sexta-feira, 4 de março de 2011

Líbia é centro de disputa geopolítica

Qualquer pessoa honesta se preocupa, condena e repudia a morte de civis inocentes em decorrência do conflito em curso na Líbia e em qualquer outro lugar. É rigorosamente inaceitável o emprego de força militar contra a população civil deste país árabe, embora as autoridades líbias sustentem que não estão praticando este tipo de ação contra cidadãos desarmados.

Razão pela qual saudamos o fato da Assembleia Geral das Nações Unidas ter suspendido por unanimidade a Líbia como país membro do Conselho de Direitos Humanos da entidade devido ao uso da violência pelo governo líbio na repressão aos protestos antigoverno. A resolução foi adotada pelos 192 países-membros da Assembleia, seguindo a recomendação feita pelo próprio conselho, sediado em Genebra.

Essas ações enviam uma poderosa mensagem de que não há impunidade e que aqueles que cometem crimes contra a humanidade serão punidos, e que os princípios fundamentais de justiça e responsabilidade devem prevalecer. Espera-se agora que atentados semelhantes praticados por nações hegemônicas no mundo, como os Estados Unidos e seus militares, e da região, como Israel e suas tropas, levados a cabo contra populações alheias, mereçam o mesmo castigo e sejam levados a responder perante o Tribunal Penal Internacional, ainda que tenham retirado suas assinaturas do Tratado de Roma.

As revoltas maciças que vêm ocorrendo nos países árabes do Norte da África e no Oriente Médio demonstraram que seus povos não mais suportam décadas de opressão e humilhação, saem às ruas erguendo as bandeiras de pão, emprego, justiça social, progresso, liberdade e democracia. E conscientes, no exercício de sua autodeterminação, sabem que os problemas acumulados devem ser resolvidos pela população dos seus respectivos países.

A geoestratégia desenvolvida pelos EUA, Inglaterra e França no Oriente Médio e Norte da África, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, entrou em crise. A política de dividir os países, jogá-los uns contra os outros, o fornecimento de bilhões de dólares anualmente em forma de armamentos militares como que a fundo perdido ou de assistência comercial a fim de obter vantagens econômicas e garantir a necessária estabilidade, não importando se favoreciam ditaduras opressoras ou monarquias absolutas, está deixando de funcionar.

Apesar dos vultosos recursos petrolíferos, que só beneficiam internamente os setores privilegiados, a pobreza alastrou-se. Não sobrou às massas da região, ante a abusiva elevação do preço dos alimentos, da falta de empregos e demais mazelas, outra saída que não a rebeldia em busca da dignidade e do respeito aos seus direitos. Parodiando Aladim e a Lâmpada Maravilhosa das 1001 Noites Árabes, o gênio escapou da garrafa e os EUA e seus parceiros da OTAN se vêem em palpos de aranha para dominá-lo, se é que vão conseguir.

A Líbia ocupa um território equivalente ao estado do Amazonas. Mais de 90% é deserto. Sua população gira em torno de seis milhões que vive na orla do mar Mediterrâneo. Produz cerca de dois milhões de barris/dia de petróleo de alta qualidade e detém abundantes reservas de gás natural. Esse petróleo se destina basicamente aos países europeus e dada à proximidade, o frete sai barato.

Estrutura das tribos

Seu principal dirigente, Muamar Kadafi, militar de origem beduína, na sua juventude se inspirou nas idéias do líder nacionalista egípcio Gamal Abdel Nasser. Os habitantes desse país, porém, têm milenárias tradições guerreiras. Diz-se que os antigos líbios fizeram parte do exército de Aníbal quando esteve a ponto de liquidar a Antiga Roma com as tropas que cruzaram os Alpes. A tribo – com seus clãs e subdivisões – é a única instituição que, ao longo de séculos, organiza a sociedade dos árabes que habitam as regiões colonizadas por italianos, no início do século 20, chamadas Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan e que compões a atual Líbia.

Depois da independência da Líbia, em 1951, jamais se formaram partidos políticos. Durante a monarquia, toda a política girou em torno das tribos. Quando a revolução de Kadafi reformulou em 1969 o papel político das tribos, elas se tornaram apenas guardiãs avalistas dos valores culturais e religiosos. Entraram em cena os comitês populares e o congresso popular. Contudo, a tradição das tribos e sua força social acabaram prevalecendo.

As notícias provenientes da Líbia e transmitida pelos grandes meios de comunicação têm sido em alguma medida contraditórias. Com enviados especiais à região, reportagens in loco da CNN e da TeleSur, por exemplo, mostraram-se conflitantes. É necessário esperar algo mais para se saber com precisão o que ocorre na realidade em meio ao caos que se produziu.

