segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Hoje é o dia dos Canavieiros: O Lula disse que "os usineiros são verdadeiros heróis", mas estes trabalhadores explorados é que são os heróis do Brasil

Os Trabalhadores do setor sucroalcooleiro

APROPUC-SP

Thyago Augusto de Carvalho

O submundo da cana-de-açúcar é austero, quente, repleto de fuligem da cana queimada, cercado por animais peçonhentos. A cultura da cana-de-açúcar no Brasil ainda não consegue se desvincular de elementos arcaicos como a monocultura, o latifúndio e a escravidão. É comum a exploração da mão-de-obra em condições precárias, com alta carga de trabalho, baixos salários, alimentação ruim e equipamentos inadequados para os trabalhadores. O aumento da produção de etanol permite que haja um crescimento inevitável da exploração da força de trabalho.
A existência de condições análogas à escravidão dos trabalhadores canavieiros não é algo difícil de encontrar nas usinas de cana no Brasil atualmente. O descaso do Estado e dos donos das usinas com os trabalhadores das lavouras de cana expressa a barbárie do capital, que é um verdadeiro retrocesso histórico para a classe trabalhadora. A violação de direitos humanos e sociais em favor da acumulação de lucros se manifesta na omissão de direitos e na negação de conquistas, ao sujeitar à servidão aqueles que não reúnem condições para satisfazer dignamente as suas necessidades na sociedade de mercado.
Exemplo disso é quando a mídia expõe, em poucos segundos ou em poucas linhas, alguma matéria sobre a jornada abusiva de trabalho dos lavradores ou as condições que vivem nos canaviais, sendo alguns casos claros de redução à condição análoga à de escravo. Isso está previsto pelo Código Penal (CP) como crime, no art. 149, além do crime de atentado contra a liberdade do trabalho tipificado no art. 197 do mesmo Código. O trabalhador, migrante ou não, é forçado a jornada exaustiva de trabalho, e tem a sua locomoção restringida, seja pela retenção de documentos, seja em razão de dívida contraída com o usineiro, preposto ou aliciadores.
De acordo com o Ministério Público do Trabalho (MPT), existem usinas que procuram gerenciar as relações trabalhistas dentro da lei; entretanto, algumas outras ainda estão à margem da legislação, sendo estas ainda mais exploradoras da força de trabalho. Os Sindicatos dos Trabalhadores Rurais (STR) e o Ministério do Trabalho (MT) não conseguem acompanhar as atividades de controle e fiscalização, propiciando uma série de irregularidades trabalhistas.
A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê jornada semanal de 48 horas de trabalho; contudo, segundo a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), muitos cortadores de cana trabalham até 12 horas por dia de segunda-feira a segunda-feira no período de safra. A exploração do homem pelo homem no campo é alarmante. O desrespeito à lei é justamente um reflexo da precarização do trabalho em decorrência de maior acumulação financeira em um menor intervalo de tempo. O corte de cana é uma atividade perigosa e insalubre, que aniquila mental e fisicamente o cortador. A atividade repetitiva e fatigante, realizada a céu aberto, sob a intensa exposição aos raios solares, com fuligem de cana queimada, poeira da terra e fumaça das caldeiras, torna a atividade no canavial um trabalho de alto risco para os lavradores.
Em seu estudo, o professor Francisco Alves (2006), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), mostra as causas de mortes dos cortadores de cana. O professor Alves estipula a carga de atividade de um trabalhador num dia comum de atividades no canavial. A atividade do corte de cana exige dos trabalhadores um esforço elevadíssimo, digno de um atleta, ao caminhar, golpear, contorcer-se, flexionar-se e carregar e descarregar peso; entretanto, avalia o pesquisador, esse esforço é muito perigoso para a saúde dos trabalhadores, que estarão condenados, em poucos anos, devido à alta freqüência exigida no corte pela indústria do etanol.
As exigências atuais na usina da cana em relação à quantidade do peso do corte são de no mínimo 12 toneladas de cana diária por cada trabalhador. Desse modo, os trabalhadores do corte assumem o podão poucas horas antes de o sol nascer e o largam quando o sol se põe. De acordo com Alves, a atividade da cana exige um esforço impressionante:

