Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
“Olá Bernardo, gostaria muito de participar do debate de vocês, mas estou com problemas nas cordas vocais e pribidade falar por 10 dias por ordem médica. Tá difícil e desse jeito não adianta ir. Fale para sua amiga que agora entendi que a falta de voz nos exclui em todos os sentidos. Quero passar o livro pra você e conversar sobre o que está acontecendo no país, tenho a impressão de estar vendo um remake do lado de quem manda,  mas uma fúria que precisa sem compreendida por parte dos debaixo. O confronto na Maria Antonieta foi demais pra mim. O mesmo lugar, a mesma polícia, só não eram os estudantes bem comportados da USP de 68. bjo”
Há 13 dias atrás, no dia 14 de junho, recebi este e-mail da amiga e camarada Teresa Urban. Não deu tempo de conversarmos, porque antes da recuperação de seu problema nas cordas vocais, um infarto nos fez perder Teresa, exatamente 45 anos depois da histórica passeata que, em 1968, no Rio de Janeiro, reuniu 100.000 pessoas contra a ditadura militar. Uma perda para todos aqueles que lutam por uma vida digna, contra as agressões ao meio ambiente e em defesa dos direitos humanos.
Tive o prazer de conhecer Teresa na luta contra as terríveis mudanças no código florestal, pelos idos de 2010. Mais ativa do que nunca, Teresa foi um exemplo de fibra militante e lutou pelos ideais coletivos até o fim de sua vida. Em 2011, mostrou toda sua lucidez política em entrevista na Gazeta do Povo, em que analisava a atual conjuntura política do Brasil. Em 2012, escreveu uma carta em que denunciava a repressão policial nas comunidades onde estavam sendo instaladas as tais UPS.
Na sua casa, na Bona Busnello, recebia uma juventude que ela havia empolgado a lutar. Muitos debates, conversas, balas de goma e cafés.
Que a garra militante de Teresa Urban continue empolgado cada mais a juventude brasileira, que parece estar novamente indignada, o que certamente daria ainda tantas alegrias à camarada!
Teresa Urban, presente! Agora e sempre!

O último texto de 
Teresa Urban

Ruth Bolognese recebeu este texto de Teresa Urban, o último que ela escreveu antes falecer ontem à noite. É uma reflexão sobre os acontecimentos destes dias.Lúcida, afiada, procura mostrar à amiga o caráter do movimento que levou milhares às ruas. Ruth pediu-me que o publicasse por duas razões: que seja uma maneira de lembrar de Teresa e porque ele deve mesmo ser lido por todos para enriquecer o debate. É o que segue:
Ninguém mandou você perguntar
“Olá Ruth, estou sem falar há dez dias, não por perplexidade mas por ordens médicas. O silêncio, neste barulho todo, me obrigou a pensar mais do que agir e foi uma experiência muito nova para mim. Montar um quebra-cabeças destes é difícil, amiga, porque a primeira coisa que descobri é que nem mesmo falamos a mesma língua (hoje li em algum lugar que não tem tecla SAP para isso). Abrimos um fosso tão grande entre o que chamamos de povo brasileiro e as elites (governo, politicos, ricos, intelectuais, jornalistas, esquerdistas, nós) e agora estão em nossa frente, serpenteando pelas ruas das cidades, anunciando sua existência.”
“Bom, quanto tempo faz que a gente não se pergunta como as pessoas se sentem nas cidades massacrantes, nos ônibus entupidos, na falta de respeito de motoristas com pedestres, de motociclistas com motoristas, de professor com aluno, de aluno com professor, de jovem com velho, de velho com jovem, de meninos de rua com gente de bem, de trabalhadores endividados pelo consumo fácil, de falta de amor, de médicos gelados como pedra, de gente entediada, de tráfico, de meninos mortos na periferia, de prisões lotadas, de crimes impunes…longa lista.
