sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Líbia: Perante o retorno no neocolonialismo francês na África não dá para esquecer a violência deste no passado


A partir de 1950 Henri Alleg [França, 1921] foi director do mítico jornal Alger Républicain, uma das principais vozes da imprensa que na Argélia apoiavam a luta do povo pela sua independência da França. Este jornal chegou a ser o de maior circulação em todo o norte de África (até 1965 vendia de 80 a 100 mil exemplares, enquanto o jornal da Frente de Libertação Nacional (FLN) Ech Chaab [O Povo] alcançava só os 15 mil.

Em Setembro de 1955 o Alger Rébublicain foi encerrado pelas autoridades coloniais. Em novembro de 1956, Henri Alleg, militante do Partido Comunista Argelino passa à clandestinidade. Fora emitido um mandato de captura contra ele. Em 12 de Junho de 1957 foi capturado pelos pára-quedistas franceses do general Massu, o temível corpo militar dos colonialistas. É selvaticamente torturado em El Biar, campo de tortura nos arredores de Argel. Henri resiste aos métodos mais selvagens, incluindo a “tortura científica” do pentotal. É em seguida transferido para o campo de concentração de Lodi. A partir desse campo, Henri Alleg faz chegar a França as suas denúncias sobre as torturas a que fora submetido. Escreve em finais de 1957 e, quase folha a folha vai-as fazendo sair clandestinamente da prisão até que o livro é publicado em Paris em Março de 1958.

O seu requisitório — apoiado por Jean-Paul Sartre e Gabriel Marcel entre outros importantes intelectuais, que assinam um manifesto de repercussão mundial — agita a sociedade francesa. Torna-se conhecido com o título La Question [1] . Jean-Paul Sartre escreve o prólogo onde traça um paralelo entre a tortura francesa na Argélia e as torturas nazis da Gestapo.

A "questão" era o nome que davam à tortura os pára-quedistas franceses magistralmente retratados no filme A batalha de Argel do realizador Pontecorvo. Entre os métodos utilizados por eles encontrava-se o de atirar prisioneiros vivos (com os pés metidos em cimento) dos helicópteros e fazer desaparecer pessoas. Os mesmos que foram utilizados anos mais tarde no Vietname e na maior parte da América Latina.

O Livro La Question publicado na Argentina com o título La Tortura. [Buenos Aires, editorial El Yunque, Agosto de 1974] foi traduzido em numerosos idiomas. Deu inclusive origem a filmes documentais e de ficção. Entre outros filmes o realizador Jean-Pierre Lledo fez Le Rêve Algérien [ O sonho argelino , 2003, França, Bélgica, Argélia], com o regresso de Henri Alleg à Argélia, o encontro com os seus antigos companheiros de militância, de jornalismo e de prisão, e a visita ao lugar onde foi torturado.

Breve mas contundente, La Question constitui sem dúvida um dos livros mais importantes da literatura política mundial. Pode comparar-se com Testamento sob a forca de Julius Fucik, esse outro grande revolucionário torturado que combateu contra o nazismo. Em ambos os casos, como em muitos testemunhos de sobreviventes à tortura militar na Argentina, no Chile, no Brasil, no Peru, na Guatemala, no Vietname, na Palestina ou no Iraque, o relato vem despido de enfeites melodramáticos. Escrevem-se simplesmente as palavras e narra-se o inominável: a bestialidade inaudita a que pode chegar o ser humano quando faz parte da engrenagem repressora do capitalismo, do colonialismo e do imperialismo. Não só no lado nazi, como mostram as fitas de Hollywood… mas também durante o que demasiado tempo se conheceu como "Mundo Livre" ou "Ocidente Cristão". Entre os torturadores nazis da Gestapo, os torturadores franceses da Argélia, os torturadores norte-americanos no Vietname e no Iraque e os torturadores argentinos da ESMA [Escola Superior de Mecânica da Armada] não há diferença alguma. Uma mesma degradação humana — produto do capitalismo e do seu domínio social —, comparticipada por "mestres" europeus e "alunos" americanos, envolve-os a todos na mesma porcaria e imundície.

Durante os últimos tempos, em notável coincidência com as torturas estadunidenses nas prisões do Iraque, a França sofre um novo abalo. O general Aussaresses, o coronel Bernard e outros genocidas franceses da guerra colonial, vieram à luz pública reivindicar os seus métodos de tortura na Argélia. A justiça burguesa abre-lhes processos judiciais. Não pelo que fizeram mas pela apologia verbal da violência! O crime deles não é, aos olhos da burguesia francesa, ter torturado e assassinado centenas de milhares de argelinos… mas dizê-lo em público. Henri Alleg veio contestá-los. A sua voz expressa o ponto de vista das vítimas, e todos os torturados e torturadas que apesar da barbárie que padeceram mantiveram alto os melhores valores da espécie humana. Especialmente a dignidade, essa que jamais tiveram os seus torturadores.

Quando La Question dá notícia das tremendas torturas a que foi submetido Henri Alleg e o modo como ele conseguiu resistir e sobreviver, os leitores imaginam que o autor deve ser um homem altíssimo e com corpo de atleta. No entanto, quando o conhecemos acontece algo semelhante ao que aconteceu com Gramsci. Os seus companheiros de prisão contam que quando chegou ao cárcere fascista, ninguém o acreditava. Perguntaram-lhe o nome. Ele respondeu: "Sou António Gramsci". Eles responderam-lhe: "O senhor não pode ser Gramsci. É demasiado pequeno. Gramsci tem que ser um gigante". Quase idênticas palavras podem repetir-se para o caso de Henri Alleg.

Ao conversar com ele vem ao primeiro plano a nobreza, a coerência e o humanismo daquilo a que Che Guevara sintetizou com palavras inequívocas como: "os sonhos honestos dos comunistas do mundo". Do comunismo entendido, não apenas como um projecto político de revolução mundial, mas também como uma nova ética e uma nova maneira de viver segundo os princípios. Exactamente o contrário da dupla moral, do duplo discurso e o cinismo daqueles senhores hierárquicos, elitistas e afastados do povo, que durante tempo mancharam a bandeira vermelha da revolução com o triste cinzento da burocracia, da geopolítica, e da mediocridade enquanto hoje se adaptam ao capitalismo sem pena nem glória.