O trabalhador que corta em média 12 mil quilos ao dia anda 8.880 metros; dá 366.300 golpes de facão e faz em média 36.630 flexões com as pernas e entorses torácicos para golpear a cana. Para juntar as 12 toneladas ele percorre a distância de 1,5 a 3 metros, 800 vezes, carregando feixes de 15 quilos por vez, portanto, realiza no mínimo 800 trajetos e 800 flexões. O cortador traja uma indumentária que o protege da cana, mas aumenta sua temperatura corporal. A perda de água pelo organismo pode chegar a oito litros por dia, em média. Todo esse esforço físico sob sol forte do interior de São Paulo, aliado aos efeitos da poeira, da fuligem expelida pela cana queimada. (Alves, 2003).
Além de todo esse dispêndio de energia, o trabalhador é obrigado a utilizar uma vestimenta composta de botina com biqueira de aço, perneiras de couro até o joelho, calças de brim, camisa de manga comprida, luvas de raspa de couro, lenço no rosto e no pescoço, e chapéu ou boné. Toda essa vestimenta causa uma perda de líquidos muito grande, pelo suor. Os trabalhadores perdem sais minerais e água do organismo, o que os leva à desidratação e a freqüente ocorrência de câimbras. As câimbras começam, em geral, pelas mãos e pelos pés, avançam pelas pernas e chegam ao tórax, o que provoca fortes dores e convulsões, que se assemelham a um ataque nervoso ou epilético. As exigências físicas associadas à intensidade do trabalho são denunciadas pela expressão de cansaço dos trabalhadores do corte de cana. O distanciamento da família e dos amigos agrava o quadro de desmotivação desses trabalhadores.
O homem do campo perde a sua identidade quando a sua cultura é massacrada pelo ritmo constante da produção capitalista de etanol. A sua religiosidade fica em segundo plano, os ritos, as festas e datas comemorativas não são mais praticados. O afastamento do homem do campo das suas tradições implica eliminar laços seculares da cultura popular. Os momentos sagrados em que os homens do campo se uniam pela religiosidade, em busca de algo comum, espiritual, num local de grande sociabilidade como são as comemorações das populações rurais, acabam não ocorrendo e se enfraquecendo em virtude da exigência de produtividade imposta pelas usinas.
O espaço de sociabilidade fora do trabalho é prejudicado pelo excesso de trabalho, pois gera cansaço extremo. O trabalhador não tem mais estímulos nem energia para realizar outra coisa a não ser recompor-se parcialmente e esperar pelo próximo dia de trabalho, e assim por diante até o término da safra. Com isso, os trabalhadores da cana sofrem perdas vivenciais e sociais, resultantes do excesso de exploração a que são submetidos no canavial (Iamamoto, 2006).
Nessa realidade tão dramática, angustiante e desumana, as drogas surgem, para alguns cortadores, como uma alternativa ao sofrimento diário ao qual estão expostos. As drogas aparecem nas situações mais degradantes ou extremas das condições humanas, como um meio de ajudar a suportar o cotidiano insuportável. Centenas de trabalhadores rurais se tornam dependentes químicos, como apontam documentos da Pastoral do Migrante.
Seja cachaça, maconha ou crack, os cortadores de cana, principalmente os mais jovens, estão propensos a se utilizarem dessas substâncias psicoativas, pois em situações limítrofes, tanto psicológica quanto fisicamente, as tensões tendem a se aliviar (Escohotado, 1997). O crack, assim como a maconha, diminui as dores no corpo dos cortadores, além de aumentar o rendimento individual. De acordo com Arlete Fonseca de Andrade (2003)2, o seu uso nos alojamentos é freqüente entre os que já estão dependentes. Segundo a pesquisadora, existem casos em que os usineiros se aproveitam dessa situação de dependência e forçam o trabalhador a cortar cana sem remuneração, sob a ameaça de denunciá-lo à polícia. O mais nefasto, entretanto, é saber que alguns usineiros pagam os lavradores dependentes químicos com drogas.
Não se conhecem estatísticas oficiais de consumo de substâncias ilícitas nos canaviais ou o índice específico de internação de cortadores. O preconceito presente na sociedade em relação ao uso de drogas dificulta pesquisas nesse sentido (Andrade, 2003). Não devemos criminalizar os dependentes químicos cortadores de cana, uma vez o problema não está na existência das drogas em si, mas no motivo que conduz os sujeitos a procurarem essas substâncias e se apropriarem de seu uso constante. No caso dos cortadores de cana, o motivo parece ser óbvio, levando em conta a realidade degradante na qual estão inseridos, onde a remuneração do corte é irrisória, os alojamentos ou residências são precários, o distanciamento dos laços afetivos provoca sofrimento, além dos riscos da atividade canavieira, que podem causar até a morte.
