domingo, 16 de outubro de 2011

WILSON RIO APA: Perguntem ao Rio

O velho hippie quer nos falar. Há duas décadas ele mora num canto do litoral batizado de Vale da Utopia, na Praia da Pinheira, em Santa Catarina. De origem aristocrática, ainda jovem escolheu o mar e literatura. E aqui deixa seu testamento


Filho de juiz e advogado graduado pela UFPR, Wilson vinha de berço esplêndido – como não deixava mentir o “Rio Apa” cravado na certidão de nascimento, espécie de condecoração recebida por seus antepassados que lutaram na Guerra do Paraguai.

Ao mesmo tempo que “um herói republicano”, era ele o sujeito que abandonara a vida ganha para ser marinheiro pelo mundo, cumprindo nos navios as funções mais rasteiras. E também o jornalista soberbo que relatara na imprensa local sua aventura nos cinco continentes, acertando o queixo da Curitiba que crescia acanhada às margens do Rio Água Verde e do Rio Ivo.

Por essas e outras, tinham-no por um anarquista, um soviet, um beatnik, um doidinho da XV ou, com o alvorada do flower power, um hippie. Talvez tenha sido esse o papel pelo qual foi mais identificado. Pudera. Em 1967, exato ano em que os americanos deixaram os cabelos crescerem e desbotaram suas roupas num tanque de água sanitária, Rio Apa criou em Antonina uma comunidade, digamos, anarco-teatral. Seus feitos artísticos, se comparados, fariam dos Novos Baianos um acampamento de colegiais em férias.

Um dos moradores da casa antoninense – para citar um dos bambas que foram de mochila para lá – era Cristóvão Tezza, que viria a se tornar o maior expoente da literatura brasileira dos últimos tempos. Ao lado de Wilson – cuidado pela bela Esther, a catarinense de origem dinamarquesa com quem teve três filhos [Kim, Thor e Wahine] – aqueles jovens tiraram o teatro dos palcos e se misturaram à comunidade caiçara. Anos depois, a experiência se repetiu em lugares como a Lagoa da Conceição, em Florianópolis, chegando à Praia da Pinheira, em Palhoça, onde há pouco mais de duas décadas os Apa desembarcaram para ficar.

O saldo do mais de meio século em que o autor perambulou pelo Sul é de 40 peças e outros escritos – seis delas nos últimos tempos. Agora, Rio Apa descansa, como diz. Esther e a filha Wahine morreram. Aos 86 anos – restabelecendo-se de um câncer na garganta – ele escanteia o cansaço para dar cabo a seu último escrito, numa máquina de escrever. A voz sai como um fio d’água, mas não se engane. Rio continua encontrando o mar.

Abaixo, trecho da entrevista dada à Gazeta do Povo na casa de Apa, em Santa Catarina.

Rio Apa por Rio Apa.

Sou um escravo do idealismo. O idealismo é uma força moral que nos impõe princípios. É um impulso. E meus impulsos me levaram para fora da cidade grande e de seu modo de vida. Essa busca me tomou por inteiro. Queria fazer coisas fortes. Hoje eu descanso.

Como foi sua fuga?

Me tornei marinheiro logo que me formei em Direito. Fiquei um ano no mar. Conheci 46 países. Escrevi uma série de 52 longas reportagens [para o jornal O Estado do Paraná] na tentativa de uma grande síntese. Eu tinha ânsia...

Me incomodava a cidade e seus absurdos. Era fora de propósito. Não quis saber mais. Eu realmente não sei como vocês aguentam. Entre os caminhos perigosos da grande cidade e os caminhos perigosos do mar, preferi o mar. Fui para um barco e para onde ele me levasse.

Deixou alguma coisa para trás?

Fui naturalmente, sem âncoras.

Nunca mais desejei viver de outra maneira. Aos poucos, aquietei o desejo de aventura. Vivi com calma, sem enganos. Era esse o meu fazer.

Na década de 60, Wilson Rio Apa era chamado de “hippie chique” e era criticado até em editoriais de jornais por suas posições. Na juventude, qual sua relação com o poder?

Recusei o poder. Para mim, o poder tinha um sentido do “viver não próprio”. Havia a busca da individualidade, essa atitude feroz que nos afasta das coisas das quais não gostamos. Continuo vivendo da mesma maneira – não aceitando o poder como forma do mando de um outro. É terrível. Por que a humanidade se submete?

Embora um anarquista, o senhor foi tomado como um homem de esquerda. Qual o lado de Apa? Decepcionou-se com a política?

A política não me interessa. Me afastei dela sem mais, indo parar em ilhas, barcos e praias. Eu vivi dessa forma porque o anarquismo tem a força de um ideal. Me deixou livre dos partidos, me deu independência, me deixou sem patrão e sem dono. O anarquismo também existe dentro de mim. Não sou como os velhos anarquistas que se iludem com a possibilidade da total liberdade de ação. Não há como escapar das imposições da vida. Já encontrei um grupo que queria viver de luz. Não dá [risos].


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A liberdade segundo Wilson Rio Apa.

Que ela seja plena. Se não for assim, não faz sentido. Mas a liberdade plena não é possível. É uma ilusão. E as ilusões nos causam frustrações. Estamos programados organicamente. Sou obrigado a comer, a beber, a criar. A dar respostas. Não há livre arbítrio. Não podemos nos enganar. Viver em liberdade tem um sentido bem diferente de todo esse “mando geral” que existe por aí. Estamos num processo de desfiguração da vida.

