sábado, 25 de junho de 2011

Jacob Gorender: Marxismo Sem Utopia -Editora Ática

Armando Boito Jr. e Caio Navarro de Toledo (professores do Departamento de
Ciência Política da Unicamp).

I. Este novo livro de Jacob Gorender articula uma grande massa de dados sobre a
economia e a sociedade capitalista neste final de século XX, desenvolve discussões e teses
relevantes e polêmicas e apoia-se numa bibliografia atualizada. Em inúmeras questões
abordadas, o autor tem ainda o mérito de retomar o debate do problema na história do
pensamento marxista e de confrontar esse “estado da arte” com a situação do capitalismo
contemporâneo. Trata-se de leitura importante para todos os marxistas, intelectuais e
militantes socialistas.

O livro está dividido em três partes.

Na primeira, Gorender faz um balanço crítico da teoria marxista, centrado nas teses
referentes à teoria da história e à transição ao socialismo. Critica a visão teleológica da
história e defende o papel do acaso na transformação social, examina as diferenças entre a
transição ao capitalismo e a transição ao socialismo, critica a atribuição de uma missão
histórica ao proletariado e sustenta a impossibilidade de extinção do Estado. Esse balanço
da teoria tem o objetivo de extirpar o que, para ele, seriam os componentes utópicos do
pensamento de Marx e dos clássicos do marxismo.

Na segunda parte, faz um balanço da história do século XX. Examina a experiência
da Revolução Russa, o modelo soviético sob Stálin - modelo que ele considera socialista
("socialismo de Estado”) - e analisa as transformações do capitalismo no final deste século.
Defende a excepcionalidade da conjuntura russa de 1917 e da revolução que dela se
originou. Sustenta que o capitalismo no pós-Segunda Guerra teria se transformado num
ultra-imperialismo, que praticamente eliminaria a possibilidade de guerra entre as potências
imperialistas.

Na terceira parte, examina as condições atuais da luta pelo socialismo e discute as
características que deverão assumir a revolução socialista e a construção do socialismo.
Nesta parte, defende outras tantas teses polêmicas. Considera que o operariado é
“ontologicamente reformista” e atribui à “classe dos assalariados intelectuais” o papel de
vanguarda na luta pelo socialismo. Sustenta que o Estado, o mercado e a divisão entre168
trabalho manual e trabalho intelectual deverão permanecer na sociedade socialistacomunista.
Acreditamos que, com o resumo acima, oferecemos ao leitor uma idéia geral e
sumária do livro de Gorender. Sendo impossível discutir, no espaço de uma resenha, as
principais idéias expostas no livro, pretendemos aqui polemizar particularmente com
aquelas teses referentes à transição ao socialismo.

II. Ao se perguntar sobre o agente social que teria interesse e capacidade política para
romper com o capitalismo na direção de uma sociedade socialista, sem dominação e
exploração de classe, Gorender descarta a classe operária na medida em que a experiência
histórica teria demonstrado ser ela “ontologicamente reformista”. Certamente há aqueles
que, rejeitando a tese de Gorender, consideram que a classe operária ou a “classe
trabalhadora” seria, ao contrário, “ontologicamente revolucionária”. Embora essa
formulação se oponha à de nosso autor, no fundo, ela permanece ainda no mesmo terreno
teórico da tese criticada. Nós entendemos, porém, que do ponto de vista das categorias
históricas e dialéticas do marxismo, o equívoco de Gorender – e de alguns de seus críticos -
é mais profundo. Ele reside na própria utilização da noção de ontologia uma noção
carregada de essencialismo e comprometida filosoficamente com a metafísica.

Na perspectiva materialista, uma classe social é definida tanto pela sua inserção nas
relações de produção, quanto por sua constituição efetiva num coletivo que trava lutas
concretas, dentro de um sistema de relações de classe e num período histórico determinado.
Neste sentido, a posição reformista ou revolucionária do proletariado deve ser determinada
tendo em vista a sua situação concreta numa formação social e num período histórico
específicos. Lenin considerava que o proletariado tendia espontaneamente para o
reformismo mas, ao mesmo tempo, salientava que as condições objetivas – por exemplo,
uma “crise revolucionária” – e a atuação da vanguarda revolucionária poderiam converter a
classe operária na força dirigente da revolução socialista. De resto, o leitor também poderá
se perguntar: como combinar o essencialismo da noção de ontologia com a promessa,
anunciada pelo autor na primeira parte do seu livro, de introduzir o “princípio da incerteza”
no processo histórico? Gorender entende ser fundamental a crítica da “visão teleológica da
história” que estaria presente nos clássicos do marxismo; no entanto, acreditamos que a
idéia leninista de uma conjuntura singular, como pré-condição da ação revolucionária do169
proletariado, é mais compatível com uma visão relativamente aberta do processo histórico
do que aquelas perspectivas teóricas que se utilizam de noções essencialistas para
compreender a prática social da classe operária.

