segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Brasil terá que enfrentar a Lei de Anistia, diz André de Carvalho Ramos



André de Carvalho Ramos é Procurador-Geral da República em São Paulo e professor de Direitos Humanos na USP | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro / Sul21Rachel Duarte
Nesta segunda-feira, 10 de dezembro, o mundo celebra a criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, data que marca o Dia Internacional de Direitos Humanos. Lançado em 1948 pela Organização das Nações Unidas (ONU), o documento é um ideal comum a ser atingido por todos os povos e nações. O tema avançou na América Latina apenas em 1969, com a criação da Convenção Americana de Direitos Humanos (também chamada de Pacto de San José da Costa Rica). O tratado é cumprido por 22 países membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) e é uma das bases do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
Em entrevista ao Sul21, o doutor em Direito Internacional na Universidade de São Paulo (USP) e professor de Direitos Humanos pela mesma universidade, André de Carvalho Ramos, falou sobre o reconhecimento do Brasil ao sistema interamericano em 1998 – o que foi, para ele, um avanço na direção de uma futura universalização do direito. “A visão tradicional está no fim. É quase um estado de óbito”, declara.
Segundo o Procurador Geral da República em São Paulo, as decisões internas podem ser questionadas pelo sistema interamericano, como já acontece nos casos de violações de direitos humanos durante o regime militar. Ele explica que a Lei de Anistia do Brasil, que impede punição a agentes do governo que cometeram crimes durante a ditadura e foi repudiada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ainda terá que ser enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal. “O fato de o Brasil não cumprir uma sentença da Corte não fará o caso desaparecer. A sentença seguirá em aberto e o Brasil terá sempre que se explicar diante da comunidade internacional”, fala.
“O Brasil publicou a sentença sobre a Guerrilha do Araguaia e fez o pagamento de indenizações. Mas falta cumprir o dispositivo que diz respeito à persecução criminal”
Sul21 – O senhor fala que a visão tradicional do Direito está em estado de falência. O que isto quer dizer?
André Ramos – Estamos quase no fim da visão tradicional das matérias. É quase um estado de óbito. Estamos em outra fase. As primeiras literaturas do direito e a luta pela hierarquia constitucional foram importantes, mas agora teremos que respeitar a interpretação internacional do Direito. Se um estado interpreta que respeita os direitos à intimidade, e a Corte Internacional não, teremos que levar em conta estas contradições. Eu fui convidado ainda no primeiro mandato do presidente Lula a participar de uma comissão para criação de um anteprojeto de lei para implementar as deliberações sobre direito internacional no Brasil. Avançamos muito pouco. Temos hoje apenas um projeto de lei no Congresso Nacional que avança um pouco neste tema, mas não enfrenta algumas questões. Nós temos que nos preparar e fazer cumprir as interpretações internacionais, sabendo que o sistema interamericano de Direitos Humanos pode considerar inclusive que um acórdão do Supremo Tribunal Federal (STF), transitado em julgado, violou direitos humanos. Como já aconteceu em alguns casos.
Sul21 – O senhor defende a universalização do direito. O quanto a Constituição brasileira está aberta para o Direitos Internacional?
André Ramos – Nos acostumamos com a crise e quase falência do sistema criminal brasileiro. As áreas de investigação de homicídios da Polícia Civil no Brasil, por exemplo, são sucateadas. Como fazer boas investigações? A estatística de violação de direito à vida é altíssima no Brasil. E não foi à toa que o Brasil acatou 159 recomendações do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas e negou apenas a que pedia o fim da Polícia Militar. A situação do sistema criminal brasileiro é difícil, e justamente por isso o sistema interamericano se torna fundamental. Por mais lenta que pareça a abertura da Justiça brasileira para o sistema internacional, temos que insistir em avançar nisso. Mas ainda há muitas fragilidades no sistema interamericano de Direitos Humanos. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebe 50 mil petições por ano e só encaminha 12 ações para a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Neste ano foram 21, já é um número um pouco maior. Porém, a Comissão faz um filtro excepcional. Seguindo os critérios escritos na Convenção Interamericana de Direitos Humanos, mas com dispositivos de filtro não escritos, digamos. Isso chama a atenção para uma necessidade de maior enraizamento do sistema.
Sul21 – Como são feitos os encaminhamentos das CIDH até o julgamento da Corte?

