quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Reciclagem ajuda o meio ambiente?

Ponteiras de pedra da cultura Clóvis. A imagem da esquerda é de uma ponteira em seu estágio inicial de uso e a da direita é de uma ponteira que foi reciclada e reutilizada pelo menos 3 vezes. Foto e informações da página do museu da Western Artifacts – Clovis Points

Por Germano Woehl Jr

Flechas com ponteiras de pedra foram uma inovação tecnológica na pré-história. Permitiam mais eficiência nas caçadas, possibilitando até o abate de mamíferos de grande porte, o que proporcionava mais carne para comer com menos esforço e consequentemente provocava o aumento da população humana. Registros arqueológicos realizados nos Estados Unidos associam o uso dessas flechas com ponteira de pedras à chamada cultura Clóvis, povos que habitaram as Américas há 13.000 anos. O nome é por causa do primeiro sítio arqueológico que foi encontrado perto de Clóvis, Novo México.

Estudos revelam que esta civilização desapareceu também por volta dos 13.000 anos. Já foram encontrados fósseis de grandes mamíferos extintos, como mamutes, bisões e cavalos crivados dessas ponteiras de pedra. Estudos bem fundamentados cientificamente revelam que a civilização Clóvis desapareceu no mesmo período da extinção destes mamíferos de grande porte. É bem aceita na comunidade científica a hipótese de que os Clóvis praticaram a caça excessiva provocando o esgotamento deste recurso natural e sofreram as conseqüências em seguida.

Pesquisando na internet (com os termos: Clovis projectile point), verifica-se que os norte-americanos têm centenas de publicações de livros, teses de doutorado e artigos científicos sobre estas ponteiras de flechas e lanças feitas de pedra, que já são estudadas há pelo menos 80 anos. Eles têm também centenas de pesquisadores que se dedicam ou se dedicaram ao estudo destes artefatos, o que torna possível a humanidade conhecer sua história.

Quando eu era criança, um operador de trator-de-esteira, nosso vizinho, mostrou-me um punhado destas ponteiras de flecha que achou durante a construção de uma estrada em Santa Catarina. Eu fiquei impressionado com aquilo e ele gentilmente me deu uma que posteriormente foi furtada da gaveta da escrivaninha de meu quarto junto com minha coleção de moedas antigas, que tinha até duas moedas de prata, que obviamente foram o motivo da cobiça.

Mais tarde, descobri que, assim como nos Estados Unidos, em Santa Catarina também são encontradas uma quantidade muito grande destas ponteiras de flechas e lanças de pedra (ou “ponta de projéteis”, como preferem os arqueólogos). Na foto abaixo está uma pequena amostra dos estilos e tipo de rochas utilizadas. Ao contrário dos Estados Unidos, aqui sabemos pouca coisa sobre os grupos pré-históricos que há mais de 10 mil anos utilizavam esta arma mais eficiente para caçar, denominados pela arqueologia brasileira de “tradição Umbu”.


É comprovado cientificamente que a chegada do homem no Brasil ocorreu há pelo menos 12 mil anos. E a extinção de vários mamíferos de grande porte (megafauna), geralmente mansos, como cinco espécies de preguiça-gigante, dentre as quais uma que pesava 7 toneladas e um tatu gigante (Gliptodonte) no tamanho de um fusca coincide com chegada do homem aqui. Na Argentina, foi encontrado um casco do tatu gigante extinto com uma perfuração de lança.

Esta quantidade impressionante de ponteiras de flechas feitas de pedra encontradas em vários lugares de Santa Catarina (e também em outros estados) revela uma atividade de caça bastante intensa ocorrida na pré-história, há mais de 10 mil anos. Para vocês terem uma idéia do massacre contra os animais da Mata Atlântica, ocorrido há 12 mil anos (idade provável destes sítios arqueológicos), agricultores chegam a juntar um balde (10 litros) cheio destas ponteiras em uma área de apenas um hectare.

Em Santa Catarina estas ponteiras estão depositadas em uma camada de pouca espessura e não muito profunda, cerca de 30 cm, sugerindo a hipótese foram usadas intensamente durante um período relativamente curto.

Repare na foto que eles tinham uma habilidade incrível de fazer estas ponteiras de flecha tão simétricas e aerodinamicamente perfeitas para atingirem com precisão o alvo. Era uma sociedade tecnologicamente bem avançada, mas algo horrível aconteceu porque eles desapareceram, levando a crer que a nossa espécie já enfrentou aqui um problema terrível de superpopulação que provocou o esgotamento dos recursos naturais e um colapso em seguida.

A falta de simetria em algumas ponteiras (veja na foto) pode sugerir uma hipótese de que o grupo foi perdendo a habilidade de fabricar as ponteiras perfeitas, que já não eram tão eficientes, tornando-se mais problema a ser enfrentado, além da escassez de animais, que acelerava o colapso da cultura desses povos da tradição Umbu. Sabemos que quanto menor o grupo, menores são as chances de surgir alguém com uma habilidade específica para uma determinada tarefa.

Certamente as ponteiras que estão nas fotos já penetraram mortalmente no corpo de muitos bichos e podem ter levado a extinção muitas espécies maravilhosas de aves e mamíferos de médio e pequeno porte que habitavam nossas florestas, nos tirando o prazer de vê-las hoje. Só temos o registro de fósseis de grandes mamíferos extintos, o que dá idéia da gravidade do dano ambiental que nossos antepassados já causaram ao Planeta.

