sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

“Furacão Elis”: Um diamante verdadeiro


Celso de Castro Barbosa

No prefácio de “Furacão Elis”, biografia que Regina Echeverria lançou apenas três anos depois da morte da cantora, Hamilton Almeida Filho, o Hamiltinho, jornalista e marido da autora, matou a charada. “Essa Elis, mulher, por muito tempo foi a voz que nos revelou o quanto morríamos de saudade do Brasil”.

Pobre, vesga, rechonchuda, tampinha – só cresceu até 1,53m – e linda, Elis Regina Carvalho Costa (1945-1982) nasceu na periferia de Porto Alegre e viveu a infância e adolescência num conjunto habitacional. Tinha tudo para dar errado. Não deu. Compõe qualquer lista das maiores cantoras populares do século XX, com a vantagem de ser muito mais versátil do que Ella Fitzgerald, Billie Holiday ou Edith Piaf. Além do blues, do jazz e das canções românticas que as divas consagraram, ela também mandava muito bem no samba, rock, bolero, bossa nova, Milton Nascimento (um gênero à parte), em tudo o que tem a ver com melodia, ritmo e harmonia. E com uma mistura de técnica e emoção de cair o queixo.

Uma vez Elis contou que tinha tanto som dentro da cabeça que era inevitável, em algum momento, pôr tudo pra fora. Pôs ainda menina, vencendo concursos de programas de rádio na capital gaúcha e imitando, descaradamente e com perfeição, o ídolo Angela Maria. A inspiração da Sapoti acompanhou Elis até o fim.

Porto Alegre, naturalmente, ficou pequena para a cantora e em 31 de março de 1964 Elis desembarcou no Rio de Janeiro com o pai, que trazia no bolso uma carta de recomendação do PTB, o partido do presidente João Goulart, deposto em golpe militar no dia seguinte. Foi preciso se virar. Primeiro, chamou a atenção dos músicos que animavam a noite carioca, especialmente pela emissão e divisão rítmica. Um espanto, ninguém até ali ouvira nada parecido. Um passo importante para conquistar a amizade de Edu Lobo e Vinicius de Moraes, que confiaram a ela a defesa de Arrastão no festival da TV Excelsior de 1965. Pronto. O Brasil tinha uma estrela que brilharia pelos próximos 17 anos. Nossa primeira cantora moderna. A era do rádio ficara, para sempre, no passado.

Até o fim dos 1960 só deu Elis. No Fino da Bossa, programa de maior audiência da TV Record, dividiu o palco com mais de 60 artistas de todos os gêneros da música brasileira. Alguns duetos, como o com Elza Soares são registros de um tempo que, se não volta mais, pode ao menos servir de inspiração para quem se aventurar.

Mas estava tudo bom demais para ser verdade. Roberto, Erasmo e Wanderléa não estavam para brincadeira. O iêiêiê, a Jovem Guarda, decretou a morte do Fino e uma disputa inusitada, engraçadíssima vista de hoje, pôs a turma do samba em pé de guerra contra a turma do rock. Sobrou para a guitarra elétrica, um dos instrumentos que compõem a base harmônica da música brasileira desde os anos 1920. Houve até passeata contra ela no centro de São Paulo. Elis, Gilberto Gil e Edu Lobo à frente.

Ciclotímica, como se chamavam na época os bipolares, são impressionantes os relatos dos que conviveram com Elis e viram de perto suas mudanças bruscas de comportamento. Em cinco minutos ia da depressão à euforia ou vice-versa. Por isso não levou muito tempo para incorporar a “maldita” guitarra a suas bandas. E o resultado foi espetacular.

Em três discos, dois produzidos por Nelson Motta em 1970 e 1971, a ciclotimia se manifestou de forma inequívoca. Está tudo lá. Guitarras, Roberto e Erasmo, autores de As Curvas da Estrada de Santos, Se você pensa e Mundo Deserto e, não bastasse, a apresentação de um cantor novo, um tal de Tim Maia com quem divide “These are the songs”. Há ainda uma gravação memorável de “Golden slumbers”, de Lennon e McCartney, e outra não menos, “Cinema Olympia”, de Caetano Veloso.

Nos anos seguintes, ao lado de Cesar Camargo Mariano, dublê de marido e maestro, Elis viveu seus anos dourados que a música, penhoradamente, agradece. Aperfeiçoou a técnica, descobriu mais de uma dezena de bons compositores, gravou discos antológicos e produziu shows idem. Que disco é capaz de reunir, como no LP de 1972, “Águas de março” (Tom Jobim), “Atrás da porta” (Francis Hime e Chico Buarque), “Mucuripe” (Fagner e Belchior) e “Bala com bala” (João Bosco e Aldir Blanc), entre outras joias raras? Pergunta que permanece sem resposta, quarenta anos depois.

Sua obra-prima, no entanto, estava reservada para dois anos depois quando, ao lado de Tom Jobim, gravou, em Los Angeles, na modesta opinião deste redator, o melhor disco da música brasileira de todos os tempos, Elis & Tom. Nossa cantora mais talentosa ao lado do mais inspirado compositor. Juntos. E para sempre.

Nos palcos, Elis deu início a uma revolução. Em sua carreira e na maneira de se conceber e produzir espetáculos no Brasil. Música, teatro e dança, tudo ao mesmo tempo agora como no show “Falso Brilhante”, de 1976. Antes de sua morte ela ainda estrelaria quatro grandes espetáculos: O Trem Azul, Saudade do Brasil, Essa Mulher e Transversal do Tempo. Neste último, panfletário do início ao fim, deu a impressão de querer sair do palco e derrubar a ditadura. Pessoalmente. Não perdeu a oportunidade de hostilizar Caetano Veloso, numa versão debochada de um trecho da música “Gente”.

Àquela altura, 1978, o pessoal da cultura se dividia entre duas patrulhas. A ideológica, da qual Elis fazia parte, e a odara, da qual Caetano era uma espécie de fundador e comandante em chefe. Enquanto a Patrulha Odara via com desdém as manifestações explícitas de horror à ditadura, a Patrulha Ideológica cobrava engajamento político dos que se dedicavam a cultuar a beleza e o prazer e que produziram coisas belas e prazerosas no período, como a música “Odara”, de Caetano. Uma bobagem.

Nos últimos anos de sua vida breve, de 36 anos, Elis já era uma das maiores, senão a maior cantora popular em atividade no planeta. Quando morreu, em 1982, o povo e a imprensa foram generosos, exceção da revista Veja, que serviu um aperitivo do que se tornaria vinte anos depois: informações jamais confirmadas e muita ficção para atingir a imagem da cantora. Caetano Veloso protestou, com veemência, na TV Globo, dizendo que os filhos de Elis precisavam saber que a mãe não era a pessoa de que a revista falava. Veja vendeu muitos exemplares e perdeu muito prestígio.
Hoje, 30 anos depois de sua morte, a observação de Hamiltinho é ainda mais atual. E, sem desprezo pelos novos talentos, vale repetir Nelson Motta, para quem a cada cantora nova que aparece, Elis está cantando melhor. Está mesmo.

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