domingo, 21 de agosto de 2011

Entrevista: Darci Frigo, um homem do Velho Oeste


Ele nasceu nas terras do Contestado. Um dia, se encantou com São Francisco. Em outro, assumiu-se como camponês, formou-se em Direito e escreveu seu nome nos movimentos de luta pela reforma agrária


A cunhada do advogado Darci Frigo sempre suspeitou que um dia iria visitá-lo na cadeia. Não era maldade da parenta. O ex-seminarista capuchinho passou mais da metade de seus 49 anos militando pelos direitos de trabalhadores do campo e membros do Movimento Sem Terra, o MST. Difícil listar um capítulo recente da questão agrária no país que não traga impresso o nome de Frigo – hoje ligado à ONG Terra de Direitos, uma rede nacional de apoio jurídico às lutas sociais. Essas andanças, claro, lhe fizeram acumular processos. E pequenas temporadas nas delegacias.

A história de Darci começa numa família de pequenos camponeses do interior de Santa Catarina, passa pelo claustro de um convento e pela turbulenta Teologia da Libertação. Por fim, bate na porta do Centro de Direitos Humanos e na Comissão da Pastoral da Terra, a CPT, organizações onde o militante ganhou estatura e fama.

Em 2001, para tranquilidade da cunhada, a assessoria jurídica dada por Frigo aos pequenos trabalhadores rurais lhe rendeu o Prêmio Robert F. Kennedy, em Washington. O catarinense foi o único brasileiro até hoje a ganhar a homenagem.

Ele hoje vive com a mulher e os dois filhos em um minifúndio com um quintal de 200 m² no bairro Órleans, em Curitiba. A terra – assunto de seu expediente de segunda a sexta-feira –, diz, lhe mantém ocupado também nos fins de semana. Confira edição da entrevista feita num dos prédios antigos da Boca Maldita, onde funciona a Terra de Direitos.

Uma curiosidade: o militante Darci Frigo lida com a enxada?

A maioria dos meus vizinhos colocou cimento em tudo. Mas eu cultivo uma horta no quintal da minha casa e mantenho plantas e árvores. Estou esperando a segunda florada do ipê roxo. Tenho pés de romã, de limão e flores de que gosto muito de cuidar.

As origens rurais ainda calam...

Sim. Sou nascido em Capinzal, hoje município de Ouro, no Meio Oeste de Santa Catarina, à margem direita do Rio do Peixe. É uma região agrícola e colonial, numa área montanhosa. Ali ocorreu a Guerra do Contestado. Meus pais moram lá até hoje. O casamento deles é um dos primeiros entre italianos e alemães na região . Vivi em Capinzal até meus 12 anos.

Antes do advogado dos direitos humanos veio o seminarista Darci. Por que o convento?

Para a família era importantíssimo ter um filho religioso. Além do mais, naquela época a única autoridade que chegava à cidade era o padre. Fui para a ordem dos capuchinhos em 1975. Para fazer os estudos iniciais cursei numa classe multisseriada, daquelas com quatro turmas ao mesmo tempo e uma professora para todos os anos. No convento, além da formação, pude praticar esportes. Sou apaixonado por futebol.

Por qual time torce?

Pelo Atlético [risos], desde que vim para o Paraná, em 1983.

A vida religiosa o marcou muito?

A fase mais interessante da minha vida no seminário foi quando conheci a Teologia da Libertação, já no início dos anos 1980. Essa experiência permitiu que eu me iniciasse na militância. Até então eu não tinha acesso ao debate político. A gente tinha pouco contato com o mundo externo. Eu me sentia limitado no trabalho social. Tinha de me submeter, mas me sentia tolhido e resolvi sair. No ano de 1984, em Ponta Grossa, soube do funcionamento de um Centro de Direitos Humanos na cidade. Foi minha primeira grande oportunidade pastoral.

Lembra de alguma das primeiras lutas em especial?

Em 1986, soube no Centro de Direitos Humanos que havia a possibilidade de despejo de famílias da fazenda de Cavernoso, na região de Cantagalo. Seria um dos primeiros despejos dos agricultores ligados ao MST, que ainda estava se formando. Por causa desse episódio, me envolvi na luta pela reforma agrária. Naquele momento, igualmente, redescobri minha origem camponesa, de onde vim, e me engajei na Comissão da Pastoral da Terra, a CPT...

Caminho sem volta...