As senzalas do século XVIII e os alojamentos do século XXI não são tão diferentes no que diz respeito ao tratamento dispensado aos trabalhadores. A falta de higiene e de conforto torna esses locais inabitáveis. Os locais em que os migrantes temporários ficam alojados são verdadeiros depósitos de pessoas, onde elas dormem amontoadas em pouco espaço, de maneira improvisada, em beliches, colchonetes, redes de dormir, e onde é comum no verão a temperatura atingir médias de 30 a 40°C. Esses alojamentos são oferecidos pelas usinas; em outros casos, os próprios cortadores alugam casas próximas ao local de trabalho.
Os usineiros remuneram os trabalhadores canavieiros por produção, e o preço médio pago atualmente aos lavradores varia de R$ 0,20 a R$ 0,11 o metro. Pela tonelada, eles recebem de R$ 2,45 a R$ 2,66 em média, num total de R$ 28,62 a R$ 32,00 por dia (Unica, 2008). Estima-se que um trabalhador produza um faturamento superior a R$ 9.000,00 para o usineiro no mês; no entanto, o piso médio da categoria registrado em 2008 foi de apenas R$ 420,00 por oito horas diárias de trabalho.
A tonelada é mensurada por um instrumento antiquado conhecido como triângulo, que é um compasso usado para medir a extensão das linhas de cana cortadas e convertê-las em toneladas, ou seja, um conversor de metro em peso. O pesquisador Bassegio (2006) realizou a medição da quantidade de cana cortada por um trabalhador no canavial num dia utilizando o triângulo e, posteriormente, um computador. Com o triângulo, por meio de cálculos de conversão, chegou-se a 10 toneladas. Numa nova medição, por computador, verificou-se que as 10 toneladas medidas pelo triângulo na verdade pesavam 20 toneladas, ou seja, uma diferença de 100% nos resultados (Thomaz, 2007). Esse sistema arcaico constitui mais um dos métodos de enganar o trabalhador e explorá-lo ainda mais, na medida em que a produção diária é mensurada por um instrumento impreciso, que proporciona vantagens apenas aos patrões.
No período de 2002 a 2005, estima-se que 82.995 trabalhadores sofreram acidentes enquanto cortavam cana. Problemas na coluna, hérnias de disco, desidratação, exaustão e ferimentos são os mais freqüentes. Segundo dados da Fundação Jorge Duprat Figueiredo, de Segurança e Medicina do Trabalho, 84 trabalhadores do setor morreram em 2005, além de terem sido registrados 23 mil acidentes ocorridos no trabalho.
Os pesquisadores Carlos Caminada e Michael Smith acreditam que esses números sejam na realidade um terço maiores, devido à não-comunicação de pequenos acidentes de trabalho. As empresas não comunicam os acidentes por razões econômicas. Se comunicarem um acidente, as usinas terão de pagar integralmente o salário do trabalhador enquanto ele não produz, até que ele volte trabalhar normalmente. As usinas preferem, então, transferir o problema para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), para que a seguridade social pague o auxílio-doença, que é feito com base no piso salarial do trabalhador (R$ 420,00).
Segundo o Ministério da Previdência (MP), o governo federal gastou, em 2007, R$ 10,7 bilhões com benefícios aos acidentados e com aposentadorias a lavradores canavieiros. Em contrapartida, a União da Indústria de Cana-de-açúcar (Unica) mostra dados de acidentes no setor em queda: de 11 mil em 1999 para 8 mil em 2005, mesmo com o número de trabalhadores contratados em ascensão.
Os cortadores trabalham em condições precárias semelhantes às dos escravos, e vendem a sua força de trabalho a um valor baixo e sem direitos trabalhistas, sendo o Estado conivente com essa realidade ao negar a sua função de proteção aos cidadãos e permitir ao capital canavieiro cometer atrocidades contra a classe trabalhadora. Uma prova concreta das ações neoliberais do Estado contra a força de trabalho no canavial é a Medida Provisória no 410, criada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e editada no dia 28 de dezembro de 2007. Essa medida é resultado de um acordo entre o Ministério do Trabalho e a Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) que determinou o fim da obrigatoriedade do registro em carteira dos trabalhadores temporários no campo. A