Henri Alleg é hoje uma das grandes figuras, já lendárias, da luta revolucionária mundial. A sua obra jornalística e ensaística é prolífica. Além de La Question, escreveu: Prisioneiros de Guerra (1961); Cuba Vitoriosa(1963), Étoile Rouge et Croissant Vert: l'Orient Soviétique (1983) ; SOS America [2] (1985); A URSS e os judeus (1991); Requiem pelo Tio Sam (1991); O século do dragão [3] (1994); O grande salto para trás (1997)[4] ; e Retour à La Question (2001). Além disso foi co-autor de A Grande Aventura do Alger Républicain (1987) e dirigiu a redacção da obra em três volumes sobre a Guerra da Argélia (1981).

Com 83 anos e mais de meio século de militância aos ombros, Henri Alleg continua espalhando optimismo e esperança. Apesar do que sofreu e dos sete anos da sua vida que passou na prisão (entre a Argélia e a França), ri-se com vontade, conta anedotas e até faz humor quando conta as coisas mais horrendas que fizeram os militares colonialistas na Argélia. Se bem que se trate de uma personalidade histórica, este experimentado escritor e jornalista político não perde nunca a simplicidade. Continua a ser, depois de tantos anos e de tantas peripécias, um humilde militante da nossa causa, a revolução socialista mundial.

(Também participou desta entrevista o companheiro Luciano Álzaga, a quem agradecemos)

P: As fotografias das torturas realizadas pelos norte-americanos em Abu Ghraib aos prisioneiros do Iraque percorreram o mundo. Não é a primeira vez. Outro escândalo semelhante acontece na base estadunidense de Guantánamo. Os torturadores franceses da Argélia foram mestres dos torturadores norte-americanos?

Henri Alleg: Os colonialistas franceses foram verdadeiramente professores de tortura tanto na América Latina como na África do Sul. Aí foram recrutados com o acordo das autoridades francesas para servirem de "mestres" na repressão, principalmente nos interrogatórios sob tortura. Efectivamente o que acontece no Iraque é uma versão do que havia sucedido na Argélia e noutros países, não apenas aqueles onde se desenrolou uma guerra mas também em todos os que estavam sob o domínio colonial. Evidentemente, durante as guerras coloniais tanto no Vietname como na Argélia, os torturadores franceses foram os professores de interrogatórios e tortura dos oficiais americanos. Este ensino realizaram-no eles nos próprios Estados Unidos, particularmente em Fort Bragg bem como na América Latina. Recentemente o jornal francês Le Mondefalou da participação de oficiais franceses no Plano Condor implementado pelas ditaduras militares do cone sul latino americano. Estes antigos oficiais franceses haviam actuado na guerra da Argélia. Participaram no Plano Condor com a bênção e a natural autorização do governo francês.

P: Tanto as torturas realizadas pelos oficiais franceses como as que praticam os estadunidenses repete-se o caso da violação e das humilhações sexuais…

Henri Alleg: Exacto. Um caso particular e peculiar da tortura tem a ver com as humilhações de carácter sexual. Durante a guerra da Argélia nunca ninguém falou disso. A tal ponto que nem eu nem os meus companheiros havíamos falámos. Os oficiais franceses, os militares colonialistas, tão pouco. Do lado argelino também houve um silêncio total devido à cultura de tradição islâmica. Por isso os argelinos mantiveram-se silenciosos quanto ao assunto. Na tradição argelina, e árabe de um modo mais geral, pensa-se que uma mulher violada está humilhada e suja. Não apenas ela, como pessoa individual, mas considera-se que toda a família foi humilhada. Uma destas mulheres argelinas, uma amiga minha, foi violada. Tem agora 72 anos. Contou-me que quando caiu na prisão — tinha então 17 anos — e contou da violação à mãe, que também estava na prisão, esta recomendou-lhe que não contasse a mais ninguém que fora violada. Nem ao pai, nem aos irmãos, nem a ninguém. Ninguém da família ou de fora da família. Que poderia acontecer? Pois, que a rapariga fosse expulsa da família e assim poderia perder absolutamente tudo. Este foi o caso de todas ou quase todas as prisioneiras argelinas em poder dos colonialistas franceses.

Muito recentemente houve mulheres de mais de 70 anos, com uma magnífica coragem, que revelaram terem sido violadas. Um oficial colonialista do exército francês revelou em Le Monde que todas as mulheres capturadas e feitas prisioneiras pelos militares franceses, numa proporção de 90% (noventa por cento) foram sistematicamente violadas.

P: Na retórica imperialista de George W. Bush, e nos grandes monopólios da comunicação que o defendem, costuma repetir-se até ao cansaço a palavra "terrorista" para designar qualquer dissidente radical. Nem sequer na campanha presidência dos EUA para a reeleição deixou de pronunciar-se este termo. Na sua opinião, quem são hoje os terroristas?

Henri Alleg: Sobre este tema penso que há que fazer uma diferenciação clara no interior do conjunto de pessoas que utilizam a acção violenta. Os que se levantam para lutar pela libertação de um país com os meios pobres e as poucas armas que possuem não são os mesmos que têm todo o poder militar do mundo. Já no tempo dos alemães, durante a Segunda Guerra Mundial, os nazis caracterizaram invariavelmente os seus opositores como "terroristas". Mas todos aqueles que combatem os nazis não são terroristas, são combatentes pela liberdade.