Desde que reencontrei minha identidade camponesa, nem passa pela minha cabeça deixar de fazer esse trabalho. Além do mais, logo aconteceu um episódio que marcou minha vida. Algumas mães foram procurar o Centro de Direitos Humanos porque os filhos delas tinham sido levados para fazer roçada em uma fazenda entre Cerro Azul e Bocaiuva do Sul. Descobrimos trabalho escravo lá...

Esse episódio marcou uma batalha judicial...

O Centro de Assessoria, Pesquisa e Planejamento fazia o projeto de reflorestamento e contratava garotos em Ponta Grossa para o plantio de pinus. Os meninos passavam frio e não tinham cama para dormir. Os capatazes estavam sempre armados. Era uma jornada extensa combinada com a escravidão, pois a turma era obrigada a consumir tudo na fazenda, desde equipamentos até comida, naquele esquema de ficar devendo e nunca mais conseguir sair. Mas um deles conseguiu. E foi ao Centro de Direitos Humanos...

E você acabou processado...

Fizemos a denúncia. O problema foi na hora de apurar. A polícia disse não ter achado vestígio. Mas o que não encontrou foi o toco onde ficaram amarradas as correntes. O trabalho escravo moderno tem ou­­­tros contornos. Eu sofri um processo, que se estendeu por longos anos.

Você chegou a ser condenado a um ano de prisão...

Fui condenado, mas depois o Tribunal diminuiu a pena, estabelecendo o fim do processo. O grave é saber que ninguém jamais apurou a responsabilidade do que aconteceu àqueles jovens.

Como nasce o Frigo da CPT?

Comecei organizando pequenos agricultores na região metropolitana de Curitiba, para que conhecessem seus direitos. Mas a experiência mais interessante se deu em âmbito nacional, ao me envolver no combate aos latifúndios e na defesa dos camponeses. Digo que foi quando eu conheci de fato a desigualdade do Brasil.

Essa história o levou à Praça Nossa Senhora de Salete, em Curitiba. Vamos falar disso?

Foi no final do ano de 1999 para 2000 [quando da ocupação do MST na Praça Nossa Senhora da Salete]. Fui de madrugada ajudar os agricultores que estavam sendo despejados. Fui chamado como advogado porque algumas pessoas estavam sendo presas. A polícia não permitiu que a gente entrasse e acabei sendo detido. No dia em que saí da prisão, uma cunhada, que acompanhava minha militância, disse: “Eu sabia que um dia iria tirar você da cadeia”. [risos]

Qual foi a acusação?

Na delegacia disseram que eu tinha quebrado a perna de um policial. E nos jornais saiu que eu tinha batido na perna do PM com um pedaço de pau. A situação ficou muito grave. Recebi ameaças. Se eu saísse de casa: quebrariam minhas pernas, nunca mais andaria. Durante 45 dias recebi proteção da Polícia Federal. Tempos depois, localizei fotos que provavam que eu não tinha empurrado ninguém. O sujeito que se dizia agredido sequer foi depor e o caso foi arquivado.

O que acha da atuação do MST nos últimos 30 anos?

Acho que o movimento trouxe para o primeiro plano o que sempre ficou invisível. Nestes últimos dias, tivemos o primeiro júri de um pistoleiro pelo assassinato de um trabalhador rural. Quantos trabalhadores, quantos camponeses e quantos posseiros foram assassinados no Paraná? Quem tem ideia? Ao longo dos anos acompanhei mais de três dezenas de assassinatos no estado. Só posso achar que a luta social do MST, do sindicato e da CPT foi fundamental para a democracia brasileira.

O que falta para resolver a questão agrária no Brasil?

Estamos numa encruzilhada. O fato de o Brasil ter nas commodities agrícolas a solução aparente para os seus problemas de balança comercial gera uma propaganda, o que blinda o processo de concentração de terra e de renda no campo. Esse modelo perpetua as desigualdades, mas seu discurso convence até a presidente. Bem, o horizonte da reforma agrária está nos movimentos sociais. Depende deles. É o que penso.

Um partido ou uma ONG? Você fez a segunda opção...

A possibilidade de uma candidatura bateu à minha porta várias vezes. Mas entendi que meu trabalho político devia de ser feito no âmbito da sociedade civil. Nos anos 1990, quando recrudesce a criminalização do MST, começamos a organizar uma rede nacional de advogados populares. É uma iniciativa importante. Precisávamos de uma organização de direitos humanos que desse suporte aos trabalhadores e militantes do campo.

Daí nasceu a Terra de Direitos. “A luta continua”