segunda-feira, 4 de julho de 2011

A pobreza vista de perto: Experiência de ONGs é ignorada em ações de combate à fome

Marilza Lima, da Lixo e Cidadania: pobreza é maior do que parece

As ONGs – sempre elas – são alvo de dedos apontados. Há quem as acuse, sem dó, de terem desobrigado os gestores públicos da parte que lhes cabe na dívida social brasileira. Mas difícil alguém negar que o país seria mais violento e mais pobre sem a atuação do terceiro setor. De acordo com o IBGE são mais de 16 mil entidades no país (veja gráfico). Detalhe – o número é de fantasia: existem mais organizações não governamentais do que os dígitos podem computar.

Já são horas de tornar esse cenário mais exato. Desde o início de maio, quando a presidente Dilma Rousseff tirou da gaveta sua promessa de erradicação da pobreza extrema, os olhares se voltaram para as ONGs. Não haverá programa, nem de sopão, que dê certo sem o conhecimento acumulado por esses grupos, em boa parte devotados à população visada pelo Ministério de Desenvolvimento Social – os 16 milhões de brasileiros que recebem até R$ 70, uma migalha em se tratando do país do futuro.

Tudo indica que os muitos e muitos ongueiros deste país – apenas no Paraná seriam pelo menos 10 mil ativistas – ainda não sabem ao certo o que seja o “Brasil sem Miséria”. Mas sabem muito bem o que aconselhariam à companheira Dilma Rousseff caso fossem consultados. Pode-se dizer, de antemão, que um temor já está instalado: o de que o projeto seja uma extensão do Bolsa Família, mais à cata de resultados de curto prazo do que de mudanças de fato.

“A pobreza é um universo sensível. Não se muda um cenário desses de uma hora para outra”, afirma a assistente social Anete Giordani, 47 anos, religiosa, da ONG Divina Misericórdia, em atuação no Bolsão Sabará, Zona Sul de Curitiba. Ali, a freira e seu grupo mantêm padaria comunitária, duas creches e um time de futebol para 200 meninos. “O combate à miséria só funciona se for uma ação politizada, que leve ao empoderamento e à emancipação”, reforça o consultor de gestão social Carlos Eliandro de Oliveira, 38, com longa folha corrida de serviços prestados ao setor.

Povo da rua

Os senões e poréns de Anete, Carlos e outros são uma espécie de testemunho da parcela de brasileiros que não conhecem a miséria apenas pelos jornais. É o caso do irmão redentorista Jorge Tarachuque, 47, um dos muitos à espera de sinais de fumaça sobre o “Brasil sem Miséria”. Por uma década, Jorge esteve ligado ao Conselho Indigenista Missionário, o Cimi, o que lhe deu know-how sobre as mazelas nacionais. Transferido para a capital do estado, acabou se deparando com o que chama “povo da rua”, talvez a tradução mais próxima dos índios e malocas que encontrou na missão anterior.

Merece um estudo de caso. Quando Jorge fala da Associação dos Moradores de Rua e da Pastoral dos Povos da Rua, organizações às quais está ligado, o ímpeto é levá-lo para Brasília, palestrar para os burocratas. Os miseráveis com os quais trabalha são o público alvo do governo – vivem no sereno e achariam R$ 70 uma pequena fortuna. Mas se mostram capazes de fazer rodinha para discutir programas de habitação e, dia desses, debateram se sofrerão violência para desocupar as ruas nos dias de Copa do Mundo.

Em miúdos, mesmo o mais miserável entre os pobres é capaz de tomar a palavra e assumir o tal do protagonismo, tecla que as ONGs batem até doer os ouvidos. A ojeriza ao power point – amado pela turma de terno – é geral. Resta saber se o governo Dilma vai incluir a conversa e suas consequências no expediente. Devia. “Uma política pública que desrespeite a opinião de seus destinatários está fadada a cair no ar”, diz Tarachuque, que circula, de segunda a segunda nos labirintos da mendicância.

Exemplo disso é que apenas o Centro Redentorista de Ação Social – instalado num casarão do Alto da XV – distribuiu 60 mil toneladas de alimentos e roupas em 2010. Parte desse número se deve às novenas de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, às quartas-feiras, no Alto da Glória, quando quilos e quilos de bens são arrecadados. Jorge, que anima algumas novenas, sabe a relação entre alhos e bugalhos. Os especialistas chamam a isso de “rede de proteção”, um conceito que deveria ser ensinado nas escolas junto à Fórmula de Bháskara. Desprezar como as redes se formam é dar tiros na água. “A caridade é dialogante”, resume Tarachuque. E tem regras, diria o padre Carison Kapelinski, 32, à frente do Instituto Salesiano de Ação Social, ONG antes mesmo de a palavra existir. O projeto foi criado em 1958, quando a Vila Guaíra viu nascer a vizinha favela do Parolin. Trata-se de um trabalho modelar. Por conta e risco, os salesianos oferecem formação profissional para quase mil adolescentes e jovens, no melhor do estilo “ajudar ensinando”.

A quantidade de eletricistas, carpinteiros e artesãos que formou é incalculável, evitando que uma legião de guris e gurias se lançasse ao pior dos mundos. Mesmo assim, são raros os representantes do empresariado que se dispõem a formar parcerias com os salesianos, congregação cuja proficiência em assuntos de juventude é mundialmente respeitada. “Talvez nos falte visibilidade”, emenda Carison.

Talvez também faltem gestores dispostos a investigar a quantas anda o Brasil que faz. Desde o início desta série de reportagens, há três semanas, teve-se ideia de quão extenso, complexo e profundo é o mundo da caridade – mundo que impede que muitas cidades do país se tornem sucursais de Lagos, na Nigéria, onde o nível de informalidade atingiu índices insuportáveis.

Lixo e cidadania

Ouvi-los é sempre uma surpresa. Vide um exemplo. Há uma década surgiu em Curitiba a ONG Lixo e Cidadania, que funciona escondidinho, atrás da Federação das Indústrias, a Fiep. Seu objetivo: levar os carrinheiros a superarem as peias da informalidade e do isolamento, formando cooperativas. Hoje, a Lixo tem centro próprio e presta atendimento a 53 grupos de coletores de recicláveis.

A líder da ONG é a ex-carrinheira Marilza Lima, 40 anos. Como os demais, ela reconhece que saber pouco do programa de Dilma. Mas sabe bem como vive quem ganha “setentão” por mês. Mesmo assim, acha uma pena se o “Brasil sem Miséria” se resumir a repasse de dinheiro. “Ação social é um pacote. Vem tudo junto”, comenta, lembrando que miséria é também escola ruim, alimentação de baixa qualidade e barraco rolando morro.

Para Marilza, o “pacote” só vem com trabalho contínuo dos governos e sociedade civil. Carlos Eliandro chama isso de “ações integradas”, formando “células” de desenvolvimento social. “Quando chove, não dá para proteger só o que está embaixo. Ação social modelo guarda-chuva não dá certo e faz muita sombra”, compara.

“O combate à pobreza se dá por etapas. Depois de um programa, faz-se uma pausa para avaliar. Depois se vai mais um pouco adiante. Estamos falando de uma cultura e cultura não se muda assim, inclusive a da pobreza”, sugere irmã Anete. Como diz padre Carison, demora até os muitos pobres entenderem que podem ter outra vida. Erradicar leva tempo. Exige criar vínculos. E é urgente. Palavra de quem sabe. (GP)

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