Quando sustenta a impossibilidade do proletariado dirigir a revolução socialista,
Gorender faz um balanço das posições de Marx e de Engels sobre o tema, e analisa também
o que seria a crescente diferenciação no universo do trabalho assalariado e o declínio
numérico do proletariado industrial no capitalismo contemporâneo. Convém advertir que
esse percurso, a rigor, seria, da perspectiva ontolológica do autor, perfeitamente
dispensável: se o proletariado é “ontologicamente reformista”, desnecessário se torna lançar
mão de mudanças recentes do capitalismo para a discussão dessa matéria. Mas como
Gorender realiza esta incursão, façamos breves comentários críticos sobre ela.
No que diz respeito à interpretação da obra de Marx e de Engels, é certo que a idéia
segundo a qual a expansão do capitalismo produziria o aumento constante, absoluto e
relativo, do proletariado industrial, já está presente no Manifesto do Partido Comunista.
Porém, no livro I d´O Capital, Marx rompe com essa tese. N´O Capital, Marx apresenta
uma análise mais complexa da relação entre o desenvolvimento do capitalismo e o
contingente de operários. No capítulo XXIII, denominado A Lei Geral da Acumulação
Capitalista, Marx destaca que o aumento da composição orgânica do capital, isto é, a
substituição de trabalho vivo por trabalho morto que é própria do desenvolvimento do
capitalismo, pode reduzir em termos relativos, e até absolutos, o contingente de operários.
Nos Grundrisse, como mostrou Martin Nicolaus em seu ensaio O Marx desconhecido,
Marx apresenta o crescimento das classes médias como uma tendência da estrutura de
classes da sociedade capitalista. A leitura crítica de Marx não pode reintroduzir, pelas
portas dos fundos, a leitura canônica. A teoria de Marx não está pronta na década de 1840;
a pesquisa dos anos 50 e 60 introduziram novidades e rupturas nos textos de Marx.

Em relação às transformações do capitalismo contemporâneo, duas observações
podem ser feitas. Em primeiro lugar, seria necessária uma reflexão mais apurada sobre a
questão do contingente de operários: houve alguma sociedade em que o operariado chegou
a ser maioria? qual a importância do número? A classe mais numerosa de todas as
sociedades humanas, ao longo de milhares de anos, foi o campesinato e, no entanto, o
campesinato não foi capaz de dirigir a transformação revolucionária das sociedades que170
viviam da exploração do seu trabalho. O proletariado russo era uma minoria quase
insignificante em 1905 e em 1917; no entanto foi a base social fundamental dos partidos
socialistas e criou os conselhos operários, produzindo a situação de duplo poder.
Em segundo lugar, não é possível aceitar sem questionamento a tese de Claus Offe
segundo a qual as classes trabalhadoras seriam mais heterogêneas hoje do que o foram em
fases anteriores do capitalismo, e que essa heterogeneidade seria responsável pelo refluxo
ou declínio do movimento operário. De um lado, há divisões antigas no seio da classe
operária e das classes trabalhadoras que desapareceram ou se atenuaram; assim, teríamos,
nesse caso, uma redução, e não um crescimento, da heterogeneidade. Até os anos 20 do
presente século, a divisão entre operários qualificados e não-qualificados repercutia no
nível da organização sindical, cindindo a classe operária em duas: os trabalhadores
qualificados e organizados e os trabalhadores não-qualificados mantidos à margem do
sindicalismo. Até os anos 50 do presente século, os trabalhadores de classe média sequer
possuíam movimento sindical. Hoje, essas duas profundas divisões não existem mais. De
outro lado, há divisões que hoje atuam de modo pesado na cisão do movimento dos
trabalhadores que nada têm a ver com as recentes transformações do capitalismo. Teríamos
nesse caso uma heterogeneidade muito antiga que, em decorrência da presente conjuntura,
adquiriu importância nova. Para darmos apenas um exemplo, a distinção entre
trabalhadores do setor público e trabalhadores do setor privado, tão explorada pelos
governos neoliberais para confundir e dividir o movimento operário e popular, é uma
distinção secular e, no entanto, é hoje que ela está evidenciando seu potencial divisionista.
A classe operária, em particular, e as classes trabalhadoras, em geral, sempre foram
heterogêneas, e o proletariado nunca foi maioria da população. Seria mais produtivo
perguntar se não são as situações históricas particulares que permitem, ou não, a
constituição do proletariado em classe. Interrogar sobre tais situações e extrair seus
elementos comuns - trabalho teórico iniciado por Lênin quando elaborou o conceito de
crise revolucionária -, parece-nos o caminho mais produtivo para se perguntar sobre a
capacidade política do proletariado.

