domingo, 31 de julho de 2011

José Aparecido Leite, cego e paraplégico há mais de 20 anos, luta pela inclusão dos deficientes

Desde meados da década de 80, o ex-garçom José Aparecido Leite, 48 anos, não enxerga e não anda. Neste tempo, enfrentou as agruras da deficiência, contra a qual já soltou toda sorte de impropérios. Pa­­la­­vrões, aliás, são uma de suas es­­pecialidades, ao lado da pregação de peças. “Eu era namorador e me sentia um cara livre. De repente... Pô, ainda me deprimo”, admite, entre uma pausa e outra nos risos que costuma provocar.

Veja slideshow com ensaio fotográfico e bastidores da entrevista. E vídeo com José Leite num teste de locomoção

Num de seus piores momentos, uma professora de escola especial lhe pediu que fizesse uma escultura em sabonete. José tinha mais de 21 anos e entendeu que precisava encontrar uma cura para suas insatisfações. Foi o que fez: pediu que o levassem ao ponto do ônibus mais próximo, dando partida ali – a bordo de uma cadeira de rodas que mal pode pilotar sozinho – a uma impressionante trajetória de militante das políticas de inclusão.

Hoje, faltam dedos nas mãos para contar o número de iniciativas a que está ligado. É membro de cinco conselhos e de uma associação, incluindo o Conselho Estadual das Pessoas com Deficiência e o Conselho Gestor do Fundo Na­­cional de Habitação de Interesse Social. Já esteve ligado ao Mi­­nistério das Cidades. E tem na ponta da língua resoluções e portarias.

Não por menos, é procurado por portadores de necessidades em busca de direitos. Mas também por jovens às voltas com os dilemas da sexualidade e do isolamento. Não nega fogo. Desbocado, mas bem informado, tornou o mundo de quem não anda ou não enxerga, como ele, menos sombrio. Em tempo: Zé Leite dispensa o atestado de invalidez. É operário da causa e defende uma ideia fixa: a independência dos que carregam toda e qualquer limitação física.

Leite deu entrevista na casa em que vive com os pais, Ana e Laércio, em Colombo, na região metropolitana de Curitiba.

Zé, você caiu de um viaduto, ficou cego e paraplégico. Ainda dá para rir?

Um dia, chamei minha namorada e fomos tomar uma cerveja com um amigo, no Capão Raso. Eu conhecia a casa dele, porque tinha ido lá antes de ficar cego. Um outro conhecido que estava lá brincou com a moça: “Larga do Zé, dá um murro na cara de­le...” Não falei nada. Saí, abri uma gaveta e pe­­guei uma faca. Vol­tei para a sala e gritei: “Dá um murro... Vou dar facada até no capeta ...” Até o dono da casa correu. [risos]

Boa, tem mais uma...

Quan­­do o Na­­zareth tocou em Curitiba, fomos em grupo. O motorista era o James de Paula França, tetraplégico. Os caronas, eu, cadeirante, um que usa muletas e outro que usa muleta canadense. Saímos de lá às 3 horas da manhã, som alto e entramos na contramão. A polícia veio atrás. A gente com medo deles e eles com medo da gente. Apon­taram armas e meteram lanterna na nossa cara: “Desce todo mundo com a mão no capô...” [pausa] “Por que vocês não descem?” A gente teve de responder... O que mais irrita nessa condição?

Quando a gente fica paraplégico, a primeira coisa que perguntam é: “E o pinto, ainda está funcionando?” Um cadeirante se separa da mulher e alguém diz: “Não dava mais nada...” Poxa, naquele mesmo cartório, sei lá, 18 casais que andavam também se separaram. Outra coisa incômoda é quando o deficiente está digitando e alguém fala: “É um exemplo de vida”. É sempre essa mesma ladainha.

Jovens deficientes o procuram?

Sim, principalmente para saber de direitos. Também me perguntam muito sobre sexualidade. Acontece o seguinte: a mãe fala para a menina deficiente de 14 anos que namorar é feio. E ela vê a irmã dando um amasso. Só para ela é feio? Faço palestras e digo que nós podemos fazer sexo. Fazer amor não é só penetração. É um tema tabu.

Do que você sente muita falta?

De ver como meus irmãos e meus pais estão. Quando me acidentei, meu irmão mais novo ti­­nha 18 anos. Hoje tem 40. Eu tinha sonhos que já morreram, como conhecer o Pantanal e o fundo do mar. Sem enxergar, não faz sentido.

Como sua revolta se manifesta?

Não me conformo até hoje, mas não sou mais de virar o bicho. Às vezes, dá muita depressão. Nos meus sonhos não sou cego. Quan­do acordo, penso: “Putz, eu não enxergo já faz 28 anos”. Mas tenho atividades, converso com um, outro vem e brinca. Nós deficientes tiramos sarro um do outro. Mas só a gente pode... [risos]

José Aparecido Leite já teve seu “dia de fúria”?

Certa vez, se pudesse, eu teria grudado no pescoço de um cara. [risos] Imagine eu com uma cadeira de pneu maciço, saindo de Colombo às 5h30, com pai e mãe, para ir ao Hospital de Clínicas fazer tratamento. A médica me atendeu às 14h30. Na saída estava garoando. Garoa no paralelepípedo. Eu com fome. O ônibus lotado. Na descida, tinha de tirar a cadeira no meio da multidão. Um motorista que estava de carona falou: “Também, fica trazendo a mudança no ônibus”. Fiquei vermelho. Se encostasse sairia veneno pra todo lado. Disse: “Se pode trazer um cavalo como você, por que não a minha cadeira?” Pô, eu molhado, cansado, sofrendo e o cara vem encher o saco?

Como era o Zé antes do acidente...

