segunda-feira, 8 de novembro de 2010

A insepulta, seus pais e herdeiros

Leandro Mazzini

A famigerada CPMF — Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira — foi gestada no governo Fernando Collor de Mello sob o título de IPMF — Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira; ganhou forma na gestão de Fernando Henrique Cardoso, quando virou lei em 1996, sob título de Contribuição (nomenclatura que não a fez diferente de tributo). Sua musculatura foi realimentada por Luiz Inácio Lula da Silva, em cujo governo ela teve desvirtuada também sua função de repassar verbas só para a saúde (em 2007, só 40% da arrecadação era destinado à área), e enfim enterrada pelo Senado Federal em dezembro de 2007. Apesar disso, tornou-se insepulta. Como filha de vários pais nestas décadas, todos eles afoitos para cobrir rombos no orçamento da saúde, a CPMF ganhou também o carinho dos herdeiros parlamentares e executivos desse itinerário do poder. Não é diferente com Dilma Rousseff. Nem tomou posse e, embora tenha dito que não pretende recriá-la, deixou a tarefa para os governadores aliados. E não só aliados. E todos franqueados ao Palácio do Planalto à espera da verba.

Não será surpresa para o cidadão se diferentes partidos se alinharem a essa demanda. Apesar de muitos da oposição hoje gritarem contra o imposto, alguns deles representaram os grupos outrora gestores do imposto. O primeiro esboço da CPMF, o IPMF, nasceu de texto de autoria do deputado federal Luiz Carlos Hauly (PEC 48/1991) ainda no governo Collor. Hauly era do PMDB (logo depois migrou para o PST e hoje é do PSDB), aliado ao presidente, e propôs a Emenda Constitucional criando o tributo para fazer ajustes fiscais no governo (o índice não passaria de 0,25%, dizia o texto). A proposta avançou na Câmara, mas ali parou. Veio a turbulência do impeachment do presidente em setembro de 1992, e o imposto passou também por suas mutações – virou Projeto de Lei Complementar 153/93 e, mais à frente, enfim no governo FHC, tomou forma na PEC 256/1995, de autoria do Executivo. Foi então que se abriu o caminho para a criação do imposto. Adib Jatene era o ministro da Saúde e, defensor eterno da boa administração, articulou por sua criação.

Houve, no entanto, um caso curioso que até hoje não veio à tona, e um atento remanescente daquele grupo de debates revelou à coluna. O então presidente da Câmara dos Deputados, Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA), viu-se diante de uma gritaria que não ganhou eco fora do Congresso, mas tornou-se forte nos bastidores. Em novembro de 1995 o texto foi lido em plenário. Mas só chegou às comissões da Casa para análise em abril de 1996. Ficou em tramitação nos corredores até julho, quando enfim foi levada a plenário e aprovado. A demora, apesar do regime de urgência, teve seus motivos: os deputados tinham medo de que a CPMF rastreasse suas movimentações financeiras, e dos grandes empresários financiadores de campanha. O lobby contra foi intenso, falavam em “quebra de sigilo indireta”. FHC tinha a maioria na Câmara, e precisava do imposto.
Foi uma dificílima negociação até aprovada no mesmo 1996. Esse episódio foi o que levou à criação do Coaf dois anos depois, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Lei 9.613, de 03/03/98). Depreende-se do caso, hoje, que, se a CPMF foi um mal para a conta do contribuinte, também foi e ainda é para os especuladores das transações mal explicadas, de certa forma.

Como era contribuição provisória, a CPMF passou por duas prorrogações – e na esteira das aprovações, o acréscimo de percentuais feitos por governos insaciáveis. Os iniciais 0,25% de cobrança sobre cada movimentação passaram para 0,38%. Foi demais. O Senado, embora com maioria simples a favor do presidente Lula, em dezembro de 2007 matou o imposto com a ajuda da oposição e principalmente de sete senadores da base contrários ao tributo. O presidente da República nunca esqueceu o episódio, vocifera até hoje. Foi o que o influenciou a trabalhar na eleição majoritária deste ano para fazer uma Casa Alta forte, com votos aliados de sobra, para a sucessora. Conseguiu.
E justamente por não ter engolido a derrota para o Senado, e a perda da receita com a CPMF que até 2007 lhe ajudava a segurar o cofre, o presidente Lula usou o PT para trabalhar pela recriação do imposto. Ele vislumbrou o problema que viria com a sucessão. Lula deixa para Dilma Rousseff, que toma posse em janeiro de 2011, nada menos que R$ 50 bilhões só de restos a pagar. O dinheiro da CPMF de volta seria bem vindo. Criou-se a camuflagem e o renascimento do tributo no texto de autoria do senador Tião Viana (PT-AC), em ementa no Projeto de Lei Complementar 306/2008. A ementa cria no PL a CSS – Contribuição Social para a Saúde, com alíquota de cobrança mais branda – será 0,1% sobre movimentação financeira, três vezes menos que a antiga CPMF, mas também com porta aberta para que o índice cresça a galope. O texto passou por três comissões na Câmara dos Deputados, pareceres positivos de Eduardo Cunha (PMDB), na CCJ, de Pepe Vargas (PT), na CFT, e, curiosamente, de Rafael Guerra, do PSDB mineiro, na CSSF. Daí o governador eleito de Minas, Antonio Anastasia (PSDB), não ser contra a criação do imposto. O projeto foi aprovado em turno único em meados do ano passado. Falta apenas um destaque, pedido pelo DEM, para que retomem a votação em 2011 no Senado e renasça a CPMF na forma de CSS.

Esse, no entanto, é um dos cenários. Uma vez com passe livre na Câmara, a CSS corre para o Senado, mais forte pró-Dilma, poderá ser aprovada, e em poucos meses remetida à sanção presidencial. É o caminho mais curto para a volta do imposto. Mas, se os aliados do Planalto preferirem uma PEC, mais forte constitucionalmente e também optarem por alíquota maior, também poderão tentar. O tempo de tramitação será mais demorado. Mas, como Dilma Rousseff terá votos de sobra para aprovação de PEC tanto na Câmara quanto no Senado, não é descartado que o Executivo e o Legislativo aliados do Planalto sigam este atalho.

De qualquer forma, em qualquer cenário, prova esse tributo insepulto que seu histórico já amarrou oposição e base num círculo vicioso. O da receita fácil. Perde o contribuinte.

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