domingo, 14 de novembro de 2010

Ingrid Betancourt: "Nem Pablo Escobar foi tratado como eu"

REDAÇÃO ÉPOCA

A vida de Ingrid Betancourt está dividida entre Paris, onde mora o filho, Lorenzo, e Nova York, onde vive a filha, Mélanie. Ela nunca mais morou na Colômbia desde que foi resgatada pelos militares no meio da selva, em julho de 2008, seis anos e meio depois de sequestrada pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Ingrid veio ao Brasil na semana passada para lançar o livro Não há silêncio que não termine, em que narra o sofrimento no cativeiro. Nesta entrevista, Ingrid revela muita mágoa por ter sido acusada de forçar seu sequestro por motivos eleitorais (era candidata à Presidência na época) ou de ter sido mal-agradecida ao pedir indenização ao Estado. “Tenho uma ferida com a Colômbia e preciso de tempo para que ela cure”, afirma.

ENTREVISTA - INGRID BETANCOURT

QUEM É:

Nascida em Bogotá, Ingrid Betancourt Pulecio tem 48 anos. Em processo de divórcio, tem dois filhos: Mélanie, de 25 anos, e Lorenzo, de 22.


O QUE FEZ:

Graduada em ciências políticas, foi deputada e senadora. Em 2002, era candidata à Presidência da Colômbia, quando foi sequestrada pelas Farc.


O QUE PUBLICOU:

Não há silêncio que não termine (Companhia das Letras).


ENTREVISTA:

Qual foi a pior situação que a senhora enfrentou no cativeiro e da qual preferia se esquecer? Samuel Fellipe Vieira Cruz, Fortaleza, CE

Ingrid Betancourt – Há situações das quais não vou falar. Sei que não poderei esquecer delas, mas tampouco quero compartilhá-las. Mas de outras eu posso falar. Entre elas está a morte do meu pai (em 23 de março de 2002, um mês depois de Ingrid ter sido seqüestrada). Soube de uma maneira muito estranha. Chegaram ao acampamento alguns mantimentos envoltos em papel-jornal. E não nos importou que havia verduras frescas, mas sim o jornal, pois era algo para ler. Pedimos aos guerrilheiros se podíamos ficar com o jornal. E a primeira folha que peguei tinha uma foto de um padre com fotógrafos ao redor. Havia muita dor no olhar do padre. Comecei a ler a legenda. Dizia que o sacerdote estava incomodado com a atitude dos jornalistas ao redor do caixão de Gabriel Betancourt. E esse era o nome do meu pai (longa pausa). Foi um pesadelo.

Qual era a maior dificuldade diária no cativeiro? A comida, a higiene pessoal ou o contato com os guerrilheiros? Lara Paiva, Natal, RN

Ingrid – O contato com os guerrilheiros era o mais difícil. Eles tinham um padrão de comportamento. Mudávamos bastante de acampamento. Quando um novo grupo de guardas chegava, ocorria uma espécie de “lua de mel”. Era uma semana em que eles eram amáveis, respeitosos e curiosos por saber quem éramos. Mas muito rapidamente, em questão de dias, o comportamento mudava. Tornavam-se déspotas, violentos. No meu caso, qualquer coisa que eu fizesse podia estar sujeita a uma reação cruel. Quando chegávamos a um novo acampamento, uma das primeiras coisas era esticar uma corda para poder secar as roupas no sol. Lembro que os outros reféns podiam pôr suas cordas onde quisessem. Comigo, um guarda nunca me deixava pôr a corda onde houvesse sol, minha roupa nunca secava direito. Havia crueldades muito piores, claro. Por uns quatro anos me deixaram acorrentada pelo pescoço a uma árvore. E o guarda, se queria tornar minha vida mais difícil, apertava mais a corrente ou a encurtava ao máximo. Aí mal podia falar ou me locomover.

