quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O Brasil que matou Selarón


“Bastou uma fagulha do isqueiro no corpo encharcado de thinner, e pronto: o chileno faz o verão árabe em plena escadaria da Lapa, e ninguém, nenhum mané se deu conta. Evidente que Selarón pegou fogo em vão. Paisinho de merda”

No começo, disseram que foi assassinato motivado por vingança. Agora, especulam que Selarón suicidou-se. Eu creio que foi um pouco dos dois, e daí chego a uma conclusão inusitada: a paisagem que matou o artista chileno.
Ou melhor, a falta de paisagem. Ele não mais fazia parte do Rio de Janeiro que inventou para si quando começou a cobrir de mosaicos a escadaria que liga a Lapa a Santa Teresa. Isso foi no começo dos noventa. Eu costumo dar umas voltas por lá, morei perto da Chácara do Céu, e faz alguns meses descanso meu esqueleto na Glória, cansei de subir e descer aqueles degraus, e em várias oportunidades topei com Selarón e tive o mesmo pressentimento que tenho agora depois de sua morte: um vulto. O pintor e ceramista havia se transformado num vulto melancólico, rojo e contrariado.
Assim, como vulto, que o vislumbrei desde a primeira vez. Eu mesmo outro vulto, só que condenado por uma espécie de deslocamento atemporal, castigado pelo amor das mulheres e pela morte em vida. Digamos que sou uma assombração em carne e osso: um morto-vivo que se arrasta pela Lapa, enquanto Selarón era um vulto deslocado por uma paisagem imediata que não mais lhe pertencia.
Explico. Nessas idas e vindas, também fui hóspede do Hotel Marajó, que fica na Rua Joaquim Silva, ao lado da “Escadaria do Selarón”. Na frente do hotel, o bar dos irmãos Ximenes. O som dos bares ao redor e ao longo de toda rua é infernal – especialmente nos finais de semana. Selarón circulava de saco cheio pela Joaquim Silva, e devia estar ouvindo e sentindo aquele mesmo lixo que qualquer um conseguiria observar e absorver – antes da morte dele – a partir do bar dos Ximenes. De um lado, uma multidão de turistas mastercad tirando fotos da escadaria e solicitando “o artista” como se fosse a zebra de um zoológico, de outro um exército de mendigos e nóias indiferentes às sirenes das viaturas policiais que cercavam a entrada e a saída da rua e intimidavam gregos e troianos. Os habitantes do limbo, mendigos e nóias, permaneciam/permanecem no limbo como se a presença da polícia, dos turistas e do “artista” não tivesse nada a ver com eles. Pensando nisso, no circo em transe, no espetáculo de horrores que a Joaquim Silva proporciona depois das vinte e duas, os nóias e os mendigos eram os únicos que mantinham alguma coerência com o lugar – pois eles nunca saíam do estado de calamidade pública.
Selarón resmungava o tempo todo, remoía seus azulejos entre os dentes, cuspia bílis e sangue, andava pra lá e pra cá abraçado em seu rubro rancor como se ele mesmo fosse uma milonga perdida no tempo e no espaço, engolia um veneno muito particular. Ele era “o artista”.
Noite de Rap num dos bares ao lado do Ximenes. No outro bar, era a vez do funk-Armagedom. O ódio, e aquilo que os místicos chamam de “inclusão” disputava cada centímetro da rua e ameaçava um duelo entre os pentelhos das rimas mal encaradas e as periguetes da Furacão 2000, que naquela noite davam uma canja na Lapa:
Levanta a perninha
Descendo, subindo.
Trilha sonora do inferno: Rap versus Funk.
Eu penso na ex-Bahia de Carybé. Alguém conseguiria imaginar Carybé retratando um Hitler vestido de sereia a proferir palavras de ordem pruma multidão ensandecida atrás de um trio elétrico?
Também tinha axé-music rolando debaixo dos Arcos. Ao atravessar a Riachuelo, o incauto poderia topar com Marcelo D2 no Circo Voador. Malu Magalhães ameaçava de tédio infinito alguma casa da Lavradio, por aí a coisa ia. Rio, 2012. Cardápio brabo.