medida permite aos usineiros contratarem pessoas para o trabalho temporário, sem qualquer direito trabalhista, durante todo o período da safra. De acordo com a nova lei, os trabalhadores contratados para colheitas de curto prazo, como o corte da cana-de-açúcar, não terão mais a garantia de carteira assinada. O chamado contrato de trabalhador rural por pequeno prazo é um retrocesso diante das conquistas históricas dos trabalhadores, e um suporte legal para a existência da exploração de trabalho escravo pelo latifúndio, já que não há mais garantia de direitos trabalhistas, apenas um contrato temporário que poderá ser elaborado a qualquer tempo para burlar a fiscalização e interrompido a qualquer hora, quando o usineiro bem entender.
De acordo com o MP, ao menos 18 cortadores de cana morreram de 2003 até 2006, vítimas de desidratação, ataques cardíacos, acidente vascular cerebral, cãibras e outros fatores ligados à exaustão na prática do trabalho. O Relatório Nacional de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais e Culturais, de julho de 2007, aponta a morte de 135 lavradores, somente no interior do Estado de São Paulo. Algumas das principais causas de acidentes e mortes, de acordo com o estudo, estão relacionadas à ausência de equipamentos de proteção, desnutrição, insolação, alojamentos inadequados, exaustão, transporte irregular, carbonização e intoxicação com herbicidas e com o gás carbônico liberado durante a queima da cana.
Segundo Carlos Caminada e Michael Smith, no período da safra, de março a novembro, aproximadamente 500 mil cortadores de cana trabalham em condições desumanas na indústria do etanol. Estima-se que, de 2002 a 2005, 312 cortadores de cana morreram em suas atividades ou por causas relacionadas a elas, sendo que as vítimas da exaustão tinham entre 25 e 35 anos. A Delegacia Regional do Trabalho (DRT) de São Paulo denuncia que 416 trabalhadores rurais no setor sucroalcooleiro morreram em 2006. Segundo o relatório do MT, 450 morreram em acidentes de trabalho no ano de 2005.
O transporte dos trabalhadores é um fator que deve ser levado em conta quando nos referimos a acidentes de trabalho fatais. A maioria das mortes está associada a acidentes de trânsito. Na zona rural é bastante comum o transporte de cortadores de cana em caminhões de carga e ônibus precários. Em algumas usinas, os lavradores de cana são carregados em caminhões abertos, expostos ao perigo, junto a animais, ferramentas e diversos objetos. Acidentes em rodovias envolvendo caminhões e ônibus que transportam os cortadores são freqüentes, devido às péssimas condições dos veículos e das estradas. As usinas afirmam que existe transporte adequado para os trabalhadores, porém, na maioria dos casos, esse serviço é descontado do pagamento dos cortadores. A condução de veículos em mau estado de conservação compromete a segurança dos trabalhadores canavieiros, o que revela claramente o desrespeito pela vida dos lavradores por parte dos usineiros.
A cultura de cana-de-açúcar costuma utilizar pesticidas altamente nocivos, conhecidos como maturadores. Esses herbicidas são utilizados para se antecipar a colheita. Os pesticidas ou inseticidas são compostos tóxicos, utilizados para eliminar as pragas, que, entretanto, são substâncias que contaminam o meio ambiente e que podem causar problemas à saúde quando presentes nos alimentos, na água e no ar, ou seja, nos elementos de sobrevivência do organismo. Ainda não se tem prova científica dos efeitos negativos que os herbicidas podem causar no organismo humano. A preocupação maior é com o trabalhador da cana, que tem um contato direto e permanente com o vegetal contaminado com o produto aplicado antes e depois da queimada. Os herbicidas que são aplicados, muitas vezes com a utilização de avião, prejudicam comunidades inteiras que ainda resistem ao avanço do agronegócio.
Os sindicatos dos trabalhadores rurais e a Unica não reconhecem irregularidades nas condições de trabalho dos cortadores e as consultorias e organizações de industriais sucroalcooleiros rebatem os números de mortes e acidentes ao afirmarem que não há provas concretas que relacionem esses números com causas reais.
A precarização do trabalho nas lavouras de cana sempre existiu e permanecerá enquanto não houver políticas públicas eficazes para proteger os trabalhadores e seus direitos, e medidas rígidas e eficazes de fiscalização e controle do emprego da força de trabalho no campo.