Um caso interessante acerca deste problema é o seguinte. Na Argélia existia um dirigente nacionalista que foi um herói da guerra anti-colonialista. Foi assassinado pelos militares na sua cela de prisão. Como tantas outras vezes o seu assassinato foi feito passar por "suicídio". Trata-se de Bem M'hidi. O oficial francês que dirigiu a sua execução havia dito a este herói da resistência: "Você é um terrorista. Você põe bombas, utilizando cestos transportados pelas mulheres argelinas". Ele respondeu ao oficial francês: "Se vocês me derem os vossos aviões bombardeiros e o napalm, eu dou-lhes os meus cestos…"

Então o que eles — os poderosos — denominam "terrorismo" é frequentemente o último meio que um povo tem para resistir. Os autênticos terroristas são eles, os militares colonialistas!

No entanto, certas acções que algumas vezes não são controladas, podem não ser positivas, como por exemplo fazer explodir bombas em qualquer lugar. Quando morrem civis nestas acções não pensadas, a acção é claramente negativa. Os dirigentes políticos de uma acção de resistência não podem promover nem admitir esta acções. Esta foi precisamente a posição dos comunistas argelinos, os quais recusavam tais acções.

P: O general Acdel Vilas, um dos genocídas argentinos responsável pela "Operação Independência" que tinha o objectivo de aniquilar a frente rural do Partido Revolucionário dos Trabalhadores - Exército Revolucionário do Povo (PRT-ERP), escreveu um diário de campanha que na altura não foi publicado. Vilas diz nesse texto que os seus mestres em contra-insurgência foram militares franceses. Cita expressamente o livro Subversão e Revolução do coronel Roger Trinquier. [Acdel Edgardo Vilas: Manual de Campanha. Tucumán de Janeiro a Dezembro de 1975. S/editorial, s/data] A mesma informação que Vilas fornece é reiterada por outro genocida argentino, o general Osíris Vilegas [ Temas para ler e meditar. Ds,As., Theoría, 1993] Mais recentemente volta a aparecer esta confirmação, agora pela boca do general Alcides López Aufranc, num documentário da jornalista francesa Marie-Monique Robin, intitulado "Esquadrões da morte. A escola francesa" [ Les escadrons de la mort: L´école française, 2003], lançado há pouco tempo na Argentina. Dado que o senhor é de opinião que exportar essa doutrina, os seus métodos de tortura e os seus especialistas em interrogatórios, foi uma decisão de Estado, quem foram concretamente os responsáveis em França?

Henri Alleg: Gostaria de fazer um esclarecimento prévio. Eu creio que a tortura não começa com a guerra. Antes da guerra, sempre no nosso jornal Alger Républicain muita gente foi presa pela polícia, tanto socialistas como comunistas e todos foram torturados. No Vietname aconteceu o mesmo. Quando na Argélia falámos disso, da tortura, o nosso jornal foi revistado e encerrado. O companheiro que no nosso jornal escreveu sobre a tortura, foi preso e condenado à prisão. O seu nome é Khalfa Woualem. Por denunciar e escrever sobre a tortura foi condenado a dois anos de prisão.

Assim, a tortura era uma arma do colonialismo mesmo antes de a insurreição começar. Até antes da guerra a tortura tinha uma dimensão artesanal. Durante a guerra colonial ou contra revolucionária a tortura adquire uma dimensão industrial.

Esta situação de falta de respeito pelos direitos humanos, antes e durante a guerra, promovida a escala industrial durante a guerra, tornou-se lugar comum em todos os governos de França. Tanto do governo socialista de Guy Mollet, como dos governos de direita que sucederam aos socialistas, assim como também sob o governo do general De Gaulle. Inclusivamente um governo que se denominou de "esquerda" encobriu e manteve o silêncio, deu a sua aprovação a todas essas acções de tortura e à sua exportação para a América Latina. Não se pode estabelecer uma diferença muito nítida entre os que dirigiram a guerra da Argélia, sejam de "esquerda" sejam de direita. Não há a mínima dúvida de que todos foram responsáveis!

P: Na narrativa de La Question descreve o método repressivo do desaparecimento dos prisioneiros argelinos às mãos dos militares franceses. Mais tarde esse método exportou-se e aplicou-se maciçamente na Argentina. Também no Chile, na Guatemala e no Peru e noutros países da América Latina. Quando é que se aplica primeiro a técnica repressiva do desaparecimento? Foi na Argélia? Talvez na Indochina?

Henri Alleg: Não creio que na Indochina o desaparecimento tenha sido muito referido nem que tenha havido muitos casos de desaparições. Mas na Argélia sim, foram já dezenas de milhares as pessoas que desapareceram. Por exemplo, uma coisa muito interessante é a seguinte. Em Argel, a capital da Argélia, encontrava-se o secretário geral da Polícia, Paul Teitgen de seu nome. Este funcionário, antes de ir para a Argélia, fora um militante da resistência na época da guerra contra a Alemanha. Fora preso e torturado pelos nazis. Fora deportado para o campo de Buchenwald. Anos mais tarde foi enviado para a Argélia. Ao chegar, não conhece nada do país. Conheço-o pessoalmente. Era um desses homens a que designamos por "apolítico". A sua tarefa não era fazer política. Era um patriota francês, um antifascista. Quando chega à Argélia o seu papel consistia em aplicar o regulamento no que concerne às prisões. Quer isto dizer que quando uma pessoa era presa pela polícia ou pelos pára-quedistas havia a obrigação de assinalar, de indicar os nomes, as condições da prisão, etc. Antes de transcorrido um mês havia a obrigação de informar o que sucedera com o prisioneiro. Ou a pessoa fora libertada — algo bastante raro, claro — ou fora deportada para um campo ou permanecera no cárcere. Depois de três meses ou dois meses e meio, somente na cidade de Argel, Teitgen constatou que dentre as pessoas prisioneiras… faltavam 3.026 nomes! Então fez a pergunta: "Muito bem, o que é que se passou? Quero uma explicação". Não houve explicação… Teitgen compreendeu que estes desaparecidos haviam sido executados. Muitos foram abatidos, executados, fuzilados, sob o pretexto de "uma tentativa de fuga". Dentro destes números existiam tais tentativas de fuga, mas esses casos foram contabilizados como mortos. Os 3026 desaparecidos correspondem não a toda a guerra da Argélia nem a todo o país mas tão somente ao período de dois meses e meio e só na cidade de Argel. Teitgen apresentou a sua demissão e disse, de modo valente, o seguinte: "Eu não posso admitir a tortura, não posso admitir o mesmo que nos fizeram, a mim e ao nosso povo, os torturadores da Gestapo nazi". Demitiu-se.

