segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Centenário de Noel Rosa (11/12/1910)


Apesar da pressão familiar, Noel Rosa sempre soube qual era seu destino: “como médico, eu jamais serei um Miguel Couto. Mas quem sabe não poderei ser o Miguel Couto do samba?”, disse para um colega do Ginásio São Bento, onde estudou.

Cada vez mais ligado à música e deixando os estudos de lado, Noel levou oito anos para completar o ginasial, pré-requisito para ingressar na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, como desejava sua família. Em 1931, chegou a entrar no curso, mas, seis meses depois, abandonou de vez os jalecos e bisturis.

Noel de Medeiros Rosa nasceu às vésperas do Natal, em 11 de Dezembro de 1910. Por isso, e pelo amor de seu pai à França, ganhou este nome (Natal, em francês, é Noël). O futuro sambista cresceu com um problema no maxilar inferior, que acabou sendo fraturado por conta do uso do fórceps durante o parto. Apesar das inúmeras tentativas da família de reverter o quadro, a deformação nunca foi corrigida.

Viveu em Vila Isabel, tema de muitos dos seus sambas – assim como outros locais da então capital da República, de onde quase nunca se afastou. A fama de Noel, principalmente como violonista, se espalhou pelas ruas do bairro de classe média baixa, que teve uma trajetória curiosamente musical. Inicialmente apenas participava de serestas, mas acabou sendo convidado para integrar um quinteto. Embora tenha aceitado o convite, Noel sempre foi um corpo estranho no Bando de Tangarás, fundado em 1929. Começou a se afastar dos outros quatro integrantes, especialmente depois de gravar sozinho o samba “Com que roupa?”, inspirado no mundo da malandragem, que sempre o fascinou.

Noel, numa época em que não havia parcerias interraciais na música brasileira, compôs com Ismael Silva e Cartola. Além de grandes nomes da canção popular, como Ary Barroso e Lamartine Babo. Atuou muito como cantor de rádio, mas os cachês modestos fizeram com que ele vivesse sempre em dificuldade financeira.

Ao fim de 1934, descobriu que sofria de tuberculose nos dois pulmões. Então, quase forçado, casou-se com Lindaura Martins. Outra descoberta lhe causa profunda infelicidade: um dos seus grandes amores, Juraci Correa de Moraes, a Ceci, se envolveu com Mário Lago, justamente quando Noel se mudou para Belo Horizonte, na esperança que o clima o curasse. Mas a tentativa fracassou: com apenas 26 e pouco mais de 250 canções, a tuberculose lhe causou a morte, em 1937.


Leia entrevista com o jornalista João Máximo, biógrafo do músico:


'O romantismo do Noel é todo às avessas'
Entrevistamos o jornalista João Máximo, autor da biografia do Poeta da Vila, que conta um pouco mais sobre a história desse músico que nasceu há cem anos
Vivi Fernandes de Lima

O livro “Noel Rosa, uma biografia”, de Carlos Didier e João Máximo, só pode ser encontrado em sebos e por mais de R$ 400. Isso porque sua única edição – lançada pela editora da Universidade de Brasília, em 1990 – virou uma raridade. E, pelo que o jornalista João Máximo nos conta nesta entrevista, o preço deve aumentar. O autor recebeu a RHBN na redação do jornal "O Globo" e, como um bom repórter, começou a conversa antes mesmo de a primeira pergunta ser lançada:

[Foto de Nataraj Trinta]

João Máximo: Quando eu fiz o livro do Noel, não tinha essa tecnologia, não... [Apontando para o gravador digital]. Quando eu gravava, gravava em K-7. Acho que eu poderia ter gravado mais se tivesse um desse.

Revista de História: Que depoimento gostaria de ter gravado e não gravou?

JM: O do Mário Reis. Eu o entrevistei por telefone. Ele nunca dava entrevista... Fiz umas quatro ou cinco longas ligações pra ele. Ele gostava de falar no telefone. Era uma pessoa que não saía do Copacabana Palace, onde ele morava. Foram entrevistas sensacionais.

RH: Por quê?

JM: Porque ele contou, por exemplo, uma viagem com Noel Rosa para o sul. Ele, Noel, Francisco Alves, Peri Cunha e o pianista Nonô passaram por Curitiba, Florianólis e Porto Alegre. Não tínhamos quase nada sobre isso. O Mário Reis contou todas as diabruras que Noel fez. E contava com um humor, um sabor e uma precisão... Lembrava dos nomes e dos lugares. E das bebedeiras do Noel.

RH: Lembra de alguma dessas histórias?

JM: A melhor delas foi que Mário Reis, passando pelo convés do navio, encontrou Noel dedilhando o violão e cantando uma música. Era “Mulato bamba” [O mulato é de fato,/ E sabe fazer frente a qualquer valente/Mas não quer saber de fita/ nem com mulher bonita.] É sem dúvida o primeiro samba a tratar a homossexualidade sem o deboche que as canções carnavalescas sempre trataram. Mário se encantou pela música e disse: “Noel, não mostre essa música pro Francisco Alves. Eu quero gravar”. Isso porque se o Francisco Alves ouvisse e gostasse, ninguém mais gravava. Ele dominava todos eles, dizia o que ele ia gravar sozinho, o que ia gravar com Mário, e o que Mário ia gravar sozinho.