Quando olho para esta imagem das ponteiras de fecha eu compreendo porque os animais da Mata Atlântica que milagrosamente sobreviveram ao massacre, como a anta, porco-do-mato, veado etc tem tanto medo da gente. Os “Clóvis catarinenses” já provocaram uma seleção (mataram os mais mansos) há 12 mil anos.

Nossos mamíferos da Mata Atlântica já passaram por horrores com a presença humana na pré-história piores do que agora. Só escaparam porque a sociedade da tradição Umbu colapsou antes de aniquilar os últimos exemplares, que certamente se refugiaram em lugares protegidos por barreiras naturais. No entanto, não sabemos quantas espécies, além das preguiças e tatu gigantes, não tiveram a mesma sorte.

Por pouco, a Mata Atlântica não foi totalmente aniquilada há 12 mil anos (sem animais uma floresta tropical desapareceria em menos de 300 anos). Cabe-nos refletir se estaríamos aqui hoje, se nós também não tivemos a mesma sorte dos mamíferos sobreviventes que escaparam destas flechas. A história da humanidade poderia ter tomado outro rumo e já ter sofrido um colapso há muito tempo.

As imagens seguintes são de ponteiras de pedra recicladas pelos povos da cultura Clóvis, encontradas nos Estados Unidos. Revelam que a humanidade já faz reciclagem e reutilização de materiais há pelo menos 13 mil anos. A imagem logo abaixo mostra uma ponteira que foi reciclada pelo menos três vezes, e a imagem inferior mostra que a ponteira foi reciclada para ter uma outra utilização, como um perfurador ou raspador.
Reciclagem de ponteiras de pedra da cultura Clóvis para obtenção de um artefato com outra finalidade, no caso um perfurador ou raspador. Foto e informações da página do museu da Western Artifacts – Clovis Points

Será que realmente estamos ajudando a natureza fazendo a reciclagem? No exemplo acima, dá para perceber que não. No entanto, as pessoas acham que fazer reciclagem das embalagens dos produtos que consomem ajuda o meio ambiente. As campanhas na mídia influenciadas pelo comércio altamente lucrativo de basicamente dois tipos de embalagens de bebidas, latinhas de alumínio e garrafas PET contribuíram para iludir as pessoas e aliviar a consciência delas quando doam para o diretor da escola ou para os catadores aquelas sacadas de latas de cerveja consumidas nos finais de semana. Tem até escola pública que troca por nota estas latinhas de cerveja. Quanto maior a quantidade de latas, maior a satisfação das pessoas.

Matérias e artigos sobre a tal reciclagem de latinhas de alumínio inundam os espaços em revistas e jornais reservados ao meio ambiente. Mas todos omitem o lado sujo envolvendo a reciclagem de latinhas de alumínio, como por exemplo, os gases liberados e os resíduos altamente tóxicos (cancerígenos) da queima da tinta das latinhas no processo de fundição. Quando analisamos com uma visão mais ampla todo o processo percebemos que esta reciclagem de latinhas de cerveja não é diferente da reciclagem das ponteiras de pedra das flechas para poder matar mais bichos.

A prova de que isto é a pura verdade está nos dados dos próprios fabricantes de cerveja. O consumo de cerveja tem aumentado significativamente nos últimos anos e não para de crescer, fazendo com que a produção nacional das embalagens de latinhas de alumínio não atenda mais a demanda, o que obriga o setor a importar as latinhas vazias, em quantidades cada vez maiores (não é por falta do metal alumínio, mas a capacidade de produção). A mineração de alumínio, bem como o consumo de energia elétrica nunca diminuiu, aumenta sempre, sem parar.

Quando entregamos estas latinhas para serem recicladas, a conclusão que se chega é que só estamos ajudando as cervejarias a vender mais cerveja. A natureza – e a humanidade - sofreriam menos impacto se as latinhas fossem prensadas e armazenadas para sempre em algum lugar especial, já que espaço para guardar lixo adequadamente não é problema, considerando as extensas áreas que as prefeituras aprovam todos os anos para implantar novos loteamentos, visando atender a demanda sempre crescente de moradias para a população que não para de aumentar. Assim, poderia provocar aumento de preço e reduzir o consumo exagerado de bebidas alcoólicas, o que de fato contribuiria para ajudar o meio ambiente e a sociedade.

Se a humanidade quiser continuar sua trajetória de buscar a felicidade, bebendo cerveja (com moderação) ou de outra forma mais saudável, vai ter que mudar de caminho. Os povos da tradição Umbu já nos provaram de forma trágica isso há 12 mil anos na Mata Atlântica. Viver de forma sustentável não é reciclar (afiar) as ponteiras de flechas para matarmos mais bichos, ou melhor, saquearmos a natureza para atender a demanda de consumo de uma população humana que aumenta cada vez mais.

Referências sobre as ponteiras de flecha encontradas em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e São Paulo

Fúlvio Vinícius Arnt, Marcus Vinícius Beber e Pedro Ignácio Schmitz, Instituto Anchietano de Pesquisas –Unisinos (RS). Os assentamentos líticos dos caçadores da Mata Atlântica em Taió, Santa Catarina. Novembro 2006

Mercedes Okumura e Astolfo Araújo, do Museu de Arqueologia e Etnologia, da USP. Uma nova abordagem quantitativa para a análise da variação morfológica em pontas bifaciais do sudeste e sul do Brasil. Novembro de 2010.

Fonte:http://www.oeco.com.br/

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