domingo, 6 de novembro de 2011

Uma viagem poética rumo à cultura Guarani: Roça Barroca, livro de Josely Vianna Baptista

A poeta e tradutora curitibana Josely Vianna Baptista teve várias motivações para se aventurar pela cultura guarani. “Guardo na memória de infância algumas imagens que provavelmente me levaram a enveredar por aí, como a descoberta de uma comunidade isolada de guaranis numa ilha fluvial ou um velho índio, provavelmente um pajé, que passou uns tempos vendendo ervas que espalhava sobre um pedaço de couro, bem na esquina de minha casa no norte do Paraná. Aquilo representava um mundo de mistérios para mim”, conta. O misto de aventura e enigma resultou, anos depois, no livro Roça Barroca, que chega às livrarias em 14 de dezembro, pela editora Cosac Naify com apoio do Programa Petrobras Cultural.

O livro traz uma configuração pouco usual para o mundo literário: Josely explora sua veia poética ao mesmo tempo em que faz o seu já consagrado trabalho de tradução. Roça Barroca traz três poemas mbyá-guarani, traduzidos pela primeira vez para o português, e poemas originais da autora sobre os povos ameríndios, que promovem um diálogo poético que também resgata história. Os “3 Cantos Sagrados dos Mbyá-Guarani do Guairá”, que compreendem “Os Primitivos Ritos do Colibri”, “A Fonte da Fala” e “A Primeira Terra”, falam sobre a origem do universo, dos homens e dos animais por meio da evocação verbal dos deuses, e são apresentados em edição bilíngue: transliterados para o português e depois traduzidos.

Josely, que é mais conhecida por seu trabalho como tradutora do espanhol – tendo traduzido autores como Allan Pauls e Mario Ballatin –, diz que começou a transposição dos poemas para o português a partir daquela língua. “A partir de uma leitura atenta da tradução para o espanhol feita nos anos 1940 por León Cadogan, e de um estudo da estrutura das palavras em mbyá, primeiro eu fiz uma tradução ultraliteral dos cantos”, recorda.

A pesquisa junto às comunidades indígenas também foi importante. Josely entrou em contato com Teodoro Tupã Alves, ex-cacique e professor na aldeia de Ocoy, em São Miguel do Iguaçu, e uma importante liderança indígena no Paraná. “Teodoro entoou-me os cantos em mbyá e eu os gravei para melhor perceber suas modulações e tessituras sonoras. Nessa viagem a Ocoy, mostrei a ele a tradução que eu havia feito, registrando seus reparos e sugestões em notas que integram o ‘Breve Elucidário’ que a complementa, mas preferindo quase sempre seguir o texto estabelecido por Cadogan e revisto e anotado por Bartomeu Melià”, lembra a tradutora.

Ainda que tenha buscado essas referências indígenas para compor o material de Roça Barroca, Josely Vianna Baptista considera esse um trabalho totalmente autoral: “Nesse livro me vejo essencialmente como poeta. Procuro uma voz que pulse entre a dicção culta e a popular. Busco o ponto de inflexão em que várias perspectivas e linguagens, aqui assumidas como vozes poéticas dialogantes, sintetizam-se em cruzamentos híbridos”. É dessa forma que a poeta compôs a segunda parte do livro, “Moradas Nômades”, com obras de sua autoria que buscam referências no mesmo universo. “É um pequeno gesto para aproximar nossa poesia da poesia ameríndia, um solo onde essas línguas e linguagens dialogam.” (GP)

A COSMOGONIA MBYÁ-GUARANI E A POESIA DE JOSELY VIANNA BAPTISTA

1. O pêndulo instável da tradução poética

A história da crítica literária no Brasil começa de fato no século XIX, principalmente com a discussão sobre o “indianismo”, no contexto do romantismo e seu nacionalismo cultural. Logo depois, seria a vez da discussão sobre a modernidade, ou seja, o modernismo. Já a discussão sobre a tradução poética especificamente, apesar de algumas primeiras incursões acadêmicas, só ganharia densidade e projeção a partir do modernismo tardio que foi o concretismo. É verdade que, então, a discussão também avançara na academia, com aportes de áreas como a linguística, e com o estudo dos grandes nomes da teoria literária do fim do século XIX e do início do XX (europeus e norte-americanos). Teriam em todo caso destaque as proposições de Haroldo de Campos, resumidas no neologismo “transcriação”.

Nesse caso em particular, o foco dos concretos não podia estar mais correto, pois a tradução de poesia no país era como regra amadorística, no bom e no mau sentidos, além de beletrista. Assim, quando o amador era também um verdadeiro amante capaz, podiam-se esperar bons e mesmo magníficos resultados, caso contrário, vendiam-se gatos pardos por lebres brancas, e ficava-se por isso mesmo.