III Gorender não acredita na capacidade revolucionária da classe operária mas, nem
por isso, deixou de apostar na possibilidade da revolução. Ele entende que o capitalismo do
final do século XX gerou um novo “sujeito revolucionário”, que seria a “classe dos171
assalariados intelectuais”. Gorender destaca o crescimento desse setor das classes
trabalhadoras e sua importância no processo econômico do capitalismo atual. Perguntamos:
por que acreditar na possibilidade de a classe dos assalariados intelectuais vir a lutar pelo
socialismo? Que interesses possuíríam nessa luta? Por que teriam capacidade para dirigila? Segundo o próprio autor, os assalariados intelectuais estão, no período atual, integrados
à ordem capitalista. Ainda segundo Gorender, o socialismo, embora deva manter a divisão
social do trabalho, deveria acabar com os privilégios sociais e econômicos usufruídos pelos
trabalhadores intelectuais. Ora, por que esperar que tais privilegiados venham a dirigir a
luta contra seus próprios privilégios?
A inserção dos “assalariados intelectuais” no processo econômico possibilitou a sua
constituição como uma força social hostil à socialização dos meios de produção nas
revoluções do século XX. A historiografia sobre a Revolução Russa e a Revolução Chinesa
mostra, com riqueza de detalhes, a resistência, ora aberta, ora difusa, dos trabalhadores nãomanuais às medidas que visavam reduzir ou eliminar as diferenças sociais e econômicas
entre os trabalhadores manuais e os não-manuais, inclusive aquelas que visavam
democratizar a gestão da produção no interior das unidades fabris. No caso da Revolução
Russa, é sabido que Lenin, depois de muito refletir, posicionou-se por uma linha de
concessões salariais aos antigos engenheiros, técnicos e administradores, para que eles
voltassem ao trabalho - e à própria Rússia, já que muitos haviam emigrado - e o Poder
Soviético pudesse, assim, retomar a produção que estava à beira do colapso.
A razão para apostar nos trabalhadores assalariados intelectuais parece ser, segundo o
livro de Gorender, a possibilidade de uma “conscientização revolucionária” desses
trabalhadores“ diante dos horrores do capital”(p. 232). Em alguns momentos do texto,
Gorender questiona a fundamentação moral na luta revolucionária. Mas essa mesma crítica
não poderia, nesse ponto, lhe ser endereçada? Afinal, são razões de ordem moral e
ideológica (os “horrores do capital” ou a “barbárie capitalista”) que explicariam a luta dos
“novos incluídos” contra um modo de produção que, embora não os insira no âmbito da
classe dominante, coloca-os numa posição vantajosa, material e espiritualmente, frente aos
trabalhadores manuais.172

IV. Nossas observações críticas, pois, centraram-se na questão dos agentes sociais
interessados na revolução socialista e capazes de dirigir essa revolução. Tema correlato a
esse que discutimos é a concepção de socialismo de Gorender, que comporta a perenidade
do Estado, do mercado e da divisão entre trabalho manual e trabalho não-manual. É claro
que o objetivo (socialismo com Estado e com manutenção dos técnicos e administradores
no posto de comando) está organicamente ligado aos meios (a classe dos assalariados
intelectuais, e não operariado, como força dirigente da revolução). Mas o espaço não
permite que prolonguemos a discussão. Ficam as observações acima como uma
contribuição para a polêmica que este importante livro está atualmente suscitando nos
meios de esquerda.

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