P: Na guerra da Argélia foram assassinados quase um milhão de argelinos. Existiam campos de concentração como na Argentina ou matavam os prisioneiros directamente?

Henri Alleg: Existiam campos de concentração. Neles estiveram prisioneiros — no total — cerca de 30 mil pessoas. Havia vários tipos de campos de concentração. Havia, por exemplo, alguns campos muito duros destinados aos que fossem feitos prisioneiros com armas na mão. Eram os campos PAM (prisioneiros com armas na mão). Ali havia mortos, torturados, desaparecidos. Mas também havia outros tipos de campos, um segundo exemplo, em que a tortura também se praticou. Existia também um terceiro tipo de campos. Aqueles que funcionam como "vitrines" preparadas para receber as comissões, para mostrar que "os prisioneiros comem e dormem bem", "não gritam", etc. Eu estive em El Biar, um dos sítios "duros" de repressão e tortura, e depois estive um mês no campo de Lodi, um campo "vitrine", porque no meu caso houve uma pressão internacional tremenda. Mas mesmo nos campos "vitrine" os pára-quedistas foram autorizados a entrar e a tomar qualquer tipo de prisioneiros, torturá-los, se o seu nome tivesse aparecido em qualquer lugar. Não existiram muitos campos "vitrine".

P: Existiram povoados e aldeias que tenham funcionado como campos?

Henri Alleg: Houve povos inteiros fechados, exactamente como no Vietname, porque se considerou que o povo inteiro participava na luta. Não era exactamente um campo porque havia deslocamento da população. Os habitantes desses povoados, que na sua totalidade eram feitos prisioneiros, eram deslocados para outros povoados. Nesses povoados havia a proibição para toda a gente de sair do lugar onde estavam prisioneiros. Em alguns casos havia regiões inteiras consideradas "zonas proibidas". No norte da Argélia uma terça parte do território foi considerado "zona proibida". Os militares franceses tiveram o direito de sequestrar o povo e disparar contra qualquer pessoa que se movesse sem dar qualquer explicação. Houve um general que declarou que essas "zonas proibidas" foram muito boas, excelentes porque "tudo o que se move ali dentro é mau".

P: Qual era o objectivo da tortura? Que perseguiam os militares colonialistas, os pára-quedistas franceses, com o método da tortura e do desaparecimento?

Henri Alleg: Durante aqueles anos na Argélia desenvolve-se uma guerra particular. Quer isto dizer que não há muitas unidades combatentes em uniforme. O inimigo, para os pára-quedistas, são os patriotas. O inimigo, em consequência, é toda a gente. Por isso eles, os militares franceses, tiveram muito pouca informação — "informação" no sentido policial do termo — sobre o inimigo, isto é, sobre os patriotas. Que fazem então os militares? Pois vão à noite a um bairro onde estão os patriotas, no caso da Argélia esse bairro é árabe, e então arrebanham prisioneiros ao acaso. Capturam 100 ou 150 pessoas, tanto homens como mulheres. Fazem isso durante a noite. As pessoas estão seminuas. Levam-nos todos para uma casa de tortura que tem vários andares. Aí começam a bater em cada um deles. Dão pancadas atrás de pancadas. Imediatamente após a tortura de um prisioneiro, trazem outro. Um atrás do outro. Então, nesse caso, os militares torturam sem saber nada. Não é o mesmo que torturar um militante. Os militares chegaram a uma boa conclusão: a imensa maioria da população havia sido conquistada pelas ideias da insurreição, pelo projecto revolucionário dos patriotas. Como fazer se eles, os militares, não sabem nada e toda a gente apoia a insurreição? Então começam por dizer ao prisioneiro ou à prisioneira: "Tu não fazes nada. Mas de certeza que contribuis com dinheiro". Pancadas e mais pancadas. E continuam: "A quem é que dás a massa? Diz-nos quem é que te controla". O objectivo das torturas é reconstruir o organograma dos revolucionários. Então, aquando da tortura, pegam no prisioneiro ou na prisioneira e levam-nos, encapuchados, ao bairro. Aí dizem-lhe: "Denuncia a pessoa a quem entregas o dinheiro". Assim que conseguem capturar a pessoa que recolhe o dinheiro, levam-no e torturam-no. Dizem-lhe: "Tu és um tipo sem importância. Fazes poucas coisas". Então batem-lhe e voltam a bater-lhe. E em seguida perguntam-lhe: "A quem entregas tu o dinheiro que recolhes?". Assim vão reconstruindo até chegarem ao recebedor mais importante do bairro. Então torturam-no até darem directamente com a Frente de Libertação Nacional, a FLN, quer dizer, com a organização da luta armada. E foi assim o processo. O primeiro objectivo da tortura, era pois obter informação para reconstruir o organograma, subindo a cadeia até alcançar os comandos guerrilheiros. O segundo objectivo era implantar o terror. Repito: os autênticos terroristas são eles, os militares! Nos períodos de guerra popular toda a gente sabe que se cair prisioneiro, o torturam. E se o torturam, pode morrer. Isso era coisa que toda a gente sabia. Na realidade o terror havia sido implementado para se tornar dissuasivo.

P: Essa tortura generalizada não teve, no caso da Argélia, o efeito contrário?

Henri Alleg: Exactamente, conseguiu-se o contrário. Quem estivesse indeciso, quem não estivesse convicto para entrar na luta armada, quando os militares lhe assassinam o irmão ou o pai, acaba então por tomar a decisão e entra, ingressa na organização e assume a luta armada. Devido a esses mesmos métodos militares de repressão e tortura, acabou por se alimentar a fortalecer as forças de libertação.

P: Que papel desempenharam os marxistas na luta anticolonialista da Argélia? Esse papel foi a continuação da luta antinazi?