Seus autores...

Krishnamurti me fez revelações. Aldous Huxley me pesou. Krishnamurti vivia com liberdade e significação. Mas leio o Aldous Huxley e ele toma conta de mim. E George Orwell sempre me tocou muito.

Continua lendo e escrevendo?

Um pouquinho. Escrevi seis peças, uma delas de forma galopante. Se não desse conta, ela me levaria. [Chama-se A Última Vontade, diz o filho Kim]. Continuei escrevendo até onde as condições me permitiram. Até ver que minha capacidade estava se esgotando. Senti cansaço, uma saturação.

Quanto a ler, lia tudo. Hoje não tenho mais vontade de ler. Depois dessa experiência galopante de escrever perdi a vontade de ler.

Mas pensa.

Também não estou pensando muito [risos]. Ando é sonhando demais. Sonho solucionar problemas. Me pergunto, por exemplo, por que me tornei um crente? Eu sou um cara que acredita. Também estou fazendo uma revisão dos meus princípios de teatro. Cheguei a sonhar que estava dirigindo uma peça novamente, corrigindo os erros que cometi [risos].

O senhor ainda se sente fazendo teatro de alguma forma?

A gente nem sempre percebe a representação que faz. Falta-nos a consciência da aparência do mundo e da aparência de si mesmo. Essa questão transcende todo o cenário. Ao entender que sempre representamos ganhamos independência. Por causa da minha independência eu ainda represento. Não posso viver sem representar. Não tenho problema nenhum em dizer isso porque sei que é próprio do ser humano arrumar um modo de extravasar sua realidade. Da pretensa realidade, aliás. O real e o irreal são dois lados de uma mesma composição. Moramos nessa duplicidade.

Qual seu legado para o teatro?

Eu tinha uma maneira própria de fazer teatro. Era teatro do povo, da catarse, teatro grego. Teatro hindu. Teatro. Se existe um teatro brasileiro, não sei qual é. Ele é destituído de sentido. Falta ao teatro feito no país a experiência da própria realidade. Eu tive a sorte e a coragem de viver aqui em meio à expressão da própria natureza que me cerca. A natureza é um cenário que me impõe limites...

“Cortaram sua cabeça” nos tempos da comunidade de Antonina [risos]?

Eu mesmo cortei minha cabeça. O movimento em Antonina foi muito intenso. Lá terminei Os Vivos e os Mortos. Eu vivia e não ligava para os outros. Fazia o que gostava: carnaval, cultura, arte... Embora jogador medíocre e perna de pau nos tempos da faculdade, mexi com futebol. Cheguei a ser técnico do Guará. E como tudo isso para mim era importante, fui levado ao excesso. Saturei Antonina. An­­tonina não me aguentou mais, como de resto os outros locais onde vivi. O excesso me levava a esperar um ponto culminante, que nunca chegava. Restava abandonar.

Os Vivos e os Mortos trata da mitologia caiçara. Como nasceu essa obra?

Da minha convivência nas colônias de pesca, onde encontrava os mitos ainda vivos. É assim desde a manhã, quando eles saem de barco. Os pescadores nascem com reverência às próprias tradições. Há ali uma cultura da verdade, sem engano ou segundas intenções. Isso me chegava de uma maneira artística. Eu atualizava o que os pescadores me diziam e fazia remendos das falas deles com o passado da humanidade. Senti muita atração pelo mundo caiçara e admito que não encontrei outro livro que tenha descrito esse mundo de uma forma tão forte e tão atraente como o meu. É uma cultura que se perde, uma pena.

Bate pronto: Dinheiro.

Nunca tive problema com dinheiro. Me destaquei escrevendo.

Drogas.

As comunidades alternativas tinham relação com drogas, mas eu não. Vejo como alienação. Não tem sentido existencial.

Alienação.

Nasce do excesso. De o excesso de tecnologia. Eu acho que esse negócio está fora da maneira de ser do homem.

Mulheres.

Passei por elas e elas por mim. E tive muita sorte, tive uma mulher [Esther].

O Direito.

Não me liguei ao Direito. Não tinha sentido. Minha aventura era outra.

Um lugar.

O Japão. Estive lá em 1954. Cito esse lugar sem consideração de bem ou mal. A maneira de viver dos japoneses me tocava. Eles preservaram seu mundo vivendo num cenário de destruição.

Curitiba?

Não gosto mais. Para mim vida é isso aqui, essa calma, esse mar. Fora disso não há um viver próprio. Nós estamos sempre representando, não é?

Literatura brasileira.

Superficial. Gosto dos russos e dos alemães.

Erros.

Ter vivido num barco quando meus filhos ainda eram pequenos. Eu naufraguei nos Abrolhos. Tinha incapacidade como navegador. Se tivesse morrido, as consequências cairiam sobre minha mulher e meus filhos.

O que ainda lhe falta?

Pouca coisa. Um enterro de pirata, um Monólogo de uma Alma Penada, no qual exponho pensamentos sobre a sobrevivência. O que a gente pode dizer sobre a nossa última vontade?

Podemos falar do fim da vida?

Não há fim. Há uma composição de elementos. Faço parte do todo universal. Digo isso sem problema nenhum.

Algo mais a ser dito?

Não. Foi dito quase tudo. (GP)


DOCUMENTÁRIO:

VALE DA UTOPIA:

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