Fica evidente, no entanto, que a cobertura que a grande mídia internacional dá agora à Líbia e deu anteriormente à Tunísia e ao Egito tem natureza absolutamente distinta. A hipocrisia predomina. Afinal de contas, as ditaduras desses últimos eram amigas, a de Kadafi, apesar da aproximação dos últimos anos com as potências hegemônicas, sempre foi considerada politicamente inimiga.

Intervenção militar

Salta à vista que a voracidade pelo petróleo e gás líbio e não uma solução pacífica e justa para a guerra civil que se está estabelecendo é que motiva as forças políticas, essencialmente conservadoras, a conclamar nos EUA e em algumas nações européias por uma intervenção militar imediata da OTAN.

Notícias recentes de Washington informam que 40 neoconservadores, à frente o ‘falcão’ Paul Wolfowitz, enviaram uma carta ao presidente Obama pedindo que intervenha militarmente na Líbia para derrubar Kadafi e “acabar com a violência”. Os signatários são analistas políticos e ex-altos funcionários do governo de George W. Bush.

A organização neoconservadora Foreign Policy Initiative (FPI), considerada a sucessora do Project for the New American Century (Pnac), coordenou a medida e divulgou o texto. Alertando que a Líbia está “no umbral de uma catástrofe moral e humanitária”, a carta, divulgada no dia 25 de fevereiro, exige a adoção imediata de medidas de força.

De outra parte, Obama depois de se reunir com o secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, declarou que "estamos trabalhando com a ONU, com a Cruz Vermelha e outras organizações para buscar uma solução humanitária para a crise líbia, mas ao mesmo tempo seguimos explorando outras ações.”

Durante sua intervenção no Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, a secretária de Estado, Hillary Clinton, ressaltou a necessidade de abordar os problemas da Líbia de dentro. “O presidente Obama e eu acreditamos que podemos fazer diferença trabalhando desde o interior da Líbia em vez de ficar de fora atuando simplesmente como críticos ou observadores.” E Phillip Cownley, porta-voz da Casa Branca, acrescentou: “Estamos tratando de nos pôr em contacto com indivíduos na Líbia que são ativos opositores ao governo.”

Por sua vez, o coronel Dave Lapan, porta-voz do Pentágono declarou à imprensa que as Forças Armadas dos EUA estão posicionando navios e aviões em torno da Líbia e que o exército norte-americano estuda vários planos de contingência. "Nós estamos reposicionando forças, em caso de necessidade para que ofereçam essa flexibilidade uma vez que as decisões forem tomadas".

O reposicionamento das tropas, navios e aviões ao redor da Líbia significa o início de uma escalada militar na crise. A intenção é que uma ofensiva sobre a Líbia seja executada pelas forças da OTAN, sob mandato da ONU e comandada pelos EUA. Discretamente Reino Unido, França, Espanha, Alemanha e Itália despacharam para a área navios de guerra sob o pretexto de retirada de cidadãos. Para os EUA, é estrategicamente fundamental a ocupação da Líbia a fim de exercer pressão sobre o vizinho oriental, o Egito, caso Cairo decida, em decorrência de nova correlação interna de forças, denunciar o Acordo de Camp David entre Israel e Egito, conhecido como Acordo Béguin-Sadat.

Os milhares de manifestantes que há 15 dias vêm se manifestando nas ruas de Benghazi, Trípoli e outras cidades, contra e a favor do governo Kadafi, continuam reafirmando sua rejeição a qualquer intervenção estrangeira porque asseguram que isto ameaça sua soberania. Uma ação militar externa provocaria mortes, migrações forçadas maciças e enormes danos à população civil, além de precipitar um novo e perigoso cenário – provavelmente bélico - em toda a região. Incumbe aos cidadãos líbios e só a eles a busca de uma decisão, seja de que caráter for, sem qualquer ingerência estrangeira. Os fatos não podem evoluir para a busca de uma justificativa de intervenção militar, lembrando-se o que ocorreu e ocorre no Iraque e no Afeganistão.

O governo brasileiro afirmou que não vai abrir mão de sua posição na defesa de que as soluções para crises sejam encontradas de forma multilateral e em fóruns internacionais. Mas isto não basta. É preciso acrescentar que vai lutar por uma solução pacífica que preserve os direitos humanos da população líbia, mas também sua autodeterminação sem que a soberania da nação líbia seja violentada. (Opera Mundi)

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