Henri Alleg: Em primeiro lugar é necessário esclarecer que a resistência antinazi na Argélia não teve a força que havia tido em França. Porque não havia forças de ocupação alemãs ou italianas no território argelino propriamente dito. Havia apenas missões alemãs ou italianas ao serviço do governo fantoche de Vichy. Na Argélia havia comunistas de origem europeia e foram caçados. Quando eu era jovem, já militava na juventude comunista. Durante esses anos ocupava-me em fazer propaganda. Mas nunca existiu um grau de resistência semelhante ao de França. Por exemplo, nunca houve ataques contra comboios ou contra soldados alemães.

Quanto aos nacionalistas que se integraram na luta pela independência da Argélia, o movimento nacional foi muito vacilante. Houve gente boa, bem intencionada e honesta contra o colonialismo francês. Mas essa gente não compreendeu realmente que a luta contra o nazismo e a favor da resistência francesa foi também a sua própria luta. Quer isso dizer que muitos pensaram que os inimigos eram os franceses, e os alemães eram inimigos dos franceses. Tiveram a ideia de que se os alemães não eram nossos amigos, também não eram nossos inimigos. Houve outros nacionalistas como Ahmed Messali Hadj que se recusaram a alinhar com os alemães e com o governo de Vichy. Esse tipo de nacionalista expressava: "Não quero que digam que sou um fascista".

Em segundo lugar, quanto ao papel dos comunistas na Argélia, convém recordar que a sua composição era muito variada, muito heterogénea, bastante plural. Havia muçulmanos, europeus, judeus, etc… A orientação do Partido Comunista era que não importa a origem étnica ou a religião a que se pertence, o importante é que todos e todas possam contribuir para fazer uma Argélia pluralista, onde cada um possa viver bem e sem problemas, independentemente da sua origem. Nós, comunistas, afirmávamos que só numa Argélia livre, independente do colonialismo, seria possível concretizar esse sonho. Todas as restrições coloniais eram terríveis na Argélia. Não apenas a tortura, mas também o analfabetismo e o desemprego foram liquidados juntamente com o colonialismo. A ideia era de que essa mudança teria que conduzir a uma Argélia livre e não converter esse país numa província francesa.

P: Os marxistas participaram na luta armada na Argélia?

Henri Alleg: Os marxistas, os comunistas, entraram e tomaram parte na luta armada sempre que tiveram oportunidade e possibilidade porque a situação variou muito de local para local. Por exemplo, no Leste da Argélia, onde o Parido Comunista teve força, a luta armada da libertação, começou desde muito cedo. Os comunistas estiveram nessa luta desde o primeiro dia. Mas houve muitos outros lugares onde se verificou um atraso no começo. Em consequência a luta nesses lugares adoptou uma forma mais pacífica. Mas os colonialistas franceses liquidaram rapidamente estas diferenças regionais. Dois anos e meio depois, todo o território da Argélia passou a estar igual e a participar igualmente na luta armada.

P: Como era a relação entre os dirigentes nacionalistas da Argélia e os comunistas?

Henri Alleg: Uma das coisas de que durante muito tempo não se falou e que começaram a discutir-se nos últimos tempos, é a atitude de alguns dirigentes nacionalistas da FLN — nem todos — que eram anticomunistas e muito sectários no que respeita aos companheiros comunistas. Por exemplo, havia alguns companheiros membros do comité central do PC e um deles foi um extraordinário, um magnífico combatente, muito famoso, que se havia formado nas Brigadas Internacionais em Espanha e tinha muitas acções de guerra no seu currículo, e quando ele e outro companheiro chegaram ao maquis nas montanhas da Argélia, foram executados. Os dois foram executados pelos dirigentes nacionalistas da FLN porque não quiseram assinar um papel onde se dizia "os comunistas são traidores, os comunistas não são verdadeiros argelinos". Os nacionalistas quiseram obrigá-los, dizendo-lhes: "Ou assinam ou matamo-los". Eles responderam que não queriam assinar uma coisa dessas contra o Partido Comunista e então foram degolados pelos nacionalistas. Cortaram-lhes a garganta. Estes dirigentes nacionalistas da FLN, muito sectários, tinham politicamente medo do desenvolvimento da influência do Partido durante a luta.

P: O senhor conheceu pessoalmente o Che Guevara. Como foram esses encontros e em que circunstâncias se deram?

Henri Alleg: O Che Guevara tinha viajado até Argel. Foi aí que o conheci. Se bem me recordo foi em 1963. Ele ficou bastante tempo, várias semanas. Por esse tempo Argel converteu-se numa espécie de ponto de encontro de todos os países e representantes de movimentos africanos que combatiam pela independência. Por isso era um lugar de passagem onde se procuravam informações. Era lógico que Ernesto Guevara ficasse lá durante algum tempo. Isso deve ter interessado ao Che porque pensava e andava à procura de um lugar em África onde se pudesse criar um bom maquis anti-imperialista onde dar início à luta armada. Nessa época a Argélia foi visitada por muita gente. Por exemplo, Carlos Bellibello, um famoso economista e analista político de Angola e quando nos encontrámos aqui há uns dias, demos um grande abraço e ele disse-me, depois de tantos anos: "Henri, nós tínhamo-nos visto na Argélia". De facto, ele tinha estado no nosso jornal. O mesmo aconteceu com Agostinho Neto e também com companheiros da África do Sul. Todos os que resistiam, passavam por Argel. Foi neste contexto que encontrei o Che Guevara. Vimo-nos várias vezes. A primeira vez, vi-o juntamente com um jornalista argelino no hotel. Outra vez, encontrei-o na embaixada de Cuba em Argel. Vi-o uma terceira vez mas não me recordo agora onde foi e da quarta vez o Che veio à redacção do nosso jornal. Eu tenho várias fotografias com ele na redacção do Alger Républicain. Lembro-me que quando nos encontrámos e conversámos com o Che, falávamos com ele com uma grande simpatia. O mesmo aconteceu a muitos jovens que trabalhavam comigo no conselho de redacção do jornal. Eles e eu tínhamos uma grande simpatia pessoal pelo Che Guevara.