Apesar disso, creio ter havido aqui o velho problema do movimento do pêndulo: pois a fim de vencer a inércia histórica e cultural do amadorismo e do beletrismo tradutórios em poesia, os concretos acabaram por levar o pêndulo para o extremo oposto. O amadorismo resultava, grosso modo, em recuperação semântica, com toda a perda poética advinda, e o beletrismo, em “compromisso moral”, com a imposição de pudores e vezos (inclusive de estilo) do tradutor. Os concretos empurraram então o pêndulo para o lado da reconstrução formal das variáveis poéticas do original. O problema, a meu ver, é que a melhor tradução fica no meio.

Não se trata, naturalmente, do meio termo, mas da rigorosa reconstrução do original em outra língua – muito mais fácil de dizer do que fazer, de reivindicar do que realizar. Tal original não é feito nem de seu âmbito semântico nem de suas relações formais, porém de suas interações e mobilizações formais e semânticas, ou morfossemânticas. É extremamente difícil, e em alguns casos, simplesmente impossível, manter a fidelidade semântica sem trair a fidelidade formal. De modo inverso e complementar, é extremamente difícil recuperar as correlações formais sem trair as relações semânticas. Mas é ainda mais difícil defender hoje uma tradução de poesia que não se meça com as interações morfossemânticas do original. Nem que seja para mensurar o grau de dificuldade em fazê-lo. Voltar à tradução fielmente semântica, mas apenas semanticamente fiel, seria anular a própria consciência moderna das particularidades de linguagem poética em função de uma falsa, porque arbitrária, predominância da comunicação de ideias sobre a comunicação de formas em poesia. Os exageros formalistas em detrimento da fidelidade semântica, que de fato ocorreram após a proposição da “transcriação” concreta, bem como as dificuldades de manter tal fidelidade enquanto se tenta recuperar conjuntamente as correlações formais, não são porém escusas para o abandono da tradução poética de um poema.

A tradução que recupera as relações formais à custa da precisão semântica é, enfim, o espelho invertido da que resgata os campos semânticos ao preço das soluções linguísticas. A posição central do pêndulo, não por acaso, é a vertical, que aponta para a profundidade.

Resta acrescentar que, além da questão pendular, as proposições tradutórias dos concretos tinham algo de reinvenção da roda, necessária para fazer frente ao amadorismo e ao beletrismo de então. Fernando Pessoa traduziu de modo consistente (ainda que pontualmente questionável) a particularmente complexa trama morfossemântica do Corvo de Poe com tanta teoria quanto o Esteves tinha metafísica. Já Machado de Assis, quase à mesma época, fracassou no mesmo poema de maneira retumbante. Uma das causas, em minha opinião, é que Pessoa era um poeta, e Machado, não.

2. A densa floresta dos mitos e a trilha estreita da poesia

Roça barroca, da consagrada poeta e tradutora Josely Vianna Baptista (a sair pela Cosac Naify), reúne em um mesmo volume o mito poético da criação do mundo dos Mbyá-guarani, integrantes do grupo Tupi (“3 cantos sagrados dos Mbyá-Guarani do Guairá”, em apresentação bilíngue guarani-português), e poemas originais da autora, frutos de seu contato com a cultura ameríndia (“Moradas nômades”). O livro traz, ainda, um prefácio de Augusto Roa Bastos, um texto da autora sobre a mitologia guarani e generosas notas às traduções. O resultado é um conjunto de rara beleza poética, para não falar da ainda mais rara oportunidade de entrar em contato direto com textos originais da imemorial tradição oral ameríndia, entre os poucos preservados.

Os “3 cantos sagrados dos Mbyá-Guarani do Guairá” (“Os primitivos ritos do Colibri”, “A fonte da fala” e “A primeira terra”), ao narrar a criação do mundo, dos homens e dos animais pela palavra vivificadora dos deuses, compõem uma estranha e estranhamente bela narrativa poética sintética sobre personagens de sabor arquetípico, que evocam tanto o tempo profundo do mito quanto a profundidade sensível da floresta brasileira. Seu texto é apresentado ao leitor duplamente: em transliteração do guarani para o português e em tradução direta. E é aqui que toda a discussão inicial sobre a tradução poética se torna relevante. Assim como a da natureza dos mitos – ao menos quanto à sua relação com a mesma linguagem poética.

A arte é, no limite, certa autonomização da estética inexistente em outras culturas que não a ocidental moderna. “Etnopoesia”, por sua vez, é na verdade mito em linguagem poética: portanto, mito antes de poesia. A dimensão estética e a linguagem poética estão a serviço de outra coisa, são um meio, não um objeto em si. A ironia é que, do mesmo modo e pelo mesmo motivo que a “etnopoesia” não é de fato poesia, um ocidental moderno não pode ler nela senão poesia. Perde-se o mito, ganha-se a arte.

