O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso esteve com a ex-primeira-ministra britĂ¢nica Margaret Thatcher - morta nesta segunda-feira aos 87 anos - uma vez, durante um almoço na embaixada brasileira em Londres.
Na ocasiĂ£o, a "Dama de Ferro", que ocupou o cargo de primeira-ministra da GrĂ£-Bretanha por 11 anos, se espantou com a duraĂ§Ă£o do mandato de quatro anos para o qual havia sido eleito o entĂ£o presidente brasileiro: "Isto Ă© ridĂculo!", disse Thatcher ao mandatĂ¡rio.
Na conversa, o responsĂ¡vel pelo Plano Real e pela privatizaĂ§Ă£o de estatais como Vale do Rio Doce e TelebrĂ¡s lamenta a morte da britĂ¢nica, mas nega ter buscado inspiraĂ§Ă£o em suas ideias para a polĂtica econĂ´mica de seu governo.A histĂ³ria foi recordada por FHC durante uma entrevista concedida por telefone Ă BBC Brasil no final da tarde da Ăºltima segunda-feira.
Dizendo-se um social-democrata, FHC nega o rĂ³tulo de neoliberal e elogia a firmeza demonstrada por Thatcher durante seu mandato.
Confira agora os principais trechos da entrevista concedida por Fernando Henrique Cardoso Ă BBC Brasil.
BBC Brasil – Em sua opiniĂ£o, qual o legado deixado pela ex-primeira-ministra britĂ¢nica Margaret Thatcher?
Fernando Henrique Cardoso - Eu acho que Ă© de firmeza. Tomou decisões, foi em frente. Deu um exemplo de que para governar vocĂª precisa ter crença e avançar. Eu posso nĂ£o concordar com as crenças, mas ela foi firme.
Com quais crenças de Thatcher o senhor nĂ£o concorda?
FHC – No caso especĂfico, eu nunca fui favorĂ¡vel ao desmonte da vida sindical e tambĂ©m a uma visĂ£o demasiado prĂ³-liberdade de mercado. Eu sou social-democrata, nĂ£o tenho essa mesma percepĂ§Ă£o.
Mas alguns analistas veem uma inspiraĂ§Ă£o em Margaret Thatcher na abertura econĂ´mica e nas privatizações que senhor fez em seu governo. O senhor concorda com essa avaliaĂ§Ă£o?
FHC – NĂ£o. Abertura econĂ´mica Ă© outra coisa. Como o mundo marchava, como marcha, para uma integraĂ§Ă£o crescente das economias, tem que abrir a economia. Agora, nĂ£o houve inspiraĂ§Ă£o. De minha, parte nenhuma. É muito mais uma questĂ£o prĂ¡tica dos interesses do Brasil do que inspiraĂ§Ă£o de modelos.
As privatizações que o senhor fez em seu governo entĂ£o nĂ£o foram inspiradas nesse modelo neoliberal?
FHC – NĂ£o. Foi na necessidade de vocĂª modernizar certos setores. O Estado tinha uma crise fiscal, nĂ£o tinha recursos para trazer essas soluções tecnolĂ³gicas, nem dispunha de tecnologia, por exemplo, na questĂ£o de telecomunicações.
Por outro lado, em certas empresas eu acho que a atividade era necessĂ¡ria para dar força a elas, como a questĂ£o da Embraer e da Vale do Rio Doce. Eram repartições pĂºblicas, nĂ£o tinham como competir e, como vocĂª vai marchar para um mundo de competiĂ§Ă£o, vocĂª tinha que fazer.
Mas eu nunca fui favorĂ¡vel, por exemplo, a privatizar a Petrobras, o Banco do Brasil. Eu acho que vocĂª tem que ter aĂ alguns instrumentos que o Estado disponha deles.
Se bem que acredito tambĂ©m que a forma de funcionar desses setores produtivos estatais deve ser tambĂ©m na competiĂ§Ă£o. A mola do mundo moderno Ă© a inovaĂ§Ă£o e a competiĂ§Ă£o.
O senhor acha que houve um impacto das ideias de Thatcher nas privatizações que aconteceram em outros paĂses da AmĂ©rica Latina?
FHC – Eu nĂ£o sei, provavelmente na Argentina mais fortemente que em outros paĂses; no Chile, em certos momentos.