P: Como via o Che Guevara o que então acontecia na Argélia

Henri Alleg: Foi um período muito complicado para os camaradas estrangeiros que estavam na Argélia porque se sentiam realmente surpreendidos perante a atitude dos dirigentes da FLN que afirmavam que "Cuba é magnífica!". Obviamente, o Che via isto com grande simpatia. Não foi por casualidade que foi ali mesmo que ele pronunciou o seu famoso discurso de Argel. Mas o Che não deixava de ter as suas próprias opiniões. Algumas afirmações e pontos de vista ideológicos dos dirigentes da FLN estavam em contradição com o pensamento marxista do Che. Alguns deles, por exemplo Ahmed Ben Bella — que era nacionalista — diziam a propósito dos camponeses que "A única classe revolucionária na Argélia, é constituída pelo campesinato". Por outro lado, não tinha a mesma opinião em relação aos operários e trabalhadores em geral. Para Ben Bella havia que ter atenção para não se cair no "perigo do obreirismo". Eram ideias de Franz Fanon, que havia sugerido que a classe operária do norte era "l'enfant chéri do colonialisme" ("o menino bonito do colonialismo"), isto é, que eram funcionais para o colonialismo. Evidentemente que tal coisa não estava de acordo com o que pensava o Che Guevara, que partilhava e havia formulado uma velha concepção leninista segundo a qual o camponês não vê mais longe do que a posse de um bocadinho de terra.

P: Qual foi o papel da mulher na luta anticolonialista da Argélia?

Henri Alleg: A situação das mulheres na Argélia fazia com que a simples ideia de elas empunharem armas e entrarem na luta armada parecesse impossível. Era inconcebível. Mas na tradição da luta anticolonialista da Argélia, durante o século XIX, existiram mulheres que empunharam os fuzis contra os colonialistas franceses. Mais tarde, no século XX, durante a guerra de libertação anticolonial, estes tabus ancestrais que pesavam contra as mulheres, desapareceram. Por exemplo, eram necessárias enfermeiras. Além disso, houve poucas mas existiram mulheres com educação que foram à escola e inclusive entraram em acção nos combates. Desempenharam um papel activo no combate contra os colonialistas. Mulheres que desempenharam um papel importante nas acções armadas dentro da cidade. Conheci-as. Houve necessidade de acções dentro das cidades, acções de inteligência. Além disso foi necessário transportar as bombas nos cestos das mulheres. Para compreender a acção das mulheres este aspecto é talvez o mais espectacular, mas não o fundamental. Há outros mais importantes. Os homens foram presos e encerrados em campos de concentração e em prisões. Estavam sob um controle muito mais duro do que as mulheres. Então, em vários casos, as mulheres tiveram que tomar o lugar dos homens: no trabalho com as crianças, para sair de casa, etc… Muitos homens não queriam que as mulheres saíssem. Teriam preferido que elas ficassem em casa… Mas se o homem não está, claro que é a mulher que tem de sair! Por exemplo, lembro-me de uma anedota. Uma vez eu estava na mesma cela da prisão com um camarada comunista, um líder sindical muito conhecido, muito amado, mas que tinha costumes muçulmanos. Um dia houve uma visita para ele no cárcere. Após ter ido à visita, este camarada regressa à célula e eu digo-lhe: "Viste algum fantasma? O que é que te aconteceu?" Estava branco. Disse-me então: "Foi a minha mulher". Para ele era uma coisa inacreditável que a mulher tenha ido sozinha… à administração colonial!..., ao comissário da polícia!..., para pedir… aos franceses!... autorização para visitar o marido. Para ele foi uma surpresa. Não só ela havia tomado conta da casa, mas além disso fez todo o necessário na administração colonial francesa para o encontrar a ele e vê-lo, para encontrar o marido prisioneiro. E este foi o caso de muitos outros. Isto repetiu-se sem dúvida, durante a luta anti-colonialista.
P: Que aconteceu depois da independência da Argélia com a situação das mulheres?

Henri Alleg: Assim que se obteve a independência do domínio colonial, julgou-se que tudo o que se tinha conquistado durante a guerra de libertação, respeitante à emancipação da mulher, se poderia conservar. Mas logo se retomou o controle por parte das forças reaccionárias. Há a seguinte anedota a respeito disso. O edifício do nosso jornal, o Alger Républicain, tinha um varandim. Precisamente em frente do nosso, havia outro varandim que pertencia ao Ministério da Agricultura. Em 8 de Março de 1963 houve uma manifestação imensa de mulheres exigindo os seus próprios direitos, bem como a independência, a luta de libertação do povo argelino, etc. Era uma manifestação de mulheres com véu e de mulheres sem véu. Todas misturadas. E também com os tradicionais gritos árabes. Eu estava no varandim do jornal com outros companheiros comunistas, muito jovens, olhando esta manifestação de mulheres. Os companheiros viam mobilizarem-se as suas mulheres, as suas mães, as suas irmãs, etc. Estes companheiros jovens, comunistas, estavam muito entusiasmados. Mas em frente ao nosso, no outro varandim onde estavam os funcionários do Ministério da Agricultura, estes tinham um ar absolutamente descontente. Olhavam aquilo como qualquer coisa de feio, como algo de mau. Elas iam já três quilómetros à frente dos seus maridos! Três dias depois encontrei-me com uma amiga que não era comunista mas tinha participado naquela manifestação. Pois bem, acontece que ela foi chamada ao comissariado da polícia e lá disseram-lhe: "Ouvimos-te gritar 'os maridos para a cozinha!' ". O que esses polícias fizeram foi uma coisa estúpida, mas não deixa de ter o seu significado…

P: E o que é que significa?

