sábado, 23 de outubro de 2010

Desindustrialização no Brasil: A estrutura pode ruir

O déficit tecnológico vem sendo ofuscado pela miopia diante do crescimento econômico atual. Para diretor geral da PROTEC, herança perversa do momento será a perda da capacidade de inovar

O Brasil está em festa. O aumento do consumo, as vendas crescentes da indústria, o saldo positivo da balança comercial e os preparativos para os dois maiores eventos esportivos globais - a Copa do Mundo e as Olimpíadas - cunham o sentimento de que, enfim, somos o País do presente e não mais uma promessa de futuro. Porém, o sonho verde-amarelo tende a ganhar nuances sombrias devido à negligência frente aos alertas de especialistas para o risco de desindustrialização.

Não, as fábricas não estão fechando as portas... ainda. Mas muitas delas deixam de produzir para importar, a preços mais baixos, componentes ou até itens acabados para revenda. Com isso, perdem patamar tecnológico e valor agregado, enquanto ganham vulnerabilidade. O quadro poderia ser diferente se o Governo, paralelamente a uma política de inovação eficiente, desistisse da fórmula câmbio valorizado, alta taxa de juros e tributação elevada, que favorece as importações e mina a competitividade nacional. O cenário pode ficar ainda pior. Além da conhecida invasão de produtos chineses, a Índia cada vez mais compete com os produtos estratégicos nacionais, como fármacos e medicamentos.

Um dos indicativos de que a indústria nacional vem perdendo competitividade para os produtos estrangeiros de alto valor agregado é o déficit comercial dos produtos de alta e média-alta tecnologia. A defasagem aumentou 423% entre 2003 (US$ 8,6 bilhões) e 2009 (US$ 44,9 bilhões), de acordo com dados do Ministério de Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) acompanhados sistematicamente pela Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica (PROTEC).

O quadro vem se agravando este ano. O MDIC registrou, entre janeiro e maio, que 301 empresas deixaram de exportar, enquanto 3.728 começaram a importar. Alguns economistas apontam o aumento das importações como reflexo positivo do aquecimento do mercado interno. Porém, diversos segmentos industriais sequer chegaram ao aproveitamento total de sua capacidade instalada.

O diretor-geral da PROTEC, Roberto Nicolsky, avalia que as empresas investiriam em produtos próprios se tivessem tido tempo de se organizar para atender ao rápido crescimento da demanda e se os encargos de produção não fossem tão elevados em comparação a outros países. "No cenário atual, o empresário compra um produto estrangeiro, incorpora a margem de lucro e, ainda assim, o preço final fica mais barato do que se tivesse produzido no Brasil. Não há como competir com isso", afirma.

Para não ficar apenas nos números, um caso real: maior empresa de lâmpadas e sistemas de iluminação do mundo, a alemã Osram é das poucas do setor que ainda produzem no País. Parou a fabricação de lâmpadas automotivas - segmento em que é líder global - e passou a importar o produto de suas fábricas em países como Estados Unidos, Alemanha, França, China, Indonésia e até Malásia. O motivo: necessidade de buscar custos mais baixos para inovar e produzir.

Restaram para a produção local os produtos básicos, como lâmpadas incandescentes e fluorescentes tubulares. "Não basta termos o mesmo nível de qualidade mundial, capacidade de desenvolvimento tecnológico e de novos produtos, se não tivermos no Brasil mão-de-obra competitiva, maior facilidade de investimentos e financiamentos, além de custos compatíveis com a realidade. Infelizmente vemos que, aqui, as elevadas cargas tributária e de juros são algumas das mais altas do mundo, sendo as grandes vilãs da cadeia produtiva", avalia o gerente de Marketing da Osram, Marcos Ellert.

Problemas de proporções chinesas

O Brasil tem a taxa de juros mais alta do mundo. Para os investimentos em áreas estratégicas, ela fica na ordem de 5% nas melhores condições brasileiras, em bancos de fomento como o BNDES. Ao passo que, na China, esses investimentos são subsidiados, ou seja, contam com juros negativos, e há bonificações de até 20% sobre o valor dos produtos exportados.

Como se isso fosse pouco, a carga tributária brasileira é de desanimar o empreendedor mais ousado: para cada R$ 1,68 gerado pela indústria, R$ 1 vai para o pagamento de impostos, de acordo com Ricardo Roriz, diretor do Departamento de Competitividade e Tecnologia (Decomtec) da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Em paralelo, a moeda valorizada é mais um fator que encarece o produto nacional tanto para o mercado interno como externo.

