terça-feira, 13 de março de 2012

Assédio moral: “A origem está na organização do trabalho”

Pesquisadora afirma que culpar indivíduos nas denúncias de assédio moral é tirar a responsabilidade das empresas e que para aumentar seus lucros elas estariam cometendo “assassinatos corporativos”

Margarida Barreto é médica do Trabalho e pesquisadora do Núcleo de Estudos Psicossociais de Exclusão e Inclusão Social (NEXIN), ligado à Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Ela abre seu computador e mostra a caixa de entrada de seu e-mail com quase três mil mensagens.

“Isso foi só no pequeno espaço de doze meses, tudo enviado para nosso site”, conta. O site a que se refere é o www.assediomoral.org, que traz informações atualizadas sobre os crimes trabalhistas de assédio moral, explica como fazer para denunciá-los e ainda abre espaço para quem deseja contar os abusos que sofreu.

O debate em torno do assédio ou coação moral tem se intensificado no Brasil depois que uma série de estudos e denúncias mostrou os danos que a humilhação no ambiente de trabalho pode causar à saúde do trabalhador — com riscos de levá-lo ao suicídio. Por isso, uma das bandeiras do movimento sindical exige mais dureza no combate ao assédio moral, inclusive no Congresso Nacional. O projeto de lei 675, de 2010, que prevê a criminalização da prática nas relações de trabalho, está parado na Câmara dos Deputados desde o fim de 2011.

Na entrevista, Margarida Barreto diz que o problema é estrutural e está concentrado na organização do trabalho. A pesquisadora afirma ainda que as empresas andam cometendo “assassinatos corporativos” contra seus trabalhadores e aponta que todas as patologias do trabalho do início do capitalismo continuam existindo — com uma novidade: hoje, novas patologias afetam a Saúde Mental do trabalhador.

Em 2000, sua dissertação de mestrado, “Uma jornada de humilhações”, trouxe para o debate público um tema pouco estudado na época: o assédio moral nas relações de trabalho. De lá para cá, o que mudou quanto às políticas de apoio às vítimas?

Algumas coisas foram alteradas. Hoje, em todas as superintendências do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) existe um núcleo de combate às discriminações — que, obviamente, envolvem o assédio moral. Na medida em que foram evoluindo as denúncias no âmbito do Ministério, surgiu a oportunidade de elaborar um termo de ajuste de conduta (TAC) que caracteriza o assédio moral — quer em sua manifestação grupal ou individual — e estabelece uma série de práticas que a empresa deve seguir. Mas elas costumam não segui-las. Do ponto de vista legal, 320 municípios e alguns Estados já têm suas leis contra o assédio moral. Mas essas leis só contemplam os trabalhadores públicos. Isso não significa que não podemos apurar os casos de assédio moral nas relações de trabalho [em empresas privadas] só porque não existe lei. Afinal, temos o artigo 5° da Constituição, o Código Penal, a Declaração Universal dos Direito Humanos, a Recomendação Técnica DSST n° 1/2005 (relacionada ao trabalho no teleatendimento ou telemarketing) e a Portaria n° 09, de 30 de março de 2007, que aprova o anexo II da NR 17 do Ministério do Trabalho e Emprego, cujo item 5.13 explica: “É vedada a utilização de métodos que causem assédio moral, medo ou constrangimento”. Mais recentemente, foi promulgada a Lei Nº 11.948/2009, que veda empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) a empresas que tenham sido condenadas por assédio moral. A falta de legislação não deve constituir argumento para manter silêncio, para não lutar e combater essa prática.

O número de casos tem aumentado?

Até o ano de 2008, aumentou em torno de 1.000% o número de denúncias dentro das diferentes varas do país. O que sabemos é que a região onde mais há denúncias é a região Sudeste, com São Paulo na linha do comando, até porque é lá onde as empresas estão concentradas, nacionais e multinacionais. Logo depois vem a região Nordeste, principalmente Bahia, devido à migração de empresas da região Sul e Sudeste em busca de isenções, maiores vantagens e lucros.

E quais são as consequências do assédio para as vítimas?