Mas apenas se a arte, ou seja, a linguagem poética, não for também perdida. A tradução fielmente semântica de um mito oral pouco tem, nesse sentido, de fiel, não apenas porque sua natureza oral explica e determina o uso da linguagem poética, que em suas recorrências morfossemânticas é mnemônica, além de encantatória, como tais recorrências acabam por codeterminar, dialogicamente, o próprio campo semântico original, feito de evocações e repetições, além de eventuais incoerências narrativas (encontráveis tanto nos textos homéricos – os conhecidos “cochilos de Homero” – quanto na Bíblia). Isso para não falar do mecanismo das “simpatias”, característico do “pensamento mágico”, que não é movido ou estruturado pelas relações de causa e efeito do pensamento lógico-racional, mas por relações de semelhança. Neste caso, não existe separação entre semântico e formal, ou entre forma e sentido, ou melhor, entre forma e substância, ou forma e “essência”, mas ao contrário: as formas são manifestações sensíveis necessárias das substâncias, que portanto dão a conhecer. Na verdade, existem para dá-las a conhecer. Isso se aplica aos bonecos do vodu e à “medicina” tradicional chinesa (em que o pó de chifres de rinoceronte, por exemplo, é usado contra a impotência), mas também à onomástica tupi-guarani. No caso particular dos mitos cosmogônicos mbyá-guarani traduzidos por Josely Vianna Baptista em Roça barroca, há mesmo uma clara dimensão metalinguística, explicitada, por exemplo, na nota ao título do segundo mito, Ayvu rapyta, “A fonte da fala”:

Neste canto, o deus supremo vai desdobrando de si o fulgor do fogo e a neblina que dá vida, a fonte do amor e do som sagrado. Faz a fonte da fala aflorar de si e fluir por seu corpo, tornando-a sagrada, palavra-alma de origem divina. Desdobra de si os homens e as mulheres que iriam refletir sua divindade, Ñamandu de Grande Coração, Karaí, Jakaira e Tupã, “pais e mães verdadeiros” da palavra inspirada que insuflará a alma em seus numerosos filhos futuros.

A tradução fielmente semântica e apenas fielmente semântica de tais mitos, afinal, pouco tem de fiel ao “espírito” (e aos espíritos...) de seu texto (que são, na verdade, nomes). Daí o trabalho de reconstrução morfossemântica de Josely Vianna Baptista, que incluiu a regravação in loco dos mitopoemas a partir de declamações de integrantes dos Mbyá-guarani, para auscultar a tessitura sonora, os ritmos e os timbres originais.

Do mito e da tradução poéticos para a poesia que traduz, senão os mitos, a sua ambiência: a segunda parte do livro, “Moradas nômades”, reúne poemas que fundem, integram e confundem o mais arcaico e o mais contemporâneo. A densa e densamente bela linguagem poética de Josely Vianna Baptista se volta para cenas e cenários do Brasil colônia, da mata brasileira, da vida na mata, de histórias antigas e de memórias profundas, tensionando e tocando a corda sutil das relações entre a língua portuguesa e a cultura ameríndia, o moderno e o atemporal, o ocidental e o “outro”.

carunchos e cupins roem,
vorazes, a choupana de ripas

pendem do esteio ramos de trigo,
feito amuleto para celeiros cheios;
tachos esfarelam crostas de grãos moídos
e redes balançam seus esgarços,
perto do chão onde uma nódoa preta
mostra o antigo fogo

tudo abandono, e, no entanto,
lá fora o pomar semeado
para os que agora cruzam
(trouxas vazias), um
por um, os onze mil
guapuruvus


O poema acima, homônimo da segunda parte do livro, dialoga diretamente com um dos mitos fundamentais (em mais de um sentido) dos Guarani, o da “Terra sem mal”, misto de território mítico-paradisíaco e conceito pragmático de um povo seminômade. Em suas migrações pela mata, as tribos contavam, para sobreviver, com a solidariedade genérica e apriorística entre os vários grupos, que num contexto cultural no qual inexistiam as comunicações à distância, bem como o planejamento sistemático das mudanças tribais, mantinham o costume de semear parte do terreiro ao deixar para trás algum local de ocupação temporária. Paradoxalmente, a “Terra sem mal” é um lugar intacto, e portanto, jamais semeado, mesmo porque não precisa sê-lo, pois lá não há fome. A discussão histórico-antropológica sobre a “Terra sem mal” (que Josely Vianna Baptista sintetiza em um dos textos do volume, “Em busca do tempo dos longos sóis eternos”), aponta possíveis ou prováveis influências do mito paradisíaco judaico-cristão senão na origem do mito guarani, em sua evolução a partir do século XVI. Seja como for, sua ideia, seu conceito e sua mística se integram às demandas pragmáticas de uma vida seminômade como força impulsionadora de migrações tão necessárias quanto trabalhosas e arriscadas, pois tudo ou quase tudo tinha de ser provido e providenciado on the road. Daí a cena do poema, que antepõe com sintética beleza o contraste entre o abandono realizado – “carunchos e cupins roem, / vorazes, a choupana de ripas” – e a vitalidade em potência – “e, no entanto, / lá fora o pomar semeado / para os que agora cruzam / (trouxas vazias), um / por um, os onze mil / guapuruvus”.