Henri Alleg: Creio que os homens reaccionários, depois da independência, pararam o movimento. Sobretudo existe um código da família que manteve as coisas como antes, inclusive as coisas mais estúpidas. Em particular, por exemplo, essa coisa de as mulheres que querem um passaporte não poderem obtê-lo sem o acordo do marido, do pai ou do irmão macho. Se ela se quer divorciar ou separar do marido, acontece o mesmo. Algo semelhante se dá com a herança económica: se há um filho do sexo masculino tem direito, se há uma filha, não tem direito. Isso foi muito criticado. Na Argélia há muitas mulheres progressistas, está claro, há mulheres deputadas, há mulheres ministras, mas o fundo reaccionário não mudou, não foi liquidado pela independência. Continua a autoridade masculina, de resto, pior ainda do que nas sociedades da Tunísia ou de Marrocos. As mulheres viram-se bastante frustradas, pois produziu-se esse movimento de avanço e logo a seguir veio um retrocesso, uma reacção.

P: O que se passa a respeito da relação dos argelinos religiosos com os não religiosos, em particular com os marxistas?

Henri Alleg: Julgo que isso não era contraditório. Por um lado havia a vontade dos dirigentes da FLN, dos mais sectários, dos que levaram o movimento para a reacção, mas ao mesmo tempo havia as ideias das massas populares que tiveram várias ideias preconcebidas (entre outras o machismo). Mas de modo geral, se se tomar como referência a orientação geral do movimento que tem como núcleo o FLN, aí nunca houve ideias islâmicas cerradas e intolerantes, que apelassem à morte dos não muçulmanos. Isso nunca aconteceu. Pelo contrário. Os elementos mais simples e humildes da população mostraram uma enorme tolerância religiosa. De modo mais geral, isso predominou na tradição da Argélia. Sem idealização. Nunca houve na Argélia "progroms" contra os judeus. Por exemplo, a grande figura que foi Abd el-Kader, o grande líder contra a colonização francesa, teve um ministro judeu nas relações exteriores. E isso em 1830! Na Europa, por essa mesma altura, era coisa que não se via…

P: Uma vez que o senhor é marxista, como é que viu a questão religiosa?

Henri Alleg: Apesar do que acontece depois na Argélia com os massacres islâmicos, intolerantes e completamente reaccionários, há algumas anedotas que exemplificam isso de modo bastante claro. Lembro-me, por exemplo do que sucedeu noutra prisão — diferente da que mencionei antes. Nesse cárcere havia 100 ou 120 camponeses, todos encerrados no mesmo pavilhão carcerário. Entre eles havia uns 10 europeus. Os dez eram comunistas. Os prisioneiros árabes argelinos sentiam-se muito surpreendidos por verem europeus no grupo de prisioneiros. Surpreenderam-se porque eram camponeses. Nas cidades era um pouco diferente, havia uma mistura de árabes e europeus, mas no campo não. Nas cidades, se bem que os argelinos tivessem ideias um tanto racistas, sabiam perfeitamente que os europeus podiam lutar juntamente com eles. Mas os camponeses não sabiam isso. De maneira que, na prisão, os camponeses argelinos perguntaram: "Mas quem são eles? Quem são estes europeus?". Estavam totalmente espantados ao verem europeus que, como eles, também sofriam a prisão. Não conseguiam acreditar! Então um dia, um dos velhos camponeses argelinos, pediu entre os prisioneiros um tradutor que lhe traduzisse em perfeito árabe e em perfeito francês o que ele queria expressar. E o que comunicou este camponês argelino? Pois disse aos comunistas que, apesar de serem europeus, estavam presos como ele, o seguinte: "Vocês, creiam ou não creiam em Deus, queiram-no ou não, irão para o Paraíso, e irão antes de nós! Sim, vocês vão para o Paraíso antes de nós!" [grandes risadas de Henri Alleg]. Isso foi uma clara demonstração de tolerância e de simpatia para com a luta dos seus companheiros, os comunistas.

P: Como foi possível que essa tolerância desse lugar ao fanatismo religioso?

Henri Alleg: Sim, na realidade há uma diferença dramática entre aquela época e o que sucedeu muitos anos depois, quando na Argélia aumentou a intolerância e se produziram massacres, e houve matanças de religiosos frades. Antes, ninguém havia tocado neles, mas na guerra recente acabaram degolados, com a garganta cortada. Isso foi um golpe para os próprios argelinos. Eles mesmos, os argelinos, disseram: "Estes assassinos, emporcalham a nossa cultura e as nossas tradições".

P: Tanto na actual guerra do Iraque como antes na da Argélia, as potências colonialistas utilizam como pretexto o fantasma do Islão como sinónimo de fundamentalismo. Quando é que surge o fundamentalismo na Argélia?