O mundo do trabalho, em geral, é um ambiente que causa sofrimento psíquico, adoece e mata as pessoas. Não há garantia de permanência no emprego, existe uma elevada tensão para se produzir mais e gerar mais lucros. Essa exigência constante por maiores metas pode levar a transtornos mentais. Exigir metas faz parte da política de gestão das empresas, mas isso não pode ser desculpa para tratar o trabalhador de forma desumana, como se fosse objeto, extensão da máquina. Por isso, os que adoecem são vistos como gente que não quer trabalhar. Esse é o momento de auge das contradições antagônicas entre classes, que está mascarada na forma de “colaboradores”, uma sutil maneira de sujeitá-lo, submetê-lo, capturando a subjetividade do indivíduo. É comum ouvirmos um trabalhador dizer: eu colaboro para a minha empresa. Uma fala muito forte, porque sugere a posse de algo que ele não tem, pois não é dono dos meios de produção.

Também há alguns estudos associando casos de suicídio às relações de trabalho, não?

As empresas hoje ferem, adoecem e matam as pessoas. E muita gente se mata quando seus problemas culminam em demissão. Eles pensam: “o que eu tenho mais a fazer?”, “o que me resta?” É um suicídio imposto pelas condições e situações vividas no trabalho e, se é imposto, deixa ser suicídio e passa a ser um assassinato corporativo. Se uma empresa quer atingir uma alta lucratividade e um chefe aplica uma pressão nos funcionários, a questão não é esse chefe. Culpá-lo seria não enxergar a empresa dentro do processo. Por trás desse chefe existe toda uma demanda de mercado, uma gestão, uma política de administração, uma forma de organizar o trabalho que a empresa que lhe impõe: apertar a corda e oprimir mais os escravos-trabalhadores da modernidade para produzir mais. E que não se confunda: o assédio se manifesta nas relações interpessoais, mas a origem está na organização do trabalho. Assim, o problema é de todos e atinge a todos os trabalhadores.

Todas as medidas que vem sendo tomadas parecem escapar ao problema central, que está na organização do trabalho. Então, como agir?

As empresas falam em código de ética, normas variadas, possuem psicólogos, assistente social, médicos do trabalho, fazem palestras educativas, mas isso tem pouco alcance. Falta o fundamental: respeito e reconhecimento estão dentro do campo de primeiras medidas, mesmo sabendo que elas não são resolutivas. A solução está em nova forma de produzir. Isso significa garantir novas vidas, não adoecer os trabalhadores por sobrecarga de trabalho e jornadas prolongadas, o que certamente favorecerá a criatividade e a autonomia dos trabalhadores. Enquanto não mudarmos a organização do trabalho, e os meios de produção estiverem concentrados nas mãos de poucos, não poderemos falar em avanços e muito menos em trabalho decente e saudável. Isso não significa que vamos ficar esperando que os trabalhadores expropriem os meios de produção e promovam a autogestão. As lutas devem fazer parte do cotidiano: os diálogos, a resistência, a organização são cada vez mais necessários, porque levam os trabalhadores a pensar sua vida dentro do ambiente de trabalho, as contradições que existem entre o discurso que ouvem e o que vivem no meio ambiente de trabalho etc.

E como a senhora definiria a vida dentro do ambiente de trabalho?

Se você pegar um livro do Friedrich Engels [filósofo alemão, 1820-1895], A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra, você encontrará inúmeros relatos de humilhações da classe trabalhadora e que hoje chamamos de assédio moral. O que aconteceu? Hoje a coisa está perfumada, o discurso das grandes empresas é atual, bonito, sedutor e elegante. Porém, a prática mostra outra realidade: uma relação marcada pela exploração, expropriação dos direitos, degradação das condições de trabalho, precarização. Se no século 19 havia trabalho infantil, hoje continua havendo. Se no século 16 as pessoas morriam por exaustão no trabalho, também hoje continuam morrendo. Todas aquelas patologias do início do capitalismo continuam existindo, acrescidas de mais algumas: os transtornos mentais.

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