Ah, eu falava que é impossível imaginar um Carybé nos dias Sangalos que vivemos… Pois bem, a mesma coisa acontecia com Selarón, só que ele ainda não havia pegado fogo. E eu sabia que ele estava fora do lugar, que a paisagem não mais lhe pertencia, que aquilo não ia acabar bem, nem durar muito tempo.
Selarón era um herdeiro debochado das mulatas de Di Cavalcanti. Ele emprenhou aquelas mulheres maravilhosas, empinou as tetas delas na direção do convento das Carmelitas. Pois foi nessa condição (ou nesse ritmo) que o artista chileno aportou no Rio de Janeiro no começo dos noventa, esse Rio, caros leitores, lamento dizer, não existe mais. A Lapa virou um quiosquão da Mastecard que anoitece angustiada sob as sirenes das viaturas policiais e amanhece cheirando a mijo, solidão e miséria.
Vou ser redundante. Seguinte: a miséria e o cartão de crédito são duas faces da mesma moeda, mas essa moeda, apesar de o Hermano Vianna (poodle de estimação do Caetano) insistir nessa tese, essa moeda não pode ser a cara do Brasil. Me recuso a acreditar no Brasil dos poodles. O que não muda nada, diga-se de passagem… os cãezinhos estão cagando para mim. Infelizmente é o que temos pro almoço e pro jantar: essa antropofagiazinha tropicalista pra boi dormir, apesar de todos os pesares, au au. Coincidência ou não, ao lado do corpo de Selarón foi encontrada uma lata de thinner, e um isqueiro.
O Rio da paz dos cemitérios enfiado goela abaixo do carioca distraído e dos turistas deslumbrados, pode servir, quando muito,  à conveniência dos próceres e demagogos de plantão, gente do feitio desse Cabralzinho que incluiu as Olimpíadas no cardápio tropicalista abençoado pelo capeta e enlutado pela natureza que a enxurrada levou. Mas não me serve. Serviu algum tempo a Selarón. Que, aqui entre nós, vivia da rebarba dessa babaquice – até que a paisagem o abandonou. Ou seja. Apenas zumbis de uma cidade que não existe mais vicejam a partir dessa inclusão-lugar-nenhum. Uma coisa é misturar chiclete com banana, outra, completamente diferente, é aproximar – como fez sinhozinho Veloso em sua coluna do Globo(6/1/13) – Mano Brown de Manuel Bandeira e Marighella. Considero isso um crime. Ninguém consegue enganar e ser odara e enganado o tempo todo, haja solvente pra dar conta de tanta mentira, meu Rei.
Bastou uma fagulha do isqueiro no corpo encharcado de thinner, e pronto: o chileno faz o verão árabe em plena escadaria da Lapa, e ninguém, nenhum mané se deu conta. Evidente que Selarón pegou fogo em vão. Paisinho de merda.
Um lugar que “passou da barbárie à decadência sem conhecer a civilização”. O Brasil que foi (que é) sem nunca ter sido, o país banguela reconhecido por Levi Strauss, bem, desconfio que foi esse o Brasil escolhido por Selarón para sentar praça. O chileno tropicalizou-se, adaptou-se a selvageria local, embuchou as mulatas de Di Cavalcanti, ganhou o título de cidadão honorário, e depois pegou fogo. O Brasil que tantos estrangeiros procuram e que nosotros identificamos no esmalte descascado dos pés cheios de areia da gringa do sovaco peludo, foi esse lugar que assassinou e/ou suicidou Selarón. Ele foi traído.
Corta/Uma japonesinha do Bixiga tira fotos da escadaria chamuscada pelos restos do “artista”: vulto de si mesmo, macaco de zoológico – que foi morto ou se deu a morte muito antes de o encontrarem carbonizado sobre os mesmos azulejos coloridos que fizeram/ e fazem/ e farão a alegria da japonezinha do Bixiga, da dinamarquesa do sovaco peludo, e dos gringos do Brasil que jamais vão conhecer o Brasil. A japinha ri com aquela cara de pastel, e pede p’reu repetir o nome dele: “Selarón, né?”
Isso mesmo, japinha do inferno, o nome é Selarón. A prefeitura do Rio – consta – vai pagar as despesas da cremação do artista.


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