Um sujeito que começou a trabalhar aos 12 anos, numa farmácia. Aos 13, vim para Curitiba e me empreguei em escritório, fábrica, vendi livros, servi em restaurantes. Não conseguia ficar sem dinheiro e não achava justo pegar do meu pai, pedreiro, ou da minha mãe, costureira. Quando estava para completar 21 anos, me acidentei... Eu era um cara ativo e a vida tinha acabado para mim.

O que aconteceu exatamente?

Uma brincadeira. Caí do viaduto da Inácio Lustosa, perto da antiga Telepar. Era meia-noite de 25 de outubro de 1983. Estava com um grupo de amigos e não havia mais ônibus para as meninas irem embora. Inventei de encostar a cintura na grade, erguer as pernas e dizer: “Vou pular...” Não lembro de meu corpo bater no chão.

Quando se deu conta de que tinha perdido a visão?

Minha cabeça ficou moída. Os mé­­dicos falavam: “Se operar ele vai morrer. Se não operar, vai morrer também”. Operei e estou aqui. Ami­­gos iam no hospital e eu pensava que estava enxergando, a gente guarda a imagem. Uns 15 dias depois percebi que estava cego. No início pensava: “Vou voltar a enxergar.” Mas passou um mês, dois meses e a visão não voltou.

E a outra parte da história...

Dois anos depois, começou a doer minha coluna. O médico disse que era cólica de rim, me deu Buscopan e mandou para casa. Dias depois amanheci com a bexiga travada e a perna formigando. Estava paralisado da cintura para baixo. Desco­briram que eu tinha uma infecção medular. Me dei conta do estrago: eu vinha de uma família humilde, morava em uma casa de madeira e sem acessibilidade... Reagi. Fui para uma escola especial. Só que a maioria dos alunos era criança. E me tratavam como criança. No Dias das Mães me mandaram fazer um bonequinho de sabonete.

Sua família reagia como?

Eu estava no quarto e pedia: “Traz a comadre que eu quero fazer xixi”. Minha mãe ia e vinha. “Va­­mos almoçar?” O melhor pedaço de carne vai para o ceguinho. Por que o tratamento tem de ser diferente? O deficiente é igual, mas muitos estão guardados em casa. Quer ver deficiente tomar banho, basta visitá-lo. A gente pergunta se ele está e escuta: “Não, tá tomando banho.” É mentira. Tem de conscientizar a família. Entendi que eu não podia ficar parado.

Como começou a militância?

Havia aqui em Colombo um cadeirante chamado Pelegrin Felipe Cavasin [da Central de Movimentos Populares, morto em 2002]. Eu não fazia nada, não saía de casa, mas o Pelegrin deu de me levar em viagem e até fundamos juntos a Apae da cidade. Um dia ele me disse: “Zé, você é um cara de luta. Poderia ser conselheiro da Saúde.” Fui duas ou três vezes conselheiro estadual, várias vezes municipal... Pode ser que eu não vá usar as coisas pelas quais luto, mas alguém vai.

Qual foi sua maior alegria nesse trabalho pela inclusão?

A regulamentação das leis de acessibilidade, na 1.ª Conferência das Cidades, em 2004. Eu imaginava, é verdade, que tudo estaria bem melhor hoje. Os prazos do decreto [5.296, que regulamenta as leis anteriores] já terminaram e o pessoal não cumpre. Mas em vista do que era... Onde a gente via um banheiro acessível? Uma rampa? Hoje tem símbolo do deficiente no shopping. Mas as calçadas de Curitiba continuam horríveis.

Como o Zé Leite vai para o Centro de Curitiba?

Alguém me leva até o ponto. Alguém me espera no Terminal Guadalupe. Desço e é aquela “coisa mais linda do mundo”: o Gua­dalupe “cheio de acessibilidade”. O papel do banheiro continua no lu­­gar errado. Como pegar estando sentado no vaso? Por telepatia: “Vem papel”. Antes o ba­­nheiro era só para de­­ficientes. Ago­­ra, motoristas e funcionários podem usar. Como nós paraplégicos não controlamos o esfíncter, se tiver gente na frente, tem de fazer na calça.

Um prefeito de Bogotá disse que todo gestor devia andar de cadeira de rodas um dia. O que acha?

Só vai sentir o que é a cadeira de rodas quem sentar numa. Tem gente que acha fácil: “Ele anda por tudo...”, dizem. Mas tem de ser atleta. Falta humildade para os engenheiros. Se não entendem de acessibilidade, perguntem a quem sabe. Quando precisamos de uma rampa, cortam o meio-fio. Isso não é rampa, é guia rebaixada. É para carro. Na hora em que a gente desce, a rodinha da frente bate naquela valetinha que fica no asfalto e o cadeirante cai de bruços.

Vocês se veem como minoria?

Somando pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida temporariamente somos uns 30 milhões de brasileiros. O IBGE diz que 14,5% da população é deficiente. Só que a última contagem foi feita por amostragem. Em Curitiba é difícil saber. Os hospitais não têm um protocolo informando quem lesou a medula, quem rompeu o nervo ótico. Só temos o cadastro da FAS [Fundação de Ação Social]. Já pedimos para o governador fazer a contagem, mas ele preferiu contar as vacas gordas, que dão mais lucro.

É uma burrice do estado...

A cada dia que um deficiente passa na cama, o município e o estado gastam mais. O deficiente vai atrofiar, criar escara, ter infecção. Se alguém que chegou ao hospital ficou deficiente, deve sair com uma cadeira de rodas, continuar estudando, não parar no tempo. O problema já começa na carteira profissional: “aposentado por invalidez”. Essa palavra nos quebra. Se estivesse escrito: “Impedido de trabalhar como garçom”. Ora, o sujeito pode ser digitador, ascensorista... Inválido é quem não presta para mais nada. (GP)

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