Fiscais flagram 52 canavieiros em condição degradante de trabalho

Uma fiscalização do Ministério do Trabalho flagrou hoje (12) 52 imigrantes nordestinos trazidos para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar do interior de São Paulo em situação de trabalho degradante, em Porto Feliz, na região de Sorocaba. Por José Maria Tomazela, da Agência Estado, 12/06/08 às 17:36

Os trabalhadores, procedentes dos Estados da Bahia, de Pernambuco e do Ceará, foram abrigados em duas casas em construção. Eles estavam amontoados em cômodos pequenos e, por falta de camas, alguns dormiam no chão. Não havia chuveiros e instalações sanitárias em quantidade suficiente. Uma das casas não tinha geladeira para guardar alimentos e na outra, o refrigerador estava avariado. A falta de higiene era total. Foram constatadas também irregularidades trabalhistas: as empresas descontavam dos trabalhadores as despesas de viagem e o custo dos equipamentos utilizados no corte da cana, inclusive os de proteção individual.


Dramas da exploração: canavieiros usam crack para aliviar angústia e produzir mais

Cada vez mais jovem, o trabalhador rural se vicia abertamente no campo como tentativa de suportar as crescentes exigências de produção e as condições subumanas de trabalho Apesar de mal ter entrado na casa dos 30 anos, Lindiana Soares aparenta ter ao menos 50. São os efeitos, segundo ela, das andanças e armadilhas da vida, fincada basicamente no trabalho do campo. “A praga da cidade grande pegou na roça”, diz contundente à reportagem da Rede Brasil Atual, que acompanhou relatos de canavieiros na cidade de Guariba (SP), a 338 quilômetros da capital. Migrante de Codó (MA), ela vai muitas vezes para a colheita com o marido. Ele a introduziu no consumo da pedra de crack pela primeira vez, há seis anos, durante uma safra difícil, com pouca produção.

O consumo de drogas mais baratas, como o crack e a maconha, se alastra abertamente entre os canavieiros e nas pequenas cidades do interior. “Não tem idade e nem sexo para quem está no meio daquilo”, diz a trabalhadora rural, que começa o corte no raiar do sol e termina perto das 16 horas. “Quem não sabe o que quer, acaba se levando pelo que não presta”, afirma. Lindiana diz só ter experimentado “algumas vezes” a droga. No entanto, alguns de seus colegas já sucumbiram aos efeitos do uso até mesmo dentro dos alojamentos das usinas, onde são apontadas condições precárias. “É para esquecer da vida”, justifica.

Nos grupos de cortadores, migrantes cada vez mais jovens de cidades do interior da Paraíba, Piauí, Minas Gerais e Pernambuco. Em alguns desses locais, o vício em substâncias tóxicas costumava ser um problema distante. De volta ao centro do debate em setembro passado, após a divulgação de um estudo na Frente Parlamentar de Enfrentamento ao Crack da Assembleia Legislativa de São Paulo – em que foi observada a incidência da droga em 531 cidades paulistas, além da falta de tratamento adequado aos dependentes –, o avanço do vício é classificado por especialistas como uma “válvula de escape” diante das condições extenuantes de trabalho. Seria a busca pela sensação do estímulo físico proporcionado inicialmente pelo crack.

