O período da ditadura militar teve expressiva atuação dos
atores diretos do golpe de março de 1964, mas também se sabe de episódios nos
quais o Judiciário andou de mãos dadas com o Executivo, dando suporte e
legitimando violações, seja de forma ativa, seja na forma omissiva.
A Comissão Nacional da Verdade firmou acordo de cooperação
técnica com a Associação Juízes para a Democracia com o objetivo de recolher
dados, documentos e informes sobre a atuação do Judiciário, para efetivar o
direito à memória e à verdade histórica.
A magistratura não saiu ilesa das arbitrariedades cometidas
pelo regime. Vejam a aposentadoria compulsória dos ministros do Supremo
Tribunal Federal Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva.
Houve também momentos memoráveis de reafirmação dos direitos
humanos pelo Judiciário, como a sentença do juiz federal Márcio José de Moraes,
no caso do assassinato do jornalista Vladimir Herzog (1978).
Várias decisões do STF não referendaram o arbítrio, como: o
habeas corpus a favor de Miguel Arraes, preso sem processo; pela liberdade de
cátedra de Sergio Cidade Resende, em momento que professores estavam sendo
cassados; o uso de medida liminar para evitar constrangimento ilegal em relação
ao governador de Goiás etc.
Mas tivemos, por exemplo, torturas sabidas pelo Judiciário
de ontem. Elas continuam presentes, o que mudou daquele tempo da ditadura para
hoje são os eleitos como inimigos do Estado.
É preciso identificar, dentro do chamado sistema do devido
processo legal, do direito de defesa, o que foi feito e o que não foi feito.
Fundamental revelar os marcos normativos institucionais do
Judiciário que ainda perduram, sem que o país tenha cumprido os ditames da
justiça de transição, que implica instituições reorganizadas e "accountable"
(dever de prestar contas), reformas institucionais que vão de expurgos no
aparato estatal a transformações profundas em instituições como Forças Armadas
e Judiciário.
Naquele período não havia qualquer linha que lembrasse uma
gestão democrática do Poder Judiciário, o que ainda se faz presente.
A Lei Orgânica da Magistratura, de 1979, legado da ditadura,
ainda não foi revogada e possui regramento inaceitável em instituições
democráticas, como o sistema de eleição dos cargos diretivos dos tribunais, bem
como dispõe sobre a principal conquista da Constituição de 1988, o direito de
expressão e manifestação, com vedação de manifestação dos magistrados, em
completa dissonância com a normativa constitucional e internacional.
Apenas a título de exemplo, a norma serviu de base, em pleno
2012, para três desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo
representarem contra magistrados que assinaram um manifesto crítico à forma
pela qual se deu a desocupação do Pinheirinho (São José dos Campos).
Exerciam direito assegurado pela Constituição ("é livre
a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato"), consagrado na
Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem, no Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, na Convenção Americana de Direitos Humanos e preconizado no 7º
Congresso da Organização da ONU, no sentido de que "magistrados gozam,
como outros cidadãos, das liberdades de expressão, crença, associação e
reunião".
A representação foi arquivada pela Corregedoria, mas tudo a
apontar o sintomático déficit democrático ainda vivido por esse Poder.
Conhecendo melhor o papel do Judiciário, tornando os fatos
do passado públicos e transparentes, certamente o país dará um passo adiante
para que o Judiciário se torne plenamente o garantidor dos direitos humanos,
para superarmos velhas práticas autoritárias que ainda imperam em instituições
públicas, pois só assim poderemos atingir os objetivos prometidos pela
Constituição, de construção de uma sociedade livre, justa, solidária.
KENARIK BOUJIKIAN FELIPPE, 53, é desembargadora do
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. É cofundadora e ex-presidente da
Associação Juízes para a Democracia
ROBERTO LUIZ CORCIOLI FILHO, 29, é juiz de direito em
São Paulo e membro da Associação Juízes para a Democracia
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