Henri Alleg: O fundamentalismo muçulmano apareceu na Argélia em 1992, há pouco mais de uma década. Não tem então nada a ver com o desenvolvimento do processo durante 30 anos depois da independência da Argélia como alguns fizeram crer. Como explicar esta vaga actual de fundamentalismo e sobretudo esta integração de jovens que deram a vida pelo fundamentalismo? A primeira, a mais importante razão, é a situação económica e política do país que criou as condições para o desenvolvimento do fundamentalismo islâmico. A luta pela independência provocou um entusiasmo geral, uma tremenda esperança. Na Argélia, a questão das classes sociais era simples. Existiam os muito, mas muito ricos, que eram todos europeus juntamente com alguns feudais aliados dos europeus, e do outro lado, a imensa maioria dos argelinos com diferenças de classe que eram mínimas entre eles. A aspiração à libertação nacional significou também a aspiração à emancipação social. Queria-se mudar as coisas, criar uma Argélia nova: uma Argélia socialista! A palavra "socialista" apareceu de um modo espontâneo na boca de toda a gente durante esses anos. O projecto de uma Argélia socialista! Toda a gente falava de uma Argélia socialista. Mas o movimento foi dirigido por uma pequena burguesia que pouco a pouco foi enriquecendo até se tornar milionária. Tudo isso provocou uma decepção imensa nos mais pobres, sobre tudo nos jovens. Os que mais sofreram foram eles, os jovens. Actualmente, e desde os anos 90, o desemprego atinge um índice que oscila entre os 30% e os 40% dos jovens. No interior da Argélia, no campo, o desemprego atinge os 60%. Existe uma vontade de fugir e sair desta situação. Se um jovem gosta de uma rapariga, não podem viver juntos. Isso não é viável nessa sociedade. Porque tem de dar dinheiro ao pai, arranjar uma casa e tudo isso. Como estas condições não existem, os jovens vivem sob uma pressão muito forte. O que é mais, os jovens não podem ter mulheres. Isso gera um grande mal estar. Em Outubro de 1988 houve uma manifestação em Argel, a capital da Argélia, numa época de mudança. Era no tempo do dirigente Chadli Bendjedid que deu ordem de fogo sobre a manifestação. Houve nesse momento — e isto está confirmado — pelo menos 500 mortos em Argel. A maioria eram jovens. A manifestação não tinha grandes objectivos políticos, nem reivindicações muito explícitas. Queriam pão, queriam trabalho e tiveram um massacre. Isso teve uma repercussão tremenda em Argel e em todo o país. Precisamente a partir desse acontecimento os islamistas começaram a crescer e a desenvolver-se com uma lógica de argumentação muito simples: "O socialismo foi destruído, é uma porcaria. Logo, se a opção não é o socialismo, tem que ser o liberalismo. O que é que nos trouxe o liberalismo? Nada. Aí o tens à tua frente. Mataram os jovens, fuzilaram-nos. Então o problema vem daqueles que dirigem a Argélia, dos que imitam o Ocidente e o tomam como modelo. Obrigam-nos a esquecer que somos muçulmanos. A única solução é abandonar todas essas ideias e concentrar-se no regresso ao Islão…". É essa a lógica que permite compreender o que se passa na Argélia.

P: Os fundamentalistas islâmicos desenvolveram-se de forma isolada ou contam com apoio externo?

Henri Alleg: Existiu esse terreno de frustração, de rejeição, de desgosto a respeito do poder político, e toda esta situação facilitou o trabalho dos islamistas, o desenvolvimento do islamismo. Mas ao mesmo tempo os islamistas contaram com apoios, especialmente fora da Argélia. Uma coisa interessante a destacar é que na Argélia houve muitos estrangeiros, representantes de empresas ou cooperantes e houve franceses, italianos e jugoslavos assassinados. Gente de muitas nacionalidades. O que surpreende é que nunca houve um único estadunidense assassinado… Em Inglaterra os ingleses deram, paulatinamente, autorização aos islâmicos (por exemplo, para abrirem representações) que anteriormente eram proibidos nesse país, assim como o tinham sido na Argélia. Um desses grupos foi a Frente Islâmica de Salvação (FIS). Aliás, mesmo nos próprios Estados Unidos existiu uma representação legalizada dos islâmicos. O Departamento de Estado norte americano teve uma posição bastante tolerante em relação a eles. Não foi um apoio sistemático em todos os lugares mas efectivamente apoiaram-nos em função dos seus próprios interesses. Por exemplo, o rei de Marrocos combateu os islâmicos enquanto que os Estados Unidos os apoiavam. Ao princípio na Turquia, o governo turco combateu os islâmicos e os EUA apoiaram-nos. No caso da Argélia houve um apoio dos estadunidenses aos islâmicos porque o governo dos EUA não tinha confiança na estabilidade e na fiabilidade do poder político argelino. Há muitos indícios de que o Departamento de Estado apoiou os islâmicos! Entre os primeiros que cometeram atentados do FIS (Frente Islâmica de Salvação), por exemplo, massacres horríveis de mulheres grávidas que estavam com crianças e outras coisas horrendas do mesmo estilo, encontravam-se indivíduos que provinham do Afeganistão, onde antes haviam trabalhado ao serviço de quem os havia recrutado: estadunidenses. A CIA havia-os recrutado na luta contra os soviéticos e foram exportados pela CIA do Afeganistão para a Argélia. Na Argélia as pessoas chamavam-lhes simplesmente "os afegãos".

P: A partir da experiência política que o senhor adquiriu ao longo de tantos anos de luta pela revolução, que gostaria de dizer aos jovens que hoje começam a participar na resistência contra o capitalismo e o imperialismo?

Henri Alleg: Penso e creio que de toda esta experiência se poderiam extrair pelo menos duas "lições", se é que se lhes pode chamar assim. Para os jovens, mas também para os que não são assim tão jovens. Em primeiro lugar, não acreditar que tudo o que se ganhou foi ganho para sempre. Essa é uma grande lição, de alcance muito geral. Desde o início da minha militância, desde o momento em que comecei a lutar contra o fascismo, para mim tornou-se óbvio que o fascismo seria derrotado. Era evidente que os países que nesse momento haviam sido ocupados pelos alemães, pelo nazismo, seriam libertados. Para mim era uma coisa óbvia que a União Soviética sairia vencedora, que novas forças se agrupariam junto a ela e que o comunismo ganharia terreno. E isso sucedeu efectivamente, um pouco depois. Em França, no momento da libertação, um terço do parlamento chegou a ser comunista. Havia ministros comunistas no governo. O "espírito desta época" dava a entender que não demoraria muitos anos para que a França se tornasse um país socialista. A propósito disso, lembro-me de uma anedota. Uma discussão com E.F., secretário do PCF e membro do jornal L'Humanité. Ele era mais velho do que eu 10 anos. Era um homem muito simpático. No final de uma sessão da Escola do Partido, perguntei-lhe: "Quanto tempo teremos que esperar para que a França se torne um país socialista?". Ele respondeu-me: "Ouve, és jovem, és impaciente. Não acredito que a França seja socialista antes de 10 anos…". Isso foi há 40 anos! A segunda lição é que não devemos nunca desanimar nem perder a coragem. A vida é breve, mas tudo impele os seres humanos a combater pela sua liberdade, a lutar por um futuro melhor. Eu creio na nossa vitória. A maioria dos povos do mundo há-de convencer-se que não há outra via para conseguir essa libertação que não seja a do socialismo. É isso que gostaria de dizer aos jovens, mas também aos menos jovens.

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