No canavieiro, onde ganha pela quantidade colhida, são exigidas 12 a 15 toneladas ao dia. O uso da força física, com o aumento da produtividade, é imprescindível nesse sistema de corte, onde não se avançou em termos de instrumentos de trabalho. Os números da lida da cana assustam. Um trabalhador pode derrubar, em média, 400 quilos em dez minutos, além de desferir 131 golpes de facão e 138 flexões de coluna, em um ciclo médio de seis segundos para cada ação. Geralmente, o trabalho é feito sob calor de aproximados 27º C, debaixo de fuligem. Os batimentos cardíacos chegam, em alguns momentos, a 200 por minuto.

O levantamento é da Pastoral do Migrante de Guariba, onde a principal atividade econômica é o cultivo da cana-de-açúcar. “É uma falsa sensação de que, com a droga, eles vão se tornar super-homens”, dispara o padre Antonio Garcia Peres, coordenador da Pastoral. Junto aos integrantes do grupo da diocese, o padre faz visitas regulares aos alojamentos para orientar a respeito do que ele chama de “Ilusão do crack”. Das experiências com os trabalhadores, padre Garcia tira a conclusão de que o prejuízo com o vício não é medido pelos boias frias. “O trabalhador fica com a força toda para trabalhar, não precisa parar nem para comer e, com isso, tem uma boa rentabilidade.” Entretanto, ressalta o padre, “se amanhã falta a droga, o dinheiro que ele ganhou no dia anterior é perdido”.

Os malefícios das drogas não seriam percebidos devido à sensação de bem-estar proporcionada.

Tráfico

Muitas vezes a droga chega ao canavial pelos próprios cortadores de cana, de acordo com o padre. Com o valor da diária calculado com base em um salário mínimo por mês – atualmente fixado em R$ 545, com possibilidade de atingir o dobro (dependendo da produção) –, o tráfico do crack tornou-se uma opção para melhorar a renda. Há casos de migrantes condenados pela venda da droga na cidade. “Às vezes, eles não se intimidam nem nos alojamentos das usinas, mesmo sabendo que estão dentro da propriedade da empresa e que, se forem pegos, podem ser mandados embora”, afirma o padre Garcia. As “mulinhas” (pessoas usadas por traficantes para o transporte da droga ao seu destino) podem ser vistas à luz do dia nas redondezas das usinas, e até mesmo no local de partida dos trabalhadores aos canaviais.

“Você vai no barraco deles e vê tranquilamente um grupo fumando lá dentro. É uma coisa muito aberta.” A União da Agroindústria Canavieira (Unica) rebate as afirmações feitas habitualmente pela imprensa e critica o estudo apresentado pelos parlamentares da Assembleia Legislativa. “Não vejo que sentido faz isolar um setor para falar do crack nele. É a mesma coisa que você falar do consumo de crack entre padeiros, ou ir a uma troca de turno em uma montadora de automóveis, onde passam milhares de pessoas, e ver se existem usuários de crack. Você provavelmente vai encontrar”, justificou Adhemir Altieri, diretor de comunicação da Unica. A hipótese de o estímulo do uso da droga ser a obtenção de maior rentabilidade está fora da questão, segundo ele. “Isso é um absurdo completo. Não é possível fazer uma avaliação dessas, isso é típico de quem não sabe o que está falando”, ressalta, na defesa de que os casos de consumo de droga no corte na cana são estritamente pontuais.

Mais drogas, mais crimes

“Vou contar uma coisa para você”, avisa Valdemir Alonso dos Santos, guaribense de 44 anos, canavieiro desde os 15. “Hoje em dia não se mata mais tanto por mulher como pelas drogas. Não é bom nem ficar falando muito não”, frisa o trabalhador. Ele não foi o único a demonstrar receio em revelar o comportamento de seus colegas dentro da roça. O tráfico, que se espalha por todas as frentes no campo, intimida quem resiste ao vício. Nos três primeiros meses de 2011, Guariba, cidade com 36 mil habitantes segundo dados do Censo do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), registrou cinco homicídios dolosos – quando há intenção de matar –, marcando a cidade como a segunda mais violenta da cobertura do Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo Interior (Deinter 3), que abrange 93 municípios paulistas.

No ano passado, foram 12 assassinatos na cidade. As categorias são demarcadas pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, fonte dos dados. O município de Ribeirão Preto, com 604 mil habitantes, é o primeiro do ranking. A disputa por pontos de tráfico e o acerto de conta de dívidas feitas em função das drogas são apontados como principais fatores do crescimento da violência nas cidades pequenas.

