quinta-feira, 21 de julho de 2011

Vetos da família impedem 7 mil transplantes por ano

Por dia, em média quatro famílias brasileiras se recusaram a autorizar a doação de órgãos de parentes diagnosticados com morte cerebral nos últimos dez anos. Por causa da negativa, os órgãos de 14,2 mil pessoas deixaram de ser aproveitados nesse período – o equivalente a um terço da fila nacional de espera, que soma hoje 48 mil. Os números são de um balanço da Asso­ciação Brasileira de Trans­­plante de Órgãos (ABTO). Por lei, apenas a família pode autorizar a doação e o diagnóstico de morte encefálica é fundamental para transformar alguém em potencial doador. Levando-se em conta a possibilidade de extrair, em média, cinco órgãos (pulmão, rim, fígado, pâncreas e coração, por exemplo) de cada doador, o número de procedimentos não realizados no país entre 2001 e 2010 chega a cerca de 70 mil. No Paraná, foram 998 “nãos” no mesmo período, uma média de 100 negativas anuais que impediram até 500 transplantes por ano. Embora seja difícil afirmar que a fila de espera zeraria caso essas 70 mil cirurgias fossem feitas – há transplantes mais procurados do que outros e é necessário haver compatibilidade –, não há dúvida de que haveria muitos beneficiados. “O número de beneficiados diretos no Brasil em 2010 girou em torno de 2,5 para cada doador, mas os indiretos [doação de tecidos e osso, por exemplo] podem chegar a centenas”, diz o médico Tadeu Thomé, membro da ABTO.


Medo da morte

O que leva alguém a negar um gesto recomendado por médicos, estimulado pela sociedade e amplamente divulgado pela mídia? Para o coordenador do Programa de Transplante Hepá­­tico do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, Júlio Cézar Uili Coelho, o principal entrave remete a uma questão universal: o medo da morte e a resistência em conversar sobre o assunto, o que acaba impedindo que as famílias conheçam a vontade do possível doador.

“Imagine um jovem que chega aos pais e diz que quer doar seus órgãos caso venha a falecer. Os pais certamente vão reprimi-lo por ser jovem e ficar abordando um tema como esse. As pessoas se esquecem que a morte faz parte da vida”, explica. “Logo, se não há liberdade para falar sobre isso, e muitos não deixam claro esse desejo, caso a família não seja favorável à prática, não vai autorizar a doação”, completa.

Deixar clara a vontade é mais importante do que se pensa, de acordo com estudo publicado em 2007 pela Universidade de Cleveland (EUA). O estudo apontou que, quando a família conhecia o desejo do possível doador em vida, as chances de a doação ser autorizada eram 6,9 vezes maiores em comparação com aquelas que desconheciam tal aval. Um estudo realizado pela Universidade de São Paulo com adolescentes em 2006 revelou que 60% não autorizariam a doação se não tivessem conversado com a pessoa sobre o assunto. “Este é um tema importante que não pode deixar de ser discutido”, diz Coelho.

Falta de diálogo

Outra razão é a falta de informação, principalmente sobre como é feito o diagnóstico de morte cerebral. Um procedimento complexo que, de acordo com especialistas, causa uma série de dúvidas e medos nos familiares. “Muitos não entendem como a pessoa pode estar morta se o coração ainda bate, se há respiração. Na dúvida, dizem não, embora o procedimento seja totalmente seguro”, relata o neurocirurgião Adriano Maeda, responsável pela abordagem de famílias de potenciais doadores no Hospital Cajuru, de Curitiba.

A falta de diálogo entre familiares e médicos intensivistas, que poderiam explicar melhor o procedimento, contribui para o problema. Muitos sequer sabem que o diagnóstico está sendo feito e, de repente, se deparam com a notícia da morte. Isso assusta e distancia, de acordo com a coordenadora da Central de Transplantes do Paraná, Arlene Badoch: “O acolhimento familiar é hoje o principal desafio dos hospitais em todo o país. Muitas vezes, a família nem sabe o que está acontecendo, e o mau atendimento gera revolta. Após isso, é difícil receber um sim”.

Palavra final é da família, diz a lei

Quem deve decidir sobre o destino de seus órgãos após a morte? A resposta a essa pergunta tem suscitado polêmicas, em maior ou menor grau, desde que o primeiro transplante a partir de um cadáver foi realizado no país, nos anos 60. Atualmente, a Lei 10.211, que com­­pleta 10 anos nesse ano, determina que cabe à família – pais, cônjuge, filhos com mais de 18 anos ou, na ausência desses, parentes de até segundo grau – dar a au­­torização. O que gera controvérsias é a possibilidade de o parente não respeitar a decisão do que faleceu, seja a favor ou contra a doação.

Nesse caso, duas alternativas são frequentemente sugeridas por especialistas da área: o consentimento presumido e o registro da decisão de doar em cartório. No primeiro caso, se a pessoa não ex­­pressar claramente que é contra a doação, entraria automaticamente para o rol de doadores. No segundo caso, garantiria o ato mesmo se a família fosse contra.

O pneumologista Luiz Felipe Mendes, responsável pela abordagem familiar no Hospital Evangélico de Curitiba, é contra as duas ideias e defende a manutenção da atual legislação. Ele, que atua na área desde 1997, lembra o pavor que tomou conta da população quando, no mesmo ano, a doação presumida vigorou por alguns meses. Houve uma corrida aos cartórios para deixar registrado o termo “não é doador de órgãos” nos documentos pessoais.

Se em países como Espanha e Áustria o dispositivo vingou, aqui, naquele ano, o número de doações despencou. O temor era de que equipes médicas não se esforçariam para salvar a vida de doadores, além do medo do tráfico de órgãos, situações que, embora improváveis, ainda hoje causam receio na população.

A outra opção também é rechaçada por Mendes. “Se a família não quiser, mesmo que o doador tenha registrado vontade contrária, o recomendável é não realizar. Esse é um momento delicado, e não caberia ao hospital ir contra o desejo da família”. (GP)

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