RH: A maior parte da pesquisa se baseou em depoimentos?

JM: Sim, conseguimos muita coisa com ex-alunos do Colégio São Bento. Uma coisa que me impressionou muito foi como é que eles se lembravam de um colega do ginásio. Eles lembravam com clareza os mesmos episódios. Noel marcou a vida de todos deles. Tinha um general, um almirante, um brigadeiro... O médico Lauro de Abreu Coutinho, já falecido, foi quem me contou uma frase clássica de Noel. Numa conversa com o colega, ele lamentou: “Poxa, Noel, você vai largar a medicina...”. E Noel respondeu: “Lauro, como médico, eu jamais serei um Miguel Couto. Quem sabe não posso ser um Miguel Couto do samba?”.

RH: Além do Colégio São Bento, quais foram as outras referências?

JM: O objetivo era saber quem era Noel Rosa segundo uma lição que me foi ensinada: você não pode conhecer um homem se não conhecer profundamente o lugar e o tempo a que ele pertenceu. Então, tinha que conhecer os lugares que ele frequentava: Vila Isabel, Lapa... E também tinha que saber o que as pessoas pensavam, que valores elas tinham, seus preconceitos... Isso tudo pra saber até onde ele foi rebelde. E, é claro, o seu tempo, que é uma coisa que o Caetano Veloso ainda não entendeu. Quando ele diz que Noel é racista por causa dos versos de “Feitiço da Vila” [“A vila tem um feitiço sem farofa/ Sem vela e sem vintém que nos faz bem...], ele está julgando Noel Rosa pelos padrões de hoje. Mas você não vai pegar uma samba que Noel fez em 1935 e julgar sob os padrões de hoje! Pra aparecer, ele fez isso com Noel Rosa.

RH: Você encontrou muitas contradições nos depoimentos?

JM: Encontrei contradições que não alteram muito quem foi Noel Rosa. As pessoas têm memória às vezes fraca, às vezes seletiva. Por exemplo, a Ceci, que foi a paixão da vida dele, me contou que o primo dele, Jacy Pacheco, primeiro biógrafo de Noel Rosa, teria dado uma bofetada nela. Isso porque ele ficou indignado com ela, que já estava com outro namorado, enquanto Noel estava muito doente. Ela contou isso. Mas ele negou veementemente. Obviamente, eu tive que contar as duas versões. Mas isso não altera a essência do Noel Rosa. A essência dele, o grande achado é a importância que ele tem na música popular brasileira.

Primeiro, ele foi um tipo fascinante, bem rebelde em relação ao Brasil, à cidade, às diferenças sociais. O Mulato Bamba, o João Ninguém, a Maria Fumaça são a parte desvalida da população, pisoteada pelas relações econômicas de status social. Quando ele fala do barracão lá na Penha, fala contra os arranha-céus. “Essa mulher dos arranha-céus” é a Julieta, mentirosa, ardilosa, que quer carícias de papel [dinheiro].

RH: Essa habilidade de fazer críticas com sutilezas é o grande diferencial dele?

JM: Eu acho que ele foi genial por isso. Foi o primeiro letrista da MPB que ensinou que tudo poderia ser usado em letra de música, desde que bem usado. Quando a bossa nova teve um sentido inovador, até ali havia um certo preconceito contra certas coisas... Imagina em 1930! Como é que você vai falar em música que bate na mulher amada, que vai chamar a mulher de mentirosa? O romantismo do Noel é todo às avessas, ele é um romântico que não crê no amor.

RH: E como músico?

JM: Ele foi um dos primeiríssimos brancos a terem adotado o samba do Estácio, que é o grande samba carioca, que substitui o samba amaxixado dos baianos da Cidade Nova. De 1929 a 1933, ele é o único branco de classe média com passagens pela universidade que se tornou parceiro de 16 ou 17 negros dos morros cariocas.

RH: Vila Isabel mudou com Noel?

JM: Ah, sim. Até hoje, as pessoas falam “aqui morou Noel Rosa’, “aqui é o bairro de Noel Rosa”, é um mito. Você pega um táxi, pede pra ir pra Vila Isabel – eu faço isso todo dia – e o taxista comenta: “A vila de Noel, né?”.

RH: O seu livro chega a custar mais de 400 reais nos sebos. Há previsão para reedição?

JM: É, alguns amigos me pedem, mas eu não tenho mais exemplares... Há vários impedimentos para a reedição. Um deles é que há duas herdeiras do Noel Rosa que proibiram. São duas sobrinhas, filhas do Hélio Rosa, irmão de Noel. Elas implicaram com várias coisas, como o suicídio [do pai de Noel], e até com o casamento dele com Lindaura, que parece que dificulta provar que são únicas herdeiras... Já nos processaram algumas vezes e perderam todas.
Outro problema é que os autores não se dão mais, não têm mais uma relação de amizade. Mas não houve briga, não somos inimigos, só não temos mais a relação de amizade que permita a gente sentar pra rever o livro. Por computador eu não faço livro com ninguém. Por isso tudo eu acho que o livro não sai mais.

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