Flávio Castelo Branco, gerente de Política Econômica da Confederação Nacional da Indústria (CNI), critica a política monetária como único instrumento de controle da inflação. "Deveria haver um melhor monitoramento do fluxo de entrada e saída de recursos externos, com uma série de disciplinamentos do regime cambial", afirma, pontuando que a importação pode ser positiva, se associada a mecanismos de inovação. "Mas, se ela aumentar mais que a produção doméstica, vamos perder espaço".

É o caminho que o País vem trilhando em relação à China, hoje seu maior parceiro comercial. Paulo Godoy, presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), defende que o Brasil precisa oferecer para sua indústria igualdade de condições para concorrer. O país asiático, por exemplo, adota moeda depreciada em um ambiente de elevada taxa de investimento produtivo no mercado interno. "Enquanto nenhuma correção é feita, o Brasil já pode ter ingressado, mesmo sem saber, em um processo lento e gradativo de desindustrialização", alerta Godoy, conselheiro da PROTEC.

Nicolsky complementa que existe a previsão de a China também ocupar o lugar de maior investidor no Brasil este ano, ultrapassando Estados Unidos, Espanha e Alemanha. Segundo ele, a Índia vem seguindo o mesmo movimento, enquanto, de forma silenciosa, amplia suas exportações de produtos de alto valor agregado para o País. "O déficit de fármacos e medicamentos, especialmente os genéricos, se deve em grande parte à importação de produtos indianos", pontua.

Tragédia anunciada

O déficit tecnológico vem sendo ofuscado pela miopia diante do crescimento econômico atual. Ao valorizar os resultados imediatos, governos sucessivos preferiram apenas comemorar o saldo positivo da balança comercial, puxado principalmente pela alta das commodities agrícolas, sem considerar a fragilidade desse modelo. Predominam, nas vendas externas, produtos de pouco ou nenhum valor agregado, com preços sujeitos às flutuações do mercado, em detrimento de produtos industriais de base tecnológica mais competitivos.

"Se o Governo insistir na política macroeconômica atual, quando acordar, terá uma situação desfavorável na balança comercial. Vamos de novo ter problema de endividamento externo e a necessidade de buscar mercados", avisa Humberto Barbato, presidente da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) e da PROTEC. "Já gastei muita energia para conquistar mercados. É triste ver o Governo desperdiçar esse trabalho de 20 anos", desabafa o empresário do segmento de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica.

Para Nicolsky, a herança mais perversa do modelo macroeconômico atual para a indústria será a perda da capacidade de inovar. "Como o Brasil tem um grande mercado interno, a tendência não é as indústrias quebrarem e sim deixarem de ser transformadoras, tornando-se montadoras. Quando isso acontece, desaprendem a inovar no médio e longo prazo, ficando mais dependentes".

Diante das pressões setoriais, o tema se tornará obrigatório para a agenda do próximo Governo? Roriz, da Fiesp, acredita que sim. "A balança de pagamentos do Brasil - que tem uma das maiores reservas do mundo - vai se deteriorar devido à importação cada vez maior de manufaturados. Vamos acabar destruindo toda a base industrial brasileira".

Impactos na produção setorial

Cada segmento da indústria tem uma história de contenção da produção para contar: entre os fabricantes de óculos, sobraram distribuidores de itens, basicamente, chineses. As autopeças já vêm perdendo espaço para os importados. Segundo Castelo Branco, da CNI, o mesmo acontece com as indústrias de baixa tecnologia, como a calçadista e a de móveis. Já Barbato, da Abinee, sinaliza que o setor elétrico e eletrônico também está sendo impactado. Componentes eletrônicos, produtos de segurança predial, aparelhos portáteis, produtos térmicos e disjuntores de baixa tensão praticamente não são mais produzidos no País.

Segundo Barbato, se não fossem os mecanismos antidumping, itens como ferro de passar, liquidificador e batedeira nem seriam mais feitos aqui. "Somente ao olhar a marca, não é possível dizer que se trata de um produto estrangeiro, porque a empresa é multinacional. Mas, muitas vezes, ele foi importado", ressalta. Com esse processo, fica iminente a desindustrialização em cadeia, pela diminuição da demanda para as indústrias de matérias-primas - alumínio, aço, plástico - ou de base - como a mecânica e de fundição.

No setor de fármacos e medicamentos, os intermediários químicos e as matérias-primas básicas são os mais vulneráveis à substituição por importados. Segundo Nelson Brasil de Oliveira, 1º vice-presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologia e suas Especialidades (Abifina), no fim dos anos 80 o Brasil contava com cerca de 80 indústrias de princípios ativos, enquanto hoje restaram menos de 10.

