíveis: calor, frio, asfixia. Eu não conseguia ficar em pé nem sentada. As baratas começaram a me roer. Aí, levaram-me ao hospital da Guarnição de Brasília, onde fiquei até o nascimento do Paulo. Nesse dia, para apressar as coisas, o médico, irritadíssimo, induziu o parto e fez o corte sem anestesia".

Hecilda Fontelles Veiga, estudante de Ciências Sociais, presa no quinto mês de gravidez, em 1971, em Brasília. Hoje, vive em Belém, onde é professora da Universidade Federal do Pará.A paixão segundo Marise "Eu era jogada, nua e encapuzada, como se fosse uma peteca, de mão em mão. Com os tapas e choques elétricos, perdi dentes e todas as minhas obturações".

A socióloga Marise Egger-Moellwald ainda amamentava seu filho quando foi presa em 1975.

Marise mora em São Paulo.A paixão segundo Yara "Era muita gente em volta de mim. Um deles me deu pontapés e disse: 'Você, com essa cara de filha de Maria, é uma filha da puta'. E me dava chutes. Depois, me levaram para a sala de tortura. Aí, começaram a me dar choques direto da tomada no tornozelo. Eram choques seguidos no mesmo lugar".

Yara Spadini, assistente social, foi presa em 1971, em São Paulo, onde é professora aposentada da PUC.A paixão segundo Inês Etienne "Fui conduzida para uma casa em Petrópolis.

O dr. Roberto, um dos mais brutais torturadores, arrastou-me pelo chão, segurando-me pelos cabelos. Depois, tentou me estrangular e só me largou quando perdi os sentidos. Esbofetearam-me e deram-me pancadas na cabeça. Fui espancada várias vezes e levava choques elétricos na cabeça, nos pés, nas mãos e nos seios. O 'Márcio' invadia minha cela para 'examinar' meu ânus e verificar se o 'Camarão' havia praticado sodomia comigo. Esse mesmo 'Márcio' obrigou-me a segurar seu pênis, enquanto se contorcia obscenamente. Durante esse período fui estuprada duas vezes pelo 'Camarão' e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua, ouvindo gracejos e obscenidades, os mais grosseiros".

Inês Etienne Romeu - bancária, presa em São Paulo, em 1971. Hoje, vive em Belo Horizonte.A paixão segundo Ignez Maria "Fui levada para o Dops, onde me submeteram a torturas como cadeira do dragão e pau de arara. Davam choques em várias partes do corpo, inclusive nos genitais. De violência sexual, só não houve cópula, mas metiam os dedos na minha vagina, enfiavam cassetete no ânus. Isso, além das obscenidades que falavam. Havia muita humilhação. E eu fui muito torturada, juntamente com o Gustavo [Buarque Schiller], porque descobriram que era meu companheiro".

Ignez Maria Raminger estudava medicina veterinária quando foi presa em 1970, em Porto Alegre, onde trabalha atualmente como técnica da Secretaria de Saúde.A paixão segundo Cecília "Os guardas que me levavam, frequentemente encapuzada, percebiam minha fragilidade e constantemente praticavam vários abusos sexuais contra mim. Os choques elétricos no meu corpo nu e molhado eram cada vez mais intensos. Me senti desintegrar: a bexiga e os esfíncteres sem nenhum controle. 'Isso não pode estar acontecendo: é um pesadelo... Eu não estou aqui...', pensei. Vi meus três irmãos no DOI-Codi/RJ. Sem nenhuma militância política, foram sequestrados em suas casas, presos e torturados".

Cecília Coimbra era estudante de Psicologia quando foi presa no Rio em 1970. Hoje, ela preside o Grupo Tortura Nunca Mais e é professora de psicologia da Universidade Federal Fluminense.A paixão segundo Dulce "Eu passei muito mal, comecei a vomitar, gritar. O torturador perguntou: "Como está?". E o médico: "Tá mais ou menos, mas aguenta". E eles desceram comigo de novo." De Dulce Chaves Pandolfi, professora da FGV-Rio.

Da ALN, foi presa em 1970 e serviu de "cobaia" para aulas de tortura.A paixão segundo Maria Amélia "Fomos levados diretamente para a Oban. Eu vi que quem comandava a operação do alto da escada era o coronel Ustra. Subi dois degraus e disse: 'Isso que vocês estão fazendo é um absurdo'. Ele disse: 'Foda-se, sua terrorista', e bateu no meu rosto. Eu rolei no pátio. Aí, fui agarrada e arrastada para dentro. Me amarraram na cadeira do dragão, nua, e me deram choque no ânus, na vagina, no umbigo, no seio, na boca, no ouvido. Fiquei nessa cadeira, nua, e os caras se esfregavam em mim, se masturbavam em cima de mim. Mas com certeza a pior tortura foi ver meus filhos entrando na sala quando eu estava na cadeira do dragão. Eu estava nua, toda urinada por conta dos choques".

Maria Amélia de Almeida Teles, diretora da União de Mulheres de São Paulo, era professora de educação artística quando foi presa em São Paulo, em 1972.A paixão segundo Áurea "Uma vez eu vi um deles na rua, estava de óculos escuros e olhava o mundo por cima.

Eu estava com minha filha e tremi".

A enfermeira Áurea Moretti, torturada em 1969, pediu a palavra, no lançamento do livro na PUC-SP, para dizer que a anistia foi inócua, porque ela cumpriu pena de mais de quatro anos de cadeia, mas seus torturadores nem sequer foram processados pelos crimes que cometeram.

Hildebrand Angel

 
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