Brasil faz cumprimento apenas parcial das sentenças da CIDH, afirma procurador | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
André Ramos – A CIDH fixa prazos e depois periodicamente o Brasil tem que apresentar relatórios sobre o cumprimento das sentenças. O Brasil cumpriu a publicação da sentença do caso sobre a Guerrilha do Araguaia e o pagamento de indenizações. Mas falta o que a Corte e o Brasil inteiro está esperando, que é o cumprimento do dispositivo que diz respeito à persecução criminal. Isto é preciso que todos saibam. O fato de o Brasil não cumprir a sentença não fará o caso desaparecer. A sentença seguirá em aberto e o Brasil terá sempre que se explicar diante da comunidade internacional sobre o não cumprimento. Eu espero a posição da Corte influencie os órgãos internos a mudar de posição e dedicar recursos para a investigação do que ocorreu há 40 anos. Isso será fundamental para implementar de maneira séria esta decisão e outras futuras.
“Não é adequado alegar cumprimento da sentença demonstrando os valores pagos aos familiares das vítimas. A Corte reconhece a indenização, mas tem que haver a punição penal”
Sul21 – Como o senhor avalia o cumprimento das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo estado brasileiro?
André Ramos – O Brasil faz um cumprimento parcial destas condenações, em geral associado à obrigação de dar pecúlio, mas tem dificuldades com determinadas obrigações. Ele publicou a sentença (da Guerrilha do Araguaia), mas tem uma dificuldade tremenda que está relacionada ao sistema de Justiça brasileiro, que é acomodado e tem extrema dificuldade de investigar e condenar os violadores dos direitos humanos, o que seria uma garantia de não repetição destes crimes. A dupla natureza do sistema interamericano de Direitos Humanos prevê investigar e punir. Não dar acesso à justiça penal para as vítimas é violação de direitos humanos. A Corte dá prazo para a defesa, mas também para a acusação. Prescrição, anistia e etc, são barreiras de acesso à justiça e a Corte faz representação em favor das vítimas nestes casos.  Não é adequado alegar cumprimento da sentença demonstrando os valores pagos por indenização aos familiares das vítimas. A Corte reconhece o pagamento, mas tem que haver a punição penal, em nome das vítimas.
Sul21 – Mas se o Brasil não cumpre as sentenças da OEA, como os direitos humanos podem ser preservados pelos tratados internacionais dentro dos estados? Como a Corte pode zelar pelos direitos humanos e forçar esse cumprimento?
André Ramos – Ela (Corte) não tem oficiais de justiça e nem pode requisitar força policial para fazer o Brasil cumprir. A solução é diferente no plano internacional. A saída engenhosa é manter a sentença em aberto. O Brasil tem que periodicamente prestar contas. Quando foi proposta a revisão da Lei de Anistia, houve entendimento da Advocacia-Geral da União (AGU) no sentido de que a Lei Geral de Anistia deveria ser mantida. Houve um feudalismo dentro do governo federal, porque sei que a Secretaria Nacional de Direitos Humanos teve posição contrária. Atualmente, estamos testemunhando algumas ações penais referentes a esses crimes, por atuação do Ministério Público Federal. Essa é a pressão possível, deixar o Brasil ano a ano em aberto com a Corte, em pontos decisivos como a localização e identificação dos corpos das vítimas da ditadura. Não falo só do caso Araguaia: tem que ser apurado quem matou Rubens Paiva e Vladimir Herzog, por exemplo. A Convenção Interamericana prevê que isso é válido para todas as graves violações do período ditatorial.
Sul21 – Se caminhamos para um entendimento entre Cortes Internacionais e a Justiça brasileira, porque não se revisou a Lei de Anistia a partir dos embargos declaratórios da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em 2008?
André Ramos - Os embargos declaratórios da OAB na ADPF 153 ainda não foram julgados e exigem uma análise diante do cenário atual, em face à criação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Falta a resposta do Supremo Tribunal Federal sobre a existência de uma omissão na sua análise da Lei de Anistia. Chegamos a um momento em que é inevitável enfrentar a questão. É uma situação em que o Brasil está condenado. O STF não quer enfrentar a questão, mas tem que haver um momento de clareza e transparência no discurso. Teremos que enfrentar a necessidade de revisão de uma decisão em transitado e julgado. Se o STF afirmar que as sentenças da Corte só podem ser cumpridas no Brasil se estão em linha com a jurisprudência do Supremo, as decisões da Corte passam a ser supérfluas. Para dizer o mesmo que disse o Supremo e o governo naquela época: não precisamos da Corte. Se as sentenças dizem algo diferente do que o Supremo disse, elas não podem ser aplicadas, elas são inócuas. Logo, se as sentenças são supérfluas e inócuas a única saída é o STF afirmar que o cumprimento das sentenças é inconstitucional e o Brasil está perdendo tempo participando destes organismos. Mas a própria Comissão Interamericana de Direitos Humanos deverá ser denunciada para isso acontecer. Nenhum estado pode sair do sistema interamericano sem denunciar a CIDH. Não podem ficar no truque de ilusionista, ficando no sistema alegando que cumprem a decisão da Corte de acordo com a sua peculiar interpretação nacional. Devem sair e assumir para o mundo que não comungam mais da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Se o STF chegar nesta situação, deverá dizer que é possível o Brasil denunciar a CIDH. Eu acho isso uma fratura na jurisprudência do STF, que tanto já fez reverência à Corte, sendo que alguns ministros admitem inclusive que a Corte tem poder constitucional.
