domingo, 5 de dezembro de 2010

Crônica do Chico Buarque: Claudionor, ô Claudionor!


Umas das festas mais tradicionais do Morro dos Bodes é a festa da água. Nessa ocasião, não falta um favelado. Comparecem até figuras de destaque, como o curandeiro João, Mané Peixeira e Benedito Viola. A elite.

Comparecem, também, o prefeito lá de baixo, mas não chega a ter grande destaque, pois está sempre mudando. Não é como Mané Peixeira, por exemplo, que sempre manteve repeitada sua autoridade, que leva no cinto, comprida, reluzente e bem afiada.

A festa da água não passa de inauguração desse precioso liquido naquele morro. Não tem data fixa, mas realizasse sempre nas vésperas das eleições.

Tudo começa com a benção do curandeiro, que fuma charuto sobre um grande cano. Depois vem o prefeito que faz um discurso breve sobre o progresso da Pátria, enquanto que moleques quase nus brincam de pegador no meio da multidão. Findo o discurso, dá uma machada no cano, espirrando água para todos os lados. É então que acontece o carnaval. O povo toma uma ducha grátis, soltando bombas e foguetes.

Quando os operários colocam uma placa provisória para concertar a violenta inauguração, o cano já está seco. E o prefeito, longe.

Mas o povo não se amofina. Já está acostumado, fica a espera da próxima. Água a domicilio, apenas quando chove. Vem Fevereiro e repete-se o mesmo samba:

“Lata d´agua na cabeça, lá vai Maria , lá vai Maria …”

Hoje porém, há de ser diferente. Para começar está fora de época. O novo prefeito tomou posse o ano passado e dizem ser um homem incrível que pareça, os favelados esperam mais que o discurso e foguetes. Maria pensa em aposentar sua velha lata d’água.

A multidão assiste alegre à macumba do João, que é interrompida por uma buzina sonora. A atenção geral se descia para o vistoso carro americano que traz o novo prefeito. Onde termina a estrada para o carro, desce o prefeito acenando com a mão. Sobe a rude escada de terra, acariciando a cabeça de um ou outro guri. Mas como está por de mais fatigado, não se esforça muito no sorriso. Afinal, o morro é um pequeno eleitorado.

Vencida a cansativa escada, o prefeito chega ao famoso cano que, eternamente à espera de outros encanamentos, é o único monumento do morro. Todo remendado pelas diversas inaugurações, esse monumento vai perdendo a forma clássica do cano.

Agora o prefeito posa para o fotógrafo, machado na mão, demagogia no sorriso. E a massa se põe num incomum silêncio que prenuncia o mais barulhento dos carnavais. Até nos olhos tristes de Gumercindo há um pouquinho daquela esperança infantil do mulatinho que tantas vezes vira a mãe subir e descer o morro, anos atrás.

O prefeito ergue o machado desajeitadamente e desfere o golpe sob tensa expectativa. Rompe o cano e espirra lama nas suas caças. E como ameaça chover, retira-se logo, esquecendo-se do discurso patriota e aborrecido pela roupa enlamejada.

Não chega a espirrar água e não há carnaval. A multidão assiste atenta à água suja que jorra, água barrenta que cai, barro molhado que pinga, mais barro, menos água, ainda duas gotas teimosas, barro…

Sem discurso e sem foguetes, a festa chega ao fim e cada um volta ao seu barraco. E do céu escuro, água…

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