domingo, 24 de julho de 2011

Tesouros ocultos: Ukiyo-e ("pinturas do mundo flutuante" ou "da vida que passa

Ukiyo-e são estampas coloridas feitas a partir da impressão de blocos de madeira com tinta à base de água. Trata-se de uma técnica e estilo desenvolvidos durante o período Edo (1603-1868), lugar escolhido pelos samurais da casa Tokugawa para ali fixar seu xogunato. Tóquio naquela época era apenas a capital administrativa que atraía comerciantes devido à presença periódica da aristocracia guerreira. Com a urbanização do final do século 16, surge assim uma classe de comerciantes e artesãos ao redor de Edo (atual Tóquio) que começaram a escrever e gravar histórias compiladas em livros chamados "ehon" ("livro-pintura").

O Ukiyo-e inicialmente surgiu dessas ilustrações, mas logo as imagens se tornaram independentes como cartazes do teatro kabuki ou como calendários, por exemplo. Muitas delas foram baseadas na vida urbana e seu caráter é essencialmente popular, pois nunca foram valorizadas como autênticas obras de arte pela elite, que apreciava sobretudo o que se produzia em Kioto, residência do imperador até a restauração Meiji. Pelo fato de poderem ser reproduzidas, essas obras poderiam ser adquiridas pela classe menos abastada.

O significado da palavra Ukiyo-e ("pinturas do mundo flutuante" ou "da vida que passa", em japonês) retrata um momento em que se celebra a vida em um período de paz após uma série de guerras que assolaram o país entre o século 12 e 15. Essa celebração da vida em seu aspecto fugaz curiosamente tem seu contraponto na Europa com a arte holandesa, que muitas vezes retrata a vanitas, as naturezas-mortas, e que também registram o tempo volátil que tudo transforma.

Nesse período, o comércio com o exterior se centralizava nas mãos dos holandeses após a expulsão de portugueses e espanhóis, suspeitos de tentativa de dominação política através da religião cristã. Como afirma Madalena Hashimoto, grande especialista no assunto: "O artista Hokusai estuda métodos ocidentais com os holandeses, únicos ocidentais cuja presença é permitida, confinados na ilha artificial de Deshima em Nagasaki após o século 16 (...) a xilogravura assimila o Ocidente por meio da Holanda, não só na perspectiva com ponto de fuga e no claro-escuro, mas também no interesse minucioso, enciclopédico, com que se descrevem atividades humanas, flores pássaros, plantas, insetos, tecidos, penteados, fantasmas, monstros".

A origem dessa técnica é atribuída às obras monocromáticas de Hishikawa Moronobu na década de 1670, posteriormente foi aprimorada por Suzuki Harunobu, que criou a impressão policrômica (Nishiki-e, em torno de 1765). Ao longo de 200 anos, destacam-se três fases: no início, utilizava-se apenas tinta preta, em seguida acrescenta-se uma ou duas matrizes de cores até surgir a policromia. A temática envolve temas como cortesãs e os atores de kabuki, e em seguida surgem as vistas famosas. Muitas imagens tinham uma finalidade educativa e uniam o belo ao útil. O desenho é talhado e pintado em blocos de madeira e, depois, passado para o papel de arroz. Em sua última fase, essa técnica alcançou o seu maior nível de aprimoramento, ganhando riqueza nos traços e equilíbrio na combinação das cores.

Durante a era Kaei (1848-1854), muitos navios mercantes estrangeiros desembarcaram no Japão. Segundo Claudio Mubarac "as estampas chegaram à Europa como peças comerciais, tanto quanto as cerâmicas, os tecidos, etc., na voga dos orientalismos e do japonismo mais especificamente". Depois da restauração Meiji, em 1868, o Japão absorveu do Ocidente novas técnicas como fotografia e a impressão mecânica.

Aluísio Azevedo em seu livro inacabado sobre o Japão (1897) lamenta a ocidentalização advinda da abertura dos portos e a consequente perda da cultura tradicional. Paradoxalmente, quando o ukiyo-e saiu de moda durante o bunmei-kaika transformou-se numa fonte permanente de inspiração para artistas europeus como Manet, Toulouse-Lautrec, Van Gogh, Matisse. A sutileza do traçado, a riqueza e autonomia cromática dessas gravuras de fato ampliaram os horizontes dos impressionistas, abrindo as portas para uma arte na qual o jogo permanente entre o desenho e a cor pautados na superfície do papel demarca a passagem para a arte moderna.

Embora os artistas da última fase como Hokusai ou Hiroshige sejam os mais populares, e são ensinados na escola primária como grandes artistas, as lojas que ainda vendem essas obras são frequentadas apenas por estrangeiros. Nishiharu é a loja mais antiga de Kioto, com 90 anos de existência. Ao contrário de outras lojas importantes como a Ezoshi, com 30 anos, e a Yoshikiri, de 23 anos, este lugar preserva um universo intimista sem vitrines em seu interior, recoberto por tatami e rodeado por caixas de madeira para guardar as gravuras.

Todos os dias, das 14 às 19 horas, o senhor Hitoshi Sekigawa alterna com seu filho Shiyo, a condução desse negócio familiar. Harukichi Nishimura, o patriarca, faleceu há 20 anos, e o nome da loja Nishiharu é uma variação do sobrenome haru (primavera), mura (vila), nishi, (oeste). Os negócios não andam muito bem desde o último terremoto e tsunami, no início de março, pois muitos turistas adiaram a viagem. Contudo, ele afirma que nada se compara à década de 80, quando tudo no Japão era, de fato, muito caro. Embora seja possível comprar um simples Ukiyo-e original por R$ 200, de maneira geral os japoneses consideram de antemão que o preço é exorbitante, logo, acham que esse tipo de obra deve estar guardado em um museu.

Durante todo o verão ocorre uma grande exposição de Ukiyo-e em Kyoto, com uma coleção exclusiva vinda de Hamburgo, e é possível comprar reproduções atuais totalmente artificiais a um preço bem mais caro do que esses originais mais simples ainda disponíveis nas antigas lojas. Por outro lado, os colecionadores japoneses que raramente aparecem buscam obras cada vez mais difíceis de serem encontradas. Por serem muito sensíveis à luz e à umidade, essas obras estão cada vez mais difíceis de serem encontradas. No século 20, alguns expoentes como Hasui Kawase e Ito Shinsui tentaram manter viva essa técnica. Contudo, com a profusão de mangás muitos populares, que adaptam e às vezes diluem essa enorme tradição à linguagem dos quadrinhos ocidentais, seu espírito parece se recolher para o interior de pequenas lojas como a Nishiharu, agora rodeada por uma imensa galeria comercial chamada Teramachi, onde o corre-corre do dia a dia impede que os transeuntes prestem atenção nesse pequeno tesouro.



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