Em alguns casos, reféns criam “laços amorosos” com os sequestradores (a síndrome de estocolmo). Aconteceu com a senhora? Francisco Calado Barros, Fortaleza, CE

Ingrid – Não, por vários fatores. Fui sujeita a muitas humilhações. Chegou um momento em que criei barreiras psicológicas para me proteger. E uma das maneiras para combater a manipulação deles era lembrar a mim mesma e a meus colegas que eles não eram autoridades nem tinham direito de nos sequestrar. E era nosso direito tentar escapar e buscar a liberdade. Essa minha atitude contrastava com a de outros companheiros. Não houve síndrome de estocolmo, mas sim uma necessidade de criar laços de confiança com a guerrilha para obter uma vida mais fácil. E era isso que a guerrilha queria. Ficava claro que alguns prisioneiros recebiam um trato diferencial. Davam-lhes mais espaço, mais comida, medicamentos quando preciso. Não há necessidade de eu apontar quem eram esses prisioneiros.

Nunca tive relação física com outros reféns. Éramos vigiados 24 horas por dia e por muito tempo vivi acorrentada a uma árvore.

A senhora teve alguma relação afetiva com outro refém? Samuel Saraiva, Porto Velho, RO

Ingrid – Nunca tive relação física com outros reféns, simplesmente porque não se podia. Éramos vigiados 24 horas por dia, e por muito tempo eu vivi acorrentada, proibida de falar com meus companheiros. Mas fiz amizades profundas. Até hoje falo com Marc (Gonsalves, americano com quem ela teria tido um relacionamento, segundo outros reféns), Luis Eladio (Pérez, ex-senador colombiano), Pincho (Jhon Pinchao, policial colombiano que fugiu do cativeiro em 2007).

A senhora não acha que tenha sido egoísta ou mal-agradecida quando tentou obter indenização do Estado colombiano por causa de seu sequestro? Gustavo Borghi, São Paulo, SP

Ingrid – As pessoas podem pensar muitas coisas, mas a realidade é diferente e houve muita manipulação. Há uma lei na Colômbia que permite às vítimas de terrorismo pedir indenização ao Estado. Disseram aos colombianos que eu estava atacando a Justiça e os soldados que me libertaram. Outros companheiros se valeram dessa mesma lei, mas não foi notícia. Tentou-se dizer que eu havia sido a responsável pelo meu sequestro, porque isso me faria subir nas pesquisas das eleições presidenciais. E disseram que me haviam prevenido e que o risco foi tomado por minha própria conta, assinando termos de responsabilidade. Nunca apareceram esses papéis. Como candidata, tinha direito de receber escolta, mas me negaram proteção. Essa reação é fruto do medo do governo de ser responsabilizado pelo meu sequestro. Mas fui muito clara: a única responsabilidade pelo meu sequestro foi das Farc. Nem o governo nem ninguém podia prever que as Farc teriam a ousadia de montar um bloqueio numa estrada onde havia militares por todos os lados. Não culpo o governo pelo meu sequestro, mas não aceito que me culpem por ter sido sequestrada.

Sua imagem piorou muito na Colômbia depois da questão da indenização ao Estado. Como o povo reage quando a vê nas ruas? Antonio Alberto Castro, São Paulo, SP
Ingrid – Bem, não caminho pelas ruas da Colômbia. Quando vou à Colômbia, tenho um esquema de segurança muito forte. Fui só quatro vezes para lá desde a minha libertação, sempre sob forte escolta. Desde que fui libertada, as Farc me assinalaram como “objetivo militar”. Na Colômbia houve um apedrejamento público em torno de mim. Foi uma reação muito violenta, que para mim foi muito dolorosa. Acho que nem sequer Pablo Escobar foi tratado como trataram a mim. Nunca vi, nos anos em que ele esteve vivo e depois de sua morte, o ódio, as ofensas, os insultos que se desencadearam contra mim.

A senhora tem ambição de voltar a se candidatar à Presidência de seu país? Carlos Eugênio da Cruz, Londrina, PR

Ingrid – Não tenho aspirações políticas. Para mim, segue sendo muito doloroso que os colombianos possam entender que quis ser sequestrada. Onde está a sensibilidade? Tenho uma dor muito forte com a Colômbia. Uma ferida. Preciso de tempo para que essa ferida cure. Enquanto me sentir assim, não posso voltar à Colômbia para fazer política.

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