Lembra, Ruth, como foi o êxodo rural dos anos 70? Perderam-se as raízes. as cidades viraram amontoados humanos de um nível crescente de hostilidade, mas a gente vai levando.
Vizinhos, comunidade, amigos, partido, Estado que protege os mais fracos??? bobajada, mano velho, vamos tocando, tem time de futebol. Tenho pensado muito em algumas palavras: pertencimento e desgarrados
Bem, deu no que deu, não somos um país, somos um monte de “eu”, cada um com seu cartaz, seu facebook e nada que os ligue.
Pode ser que um monte de eu se sinta pertencendo a alguma coisa, assim junto na rua…
A crise é de representatividade? é, mas não tão simples que uma reforma partidária resolva.
Lembrei muito de uma cena antiga, quando contestávamos a instalação da Renault nos mananciais e alguém perguntou quem representava a empresa naquela discussão. E um velhinho sem dentes, paletó de mangas curta que não conseguiam esconder os rotos punhos da camisa, levantou o braço e disse: eu represento a Renault. Nunca esqueci disso porque não entendi qual a crença que levou aquele homenzinho a fazer isso (ninguém mandou, ele estava muito sozinho ali), mas acho que foi um momento de ousadia incrivel.
Dizer eu me represento é mais ousado ainda e muito mais perigoso, Ruth. Ninguém representa ninguém naquela multidão, talvez depois, na foto no facebook, troquem suas representatividades.
Chegamos a isso por negligência e prepotência e agora é um trabalho danado de grande voltar a pensar em coisas pequenas para fazer contato com os alienígenas. Quem sabe aquele dedinho do ET de Spilberg tocando o dedo do menino ajude…
Agora, o que é mesmo ruim nesta história é o que a brava imprensa brasileira fez: criou uma nova espécie, sem nenhum estudo, nehuma base científica, sem nenhuma pergunta: homo sapiens vandalus lamentavilis. Ruth,que vergonha tenho de ser jornalista. Quem são, afinal, aqueles meninos que não temem a polícia, que devolvem as bombas, que chutam tudo com fúria, que saem das lojas saqueadas com sacolas e somem na escuridão? Quem são, quantos são, onde vivem, de onde surgiram? São brasileiros ou só são brasileiros os que serpenteiam sem rumo?
São os dentes da fera, Ruth, só os dentes. O resto, a gente não conhece.
Enquanto continuarem dividindo o país entre manifestantes e vândalos ou, como ontem na OTV, uma repórter mais perdidinha dizia, protestantes e fanáticos, não vai dar para entender o que de fato acontece.
Outro pior é a legitimização e o aplauso à repressão policial.
Não sei se você viu, mas ontem havia uma galera na frente do Palácio Iguaçu (pra Curitiba, bastante gente, umas 10 mil pessoas?) quietos, sem nada que dizer, às vezes cantavam algo tipo “sou brasileiro com muito orgulho” exigiam caras e cartazes para a câmara de TV, andavam de um lado para o outro e só, só, só. Não sei porque estavam ali. Passaram reto pela Câmara, pela Prefeitura, estavam ao lado da Assembléia Legislativa mas pararam na frente do Palácio às escuras. Ninguém para falar, nem por eles nem para eles nem com eles. Foi uma cena muito surreal, que durou tempo, debaixco de chuva e frio.
De repente, do nada, o Palácio do Governo começa a vomitar uma enfurecida tropa de choque que sai jogando bomba, atirando bala de borracha sem mais.
Joãozinho estava lá, Thiago estava lá, Dani, filha de Clovis, estava lá. E mais uma galera de meninos que só estavam lá. Pelo tanto de luz de celular, era pra mostrar depois no face. Só então, na correria do depois, que os dentes surgiram na escuridão e começaram a morder a propriedade, pública ou privada, não importava.
Bom, Rurh, quando vi aquilo – polícia, cachorros, cavalos, bombas e os meninos correndo em desespero, chutando e quebrando tudo -, depois de muito, mas muito tempo na minha vida marvada, chorei.”