“A Lei de Anistia passou pelo primeiro crivo, que é a nossa Constituição, mas não passou pelo segundo, que seria a aceitação pela CIDH”

“Brasil não pode ficar no truque de ilusionista, alegando que cumpre a decisão da Corte de acordo com a sua peculiar interpretação nacional” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Sul21 – De que modo as denúncias feitas pelo Ministério Público Federal nos casos de Lício Augusto Maciel Sebastião Curió influenciam esse cenário?
Andre Ramos – O Brasil está apresentando isso (para alegar que cumpre as determinações da CIDH). Apesar de o Ministério Púbico Federal ser uma instituição independente, também é uma instituição pública. O problema é que estas ações precisam ter continuidade. O fato de se propor uma ação e o juiz federal aceitar é o início do processo. Ainda cabe ‘habeas corpus’, prazo para o Tribunal Regional Federal recorrer e ainda poderá chegar ao próprio STF. A posição da Corte diz que é necessário o direito à verdade, à persecução judicial. A solução da verdade histórica, onde a Comissão da Verdade pode apresentar na visão dela o que foi crime ou não, não atenderá a exigência da Corte. Ela elogiou a lei brasileira quando ela estava para ser aprovada e os esforços do governo brasileiro, mas manteve a decisão de continuar em juízo criminal exigindo a punição. É uma separação do que é verdade histórica e o merecimento das vítimas ao acesso à justiça penal e verdade judicial.
Sul21 – Em sua opinião, o STF favoreceu os militares se omitindo a julgar a revisão da Lei de Anistia?
André Ramos – O STF não decidiu ainda a respeito do crime permanente, o crime que estaria acontecendo ainda mesmo depois da decisão de 1979, quando o STF decidiu pela extradição do Coronel Cordeiro. O STF, diante da dúvida, optou pela extradição por entender que teria existido o sequestro, que é crime permanente enquanto não haja a localização dos corpos. Falta outra posição do STF sobre os casos que o MPF tem escolhido para julgar, onde existe também esta acusação de desaparecimento forçado, ou seja, de crimes que seguem em andamento enquanto não se localiza as vítimas. O segundo ponto diz respeito a casos que não são de crime permanente porque houve homicídio, como Vladimir Herzog e tantos outros sobre os quais não há dúvida de que foram assassinados. Só falta esclarecer quem assassinou. Neste ponto, é possível considerar que a decisão do STF na ADPF 153 diz respeito tão somente à constitucionalidade da Lei de Anistia, ou seja, da recepção da Lei de Anistia pela Constituição de 88. Quando ao respeito à Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, não é papel do STF, é papel da CIDH. Ou seja, a Lei de Anistia passou pelo primeiro crivo, que é a nossa Constituição, mas não passou pelo segundo, que seria a aceitação pela Corte. Ela tem que passar por dois crivos, onde os guardiões são diferentes. Podemos, portanto, considerar que nestes casos é possível também a persecução criminal.
Sul21 – Qual a sua opinião sobre o possível julgamento da Corte sobre os réus da Ação Penal 470 (mensalão), já que os réus condenados disseram que irão levar o caso à CIDH?
André Ramos – Primeiro, eles ameaçarem que irão submeter o caso à apreciação da Corte é interessante, porque demonstra que para a política agora o sistema interamericano passou a interessar. Mas o acesso a um julgamento na Corte Interamericana não é garantido por causa do filtro que a Comissão faz. Ainda que os cargos da CIDH sejam indicações políticas, os indicados assumem com independência. De qualquer modo, acho que vale a pena a reflexão, para que não fique apenas a instância do STF como decisão máxima e inquestionável da Justiça brasileira.

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