Roça barroca representa ou possibilita uma síntese afortunada do trabalho poético-literário de Josely Vianna Baptista. Pois reúne a poeta e a tradutora em um mesmo volume, um mesmo corpus, em que o domínio da linguagem poética é posto a serviço da tradução, enquanto o trabalho tradutório e a convivência com a cultura ameríndia (incluindo as visitas a aldeias e as gravações de versões orais diretas dos mitos) alimentam e informam seus novos poemas, num diálogo mitopoético de ressonâncias realmente raras (principalmente em meio a tão comuns reivindicações de “multiculturalismo” – ou coisa semelhante).


Luis Dolhnikoff


Rugendas, Desmatamento, 1835. Ao fundo, foto de Guillermo Sequera (arte: Gui Zamoner)

Título: Roça barroca
Autor: Josely Vianna Baptista
Editora: Cosac Naify
Apresentação: Augusto Roa Bastos
Foto da capa: Miguel Rio Branco
Apoio: Petrobras Cultural

Nota sobre a autora de Roça barroca

Josely Vianna Baptista (Curitiba, 1957) é autora de Ar (Iluminuras, 1991), Corpografia(Iluminuras, 1992; com arte visual de Francisco Faria), Outro (Mirabilia, 2001, em colaboração com Maria Angela Biscaia e Arnaldo Antunes), A Concha das Mil Coisas Maravilhosas do Velho Caramujo (Mirabilia, 2001; ilustrado por Guilherme Zamoner; ganhador do VI Prémio Internacional del Libro Ilustrado Infantil y Juvenil do Governo do México em 2002), Musa paradisiaca: antologia da página de cultura 1995/2000 (em colaboração com. F. Faria; Mirabilia, 2004) e Sol sobre nuvens (Perspectiva, 2002; apresentação de Augusto de Campos [Signos 43]), entre outros.

Uma coletânea de seus poemas, On the shining screen of the eyelids, foi premiada em 2001 pelo CreativeWorks Fund, de San Francisco, EUA, e publicada em 2003 por Manifest Press, em tradução de Chris Daniels. Em 2002, a Editorial Aldus lançou no México Los poros floridos (edição bilíngüe, com arte de F. Faria e tradução de Reynaldo Jiménez e Roberto Echavarren). Em 2006, Florid pores foi publicado na íntegra em 1913: a journal of forms (San Francisco, 1913 Press; tradução de Chris Daniels e Regina Alfarano). Participou de antologias publicadas no México, Peru, Argentina, Estados Unidos, Cuba, França, Paraguai, Colômbia, Equador, Espanha, Austrália e Bélgica. As mais recentes são The Oxford Book of Latin American Poetry, que cobre 500 anos da poesia do continente, indo de escritos maias anônimos do século XVII aos dias atuais, e na qual é a única representante brasileira de sua geração (Nova York, Oxford University Press. Org. Livon-Grosman e Cecilia Vicuña, 2009), e a antologia de poesia brasileira organizada por Flora Süssekind para o Festival Europalia, na Bélgica (2011).

Vem realizando um trabalho constante de tradução e divulgação de importantes escritores hispano-americanos, tendo integrado o corpo de tradutores das Obras completasde Jorge Luis Borges (Globo), recebendo o Prêmio Jabuti de Tradução de 1999. Com apoio do Consejo Nacional para la Cultura y las Artes do Governo do México, traduziu e editou o livroRastros de luz, de Coral Bracho (Mirabilia/Olavobras, 2004).

Vem participando, como poeta convidada, de diversas exposições do artista plástico Francisco Faria no Brasil e no exterior. As mostras mais recentes foram “Significado da paisagem das Américas” (Curitiba, Museu Oscar Niemeyer/São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, 2005), da qual participou também o poeta Luis Dolhnikoff, e Francisco Faria – Desenhos (Rio de Janeiro, Largo das Artes, 2009).



0 comentários :

Postar um comentário

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | belt buckles