As iniciativas do Governo para fortalecer o Complexo Industrial da Saúde prometem remediar o quadro de retração. Desde o ano passado, 17 parcerias público-privadas foram firmadas para fabricar e fornecer medicamentos prioritários para o SistemaÚnico de Saúde (SUS). Com destino certo para sua produção no mercado interno, o setor nutre a expectativa de consolidar um processo estruturado de inovação em toda a cadeia produtiva que garanta competitividade dentro e fora do País. Ainda mais importante que a verticalização nesse processo, Oliveira considera o uso do poder de compra do Estado, com alteração no marco regulatório no que se refere às licitações públicas para dar preferência a produtos nacionais. Ele defende que o modelo seja estendido a outros setores da economia, como de petróleo e gás, informática e bens de capital.

Avanços obtidos

O presidente da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) do MDIC, Reginaldo Braga Arcuri, discorda que o País esteja em rota de desindustrialização e destaca avanços já obtidos pelo Governo no incentivo à inovação. Entre as ações da entidade citadas por ele, estão a criação da Rede Nacional de Política Industrial (Renapi) - para aproximar agentes públicos e privados -, além da realização de cursos em parceria com a PROTEC e de encontros com empresas interessadas nos financiamentos da Finep e BNDES.

Arcuri também menciona o crescimento das operações de crédito e subvenção para projetos de inovação oferecidas pelas duas instituições e a Lei do Bem. Criada em 2005 com base em proposta apresentada pela PROTEC, ela beneficiou cerca de 600 empresas em 2009 contra as 130 de 2006, de acordo dados do Ministério de Ciência e Tecnologia. Mas Nicolsky avalia que, apesar desse ser o mecanismo de maior adesão hoje, ainda tem pouco retorno devido ao baixo percentual de isenção (60%, enquanto a PROTEC defende que fosse de 100%) e pelo fato de só as grandes empresas (cerca de 6% do total existente no País) que apuram por lucro real se beneficiarem.

Rodrigo da Rocha Loures, coordenador nacional da Mobilização Empresarial pela Inovação (MEI) da CNI, aponta outro entrave relacionado à inovação. "É preciso uma mudança cultural. Hoje os recursos de incentivo são monopolizados para o uso de pesquisa científica. Mas a universidade não faz inovação, faz invenção. A invenção só se converte em inovação quando é aproveitada pelas empresas", pondera.

Novas ameaças à vista

Este ano, a exportação de produtos básicos deve superar a de manufaturados pela primeira vez desde o fim da década de 70. Mas para José Augusto de Castro, vice-presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB), mais grave é o fato de os produtos de ponta serem, em sua maioria, fabricados por empresas de capital estrangeiro com filiais em outros países, que deixam de exportar a partir do Brasil por terem foco no mercado interno. Isso sem falar nas remessas de lucro, que podem causar desequilíbrio nas contas externas mais adiante. Mesmo o agronegócio, tradicional segmento da economia brasileira, vem contribuindo para este quesito, ao receber cada vez mais investimentos estrangeiros diretos para fusões ou aquisições de empresas.

Segundo Castro, outra questão desponta em um horizonte não muito distante. A China, para não depender do Brasil, busca fontes alternativas de matérias-primas na África. O continente, com novas competências desenvolvidas, pode provocar o aumento da oferta de commodities no mundo com a consequente queda das cotações. Principal destino dos manufaturados brasileiros exportados, a América do Sul sentiria os prejuízos da concorrência e retrairia as importações. "O mundo está em sinal vermelho e o Brasil ignora. O País, que hoje parece a panaceia do planeta, pode decepcionar. Não estou afirmando, mas é algo que precisa ser pensado".

Paraná: proposta pioneira de PDP estadual

Quarto maior estado brasileiro no ranking da indústria de transformação do País, o Paraná batalha para manter seu posicionamento. Apesar de o setor industrial responder por 54% da arrecadação estadual, o acesso a recursos e crédito - em boa parte centralizada em nível federal - é precário, na avaliação de Rodrigo da Rocha Loures, presidente da Federação das Indústrias do Paraná (Fiep). Segundo ele, mais complicado é pensar que a maior parte das 40 mil indústrias paranaenses são pequenas e médias, que dificilmente veem seus pleitos atendidos pelo governo central.

"Esse é um dos motivos por que defendemos com tanta ênfase a tese do desenvolvimento local e da revisão do pacto federativo. O desenvolvimento do Brasil nada mais é do que a soma do desenvolvimento de cada uma de suas regiões", defende Loures. Seguindo esta linha, a Fiep articula com o governo do estado a criação da Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) para o Paraná, primeira iniciativa do gênero no Brasil. A entidade também elaborou uma proposta para a Lei Estadual de Inovação para orientar os recursos públicos e o apoio estatal ao empreendedorismo e à inovação nas empresas.

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