NĂ£o posso negar que mesmo no Brasil ela teve (uma influĂªncia). Muita gente passou a ter uma visĂ£o mais prĂ³-mercado, mais prĂ³-liberalizaĂ§Ă£o em funĂ§Ă£o dela. NĂ£o foi o meu percurso, eu era muito mais ligado aos (ex-primeiros-ministros britĂ¢nicos) Gordon Brown, Tony Blair, Ă Terceira Via, (ao ex-presidente dos EUA) Bill Clinton.
Mas, mesmo assim, eles nunca me inspiraram propriamente. NĂ³s aqui temos uma força da questĂ£o local que Ă© muito grande, nossos problemas. O que nĂ³s tĂnhamos que fazer aqui era adaptar a economia brasileira ao processo que estava correndo no mundo, que era de maior integraĂ§Ă£o econĂ´mica.
Muitos analistas chegaram a decretar o fim desse ideĂ¡rio neoliberal de Thatcher com a crise de 2008. Na avaliaĂ§Ă£o do senhor, como ex-presidente e sociĂ³logo, isso pode realmente acontecer? Estamos seguindo para um modelo mais estatista?
FHC – Eu acho difĂcil, as ideias vĂ£o e vĂªm dependendo das circunstĂ¢ncias. Como eu disse a vocĂª, do meu Ă¢ngulo, Ă© preciso haver um certo equilĂbrio. O Estado tem que existir sempre como uma força reguladora, porque o mercado largado a si mesmo traz muita irracionalidade. Por outro lado, se nĂ£o houver o mercado, o Estado leva ao arbĂtrio e Ă burocratizaĂ§Ă£o, Ă escolha de parceiros, a preferĂªncias polĂticas, a uma coisa que nĂ£o Ă© positiva.
EntĂ£o tem que haver um equilĂbrio entre essas forças. Eu acho que mesmo a partir da crise o que vai acontecer Ă© isso. NĂ£o vai morrer o ideal de vocĂª ter uma economia competitiva ou mais liberdade de aĂ§Ă£o dos agentes econĂ´micos, nem vai morrer o ideal de termos um Estado que seja capaz de redistribuir renda e tomar medidas de polĂtica social que sĂ£o necessĂ¡rias.
Thatcher sempre foi crĂtica a uma maior integraĂ§Ă£o europeia e tinha restrições ao euro. Ela morre em um momento em que o bloco ainda estĂ¡ lutando para sair da crise. O senhor acha que a histĂ³ria pode vir a provar que ela estava certa, que a UniĂ£o Europeia pode se esfacelar?
FHC – Eu nĂ£o acredito, a minha visĂ£o Ă© outra. Eu acho que a Europa deveria ter se integrado mais, para ter uma polĂtica fiscal mais compatĂvel com a polĂtica monetĂ¡ria, nĂ£o menos. A integraĂ§Ă£o europeia foi, do ponto de vista da civilizaĂ§Ă£o, muito importante, primeiro porque acabou com a tensĂ£o de guerra na Europa, sĂ³ isso jĂ¡ valeu muito.
O caminho para esses paĂses todos Ă© de maior integraĂ§Ă£o.
VocĂª vĂª, juntamente com o liberalismo da Thatcher existia um certo nacionalismo. É curioso, sempre se atribui aos liberais uma visĂ£o menos nacional, e ela tinha as duas coisas.
Ao mesmo tempo ela teve uma relaĂ§Ă£o bastante conturbada com a AmĂ©rica Latina, principalmente com a Argentina, com a Guerra das Malvinas (1982). Como o senhor avalia a relaĂ§Ă£o dela com a AmĂ©rica Latina?
FHC – Ela atuou de acordo com os interesses estritos da Inglaterra e sempre atuou com toda força. NĂ£o quis saber de negociaĂ§Ă£o com a Argentina, em um momento em que o Brasil (por exemplo) apoiou a Argentina.
O senhor jĂ¡ esteve com Thatcher? Em que circunstĂ¢ncia?
FHC – Sim. Ela jĂ¡ nĂ£o era mais primeira-ministra e eu era presidente. Ela foi Ă embaixada do Brasil (em Londres) e almoçou comigo.
E como foi o almoço?
FHC – Foi bem, ela disse uma frase que eu me recordo. Ela perguntou: "How long it lasts your term, sir?" (Quanto tempo dura seu mandato, senhor?). Eu disse que eram quatro anos e ela respondeu: "That’s ridiculous!" (Isto Ă© ridĂculo!). (BBC)