Falta de oportunidades

A socióloga Arlete Fonseca de Andrade, do Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar), relaciona o vício entre trabalhadores do campo ao histórico sofrido deste grupo. Muitos dos migrantes que entram na lida da cana são pequenos produtores rurais, que não tiveram oportunidades de continuar o trabalho ou foram expulsos de suas terras. Para ela, o indivíduo, que não possui rumo e não tem ligação com heranças familiares, perde sua identidade. “Os trabalhadores são marginalizados e ridicularizados. Vivem escutando que são burros, caipiras”, pontua, uma vez que ainda existem casos de analfabetismo entre eles.

“Precisam trabalhar naquilo porque não vão poder atuar em outra coisa”, frisa a socióloga. Arlete fez dissertação sobre o tema por meio de pesquisa em 2003 com trabalhadores rurais na faixa etária de 18 a 36 anos, em Mineiros do Tietê (SP), a 300 quilômetros da capital. No estudo, ela descarta que a incidência do crack tenha ligação direta com o aumento da produtividade. A contratação safrista de jovens, que têm o perfil mais aventureiro, também atua como fator determinante para que o fenômeno ocorra.

De baixa autoestima frente à situação de trabalho degradante, a juventude que enxerga no corte de cana uma chance de emancipação, sente, no entanto, a necessidade de pertencer a um grupo, segundo Arlete. “Em um segmento de usuários de droga pode ter gente bonita, rica, feia, pobre. Pode ser marginal, não marginal. Não interessa a identidade individual dos que compõem o grupo. O objetivo deles é a droga”, exemplifica.

Tratamento precário

Além das doenças que o trabalhador do eito dos canaviais geralmente adquire, como infecções devido a acidentes com o facão, insuficiência pulmonar pela inalação da fuligem da cana queimada, convulsões e outras, os sintomas do vício das drogas também são recorrentes em ambulatórios do interior. O professor Igor Vassilief, médico aposentado do Centro de Toxicologia da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), em Botucatu, no interior do estado, revela que já tratou de casos terminais do uso contínuo do crack. “Essas pessoas ganhavam e vendiam tudo em droga e em bebedeira”, diz.

A fórmula mais recorrente, segundo o médico, é a junção da pedra do crack ou o cigarro de maconha com o álcool, resultando em overdoses e episódios de insuficiência cardíaca. Após pouco tempo de uso, o crack baqueia o usuário. As famílias dos dependentes químicos que adquiriram o vício nas lavouras são as que procuram ajuda médica para seus entes, na medida do possível, em ambulatórios regionais ou universitários.

De acordo com o estudo divulgado na Alesp, 79% dos municípios paulistas não têm leitos para dependentes químicos no Sistema Único de Saúde (SUS), com maior impacto nas cidades que têm população inferior a 5 mil habitantes. A deficiência de postos de tratamento força, segundo Vassilief, a ida de pacientes de uma cidade a outra. “Só no ambulatório da Unesp vinham pessoas das cidades vizinhas, como São Manoel, Lençóis Paulista. Da área toda”, relata.

As clínicas de reabilitação de tóxicos ainda são escassas e inviáveis na região do interior. A mais próxima de Guariba fica em Pradópolis, também na região de Ribeirão Preto. Os custos, porém, são inacessíveis aos interessados em começar um tratamento para se livrar do vício. A Unica, entidade representante dos usineiros, não dispõe de programa que acompanhe o avanço da dependência química de seus funcionários.

Brasil de Fato

Os trabalhadores disseram que foram enganados, pois a promessa era de que, além de acomodações confortáveis, teriam acesso a quadras de esportes e campo de futebol. De acordo com o procurador do Ministério, Éder Sivers, era nítida a situação de exploração dos trabalhadores. “Pôr alguém para trabalhar nessas condições em pleno século 21 é inadmissível”, disse o procurador.

O advogado da empreiteira que contratou os cortadores de cana, João Paulo de Melo Oliveira, disse que os donos da empresa desconheciam a situação de moradia dos trabalhadores. Ele assegurou que a situação será corrigida. A empreiteira e a usina para a qual ela presta serviços foram autuadas.

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