sexta-feira, 1 de março de 2013

Negra Enedina, a engenheira


Em agosto de 1981, o jornal Diário Popular tinha a matéria de capa que pedira aos infernos. Uma senhora fora encontrada morta em seu apartamento, na Rua Ermelino de Leão, Centro de Curitiba. O porteiro sentira falta da moradora, chamou a polícia e a imprensa veio atrás. A foto da “falecida” saiu sem pudores, na cama, em camisolas, um tratamento dado aos “presuntos”, no jargão da imprensa policial. Houve quem não gostasse, com punhos e coração.
A vítima se chamava Enedina Alves Marques, tinha 68 anos e fora a primeira engenheira negra do Brasil. Morreu de infarte. Indignação. Seus companheiros de ofício fizeram uma grita nas páginas da revista Panorama. O Diário se retratou. Afinal, as vitórias de uma mulher negra e pobre que figurou entre os seletos bacharéis de Engenharia da UFPR, na década de 1940, deveria constar nos anais da República, e não na manchete sanguinolenta de um tabloide.
Aos poucos, descansou em paz. Paz até demais. O centenário de nascimento de Enedina, em janeiro deste ano, passou em branco. Poderia ter sido celebrado pari passu com o de sua contemporânea, a poeta Helena Kolody, com quem, suspeita-se, teria estudado. Sim, antes de engenheira foi normalista e civilizou os sertões de Rio Negro e Cerro Azul, saindo das lides de doméstica e de “mãe preta” para a de titular de uma sala de aula.Deu resultado. Enedina virou placa de rua no Cajuru. Ganhou inscrição de bronze no Memorial à Mulher Pioneira, criado pelas soroptimistas – confraria de caridosas da qual participou. Mereceu biografia assinada por Ildefonso Puppi. Seu túmulo, no Municipal, é mantido com respeito pelo Instituto de Engenheiros do Paraná. Tempos depois, batizou o Instituto Mulheres Negras, de Maringá.
Eu mesmo, confesso, nunca tinha ouvido falar dela até semana passada, quando meu vizinho, Darcy Rosa, estufou o peito para contar que tinha trabalhado com Enedina na Secretaria de Viação e Obras. Publicamos a declaração. Foi o que bastou: súbito vieram mensagens revelando a catacumba onde se reúnem os cultores dessa mulher.
O cineasta Paulo Munhoz prepara um documentário sobre ela, em parceria com o historiador Sandro Luis Fernandes (foto). A casa de Sandro, no São Braz, virou um pequeno memorial de todo e qualquer documento que traga informações sobre a engenheira. São raros, dispersos e imprecisos. Bem o sabe o estudante baiano Jorge Santana. Há dois anos, ele pinça toda e qualquer pista sobre Enedina para uma monografia no curso de História da UFPR. A pesquisa promete. Há fortes indícios de que Enedina sofreu perseguição racial nos bastidores da universidade.
Formou-se aos 31 anos, sem refresco, depois de uma saga nas madurezas. Vingou-se ao se aposentar, na década de 1960, como procuradora, respeitada por sua contribuição à autonomia elétrica do Paraná. Conheceu o mundo. Morava num apartamento de 500 metros quadrados. Impôs-se entre os ricos por sua cultura, 12 perucas e casacos de pele. Desconhece-se que tenha feito odes feministas ou em prol da igualdade. Ou que fizesse o tipo boazinha para ser aceita. Pelo contrário. Talvez Enedina tenha sido mais admirada que amada. É o que a torna ainda mais intrigante.
As pesquisas de Sandro e de Jorge – ambos negros – já tiraram Enedina do campo dos panegíricos, que se limitam a pintá-la como alguém que venceu pelo próprio esforço. É um discurso bem conveniente, como se sabe. Tudo indica que não se trata de uma biografia isolada, ainda que pareça.
A mulher baixinha, magérrima e durona sabia se impor entre os homens – com os quais gostava de beber cerveja. Enfrentava a lida nas barragens como um deles, armada se preciso fosse. É uma heroína perfeita para um longa-metragem. Nasceu de uma gente humilde do Portão. Era única menina numa casa de dez filhos. A mãe, Virgília, a dona Duca, ganhava uns trocos como lavadeira. O pai, Paulo, está na categoria “saiu para comprar cigarros”.
Mas não é tudo. Enedina teria feito parte de uma rede de resistência da comunidade negra paranaense, pré-Black Power, da qual pouco se ouve falar. As vitórias que teve desmentem a propalada passividade desse grupo diante das migalhas que lhe foram reservadas. O destino dela teria mudado ao cruzar com a família de Domingos Nascimento, negro de posses da Água Verde, e com os Heibel e os Caron, brancos progressistas que acabaram por se tornar os seus.
Nesses redutos não teria encontrado apenas um horário para estudar ao lado do fogão de lenha. Ali, suspeita-se, passou de Dindinha, seu apelido, a Enedina, a primeira engenheira, mas também uma das primeiras negras de fato alforriadas de que se tem notícia. Eis o ponto. (GP)
Mais:
Enedina Alves Marques foi a primeira mulher e primeira negra a graduar-se em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná, em 1945. A engenheira participou da construção da Usina de Parigot de Souza e trabalhou na Secretaria Estadual de Educação, entre outros locais.
Falecida no dia 20 de agosto de 1981, a engenheira empresta o nome ao Instituto de Mulheres Negras de Maringá.
Enedina Alves Marques


Profissional: Enedina Alves Marques
Filiação: Paulo Marques / Virgilia Alves Marques
Data de Nascimento: 05 de janeiro de 1913
Data de Falecimento: 1981
Naturalidade: Curitiba – PR
Formação profissional: Engenheira Civil
Resumo das principais atividades profissionaisNo início de sua carreira foi do quadro de funcionários da Secretaria de Viação e Obras Públicas, onde atuou como engenharia fiscal de obras do Estado do Paraná; foi chefe da seção de hidráulica; chefe da divisão de estatísticas; chefe do serviço de engenharia da secretaria de educação e cultura.
Autuou no levantamento topográfico da Usina Capivari Cachoeira, no levantamento de rios, na construção de pontes, na Usina Parigot de Souza.
O reconhecimento profissional foi conquistado paulatinamente. Com competência liderou peões, técnicos e engenheiros. Gerenciou obras e trabalhos burocráticos. Fez-se respeitar e valorizar.
Feitos RelevantesFormou-se em engenharia em 1945, com 32 anos. Foi a primeira engenheira do Paraná. Conseguir seu diploma não foi nada fácil. A família era pobre e com a separação dos pais, Enedina e seus 5 irmãos mais velhos se dispersaram. Trabalhou como babá. A família com quem residiu apoia-na nos estudos. Conseguiu concluir a escola normal secundária em 1931. Como professora Enedina atuou no Grupo Escolar de São Mateus do Sul, de Cerro Azul, Rio Negro, Passaúna e Juvevê, em Curitiba.
Para uma mulher negra e pobre, atributos ainda hoje excludentes, na sua época representavam uma tríade de barreiras difíceis de ultrapassar. No entanto, ela almejava mais, sonhava cursar a universidade. Com esse objetivo, fez o curso de madureza no Colégio Novo Ateneu, e ingressou no primeiro curso pré-engenharia da Universidade do Paraná. Freqüentou também o curso preparatório do Colégio Estadual do Paraná. Bem preparada ingressou no curso de engenharia em 1940, onde foi alvo de preconceitos por parte de alunos e professores. Sua inteligência e determinação superou esses obstáculos. Seu carisma pessoal conquistou amigos e solidariedade dentro e fora do curso. Depoimentos recordam que Enedina passava as noites estudando, copiando assuntos de livros que não podia comprar.
Informações ComplementaresEnedina Alves Marques já foi homenageada em praça pública e figura na galeria dos paranaenses ilustres. Não é para menos a curitibana deixou registrado seu nome na história do Paraná como a “pioneira da engenharia”. Deixou sua contribuição no levantamento de rios e construção de pontes. Como membro da Associação Brasileira de Engenheiros e Arquitetos do Brasil e Instituto de Engenharia do Paraná, consagrou seu reconhecimento profissional.
No campo social, teve grande participação nas seguintes entidades culturais: União Cívica Feminina, Centro Feminino de Cultura e Clube Soroptimista. Não aceitou os padrões sociais injustos de sua época. Sonhou e ousou muito. Criou novos paradigmas. Foi uma mulher pioneira.
Enedina Marques de Souza faleceu em 1981, aos 68 anos de um infarto fulminante no dia 20 de agosto de 1981, apesar de constar no atestado de óbito, 27 de agosto. Não deixou testamento, deixou bens e uma imensurável lacuna em sua categoria profissional.
Foi imortalizada ao lado de outras 53 pioneiras no Memorial à Mulher, uma praça em Curitiba. A homenagem fez parte da comemoração dos 500 anos do Brasil, promovida pela Prefeitura Municipal de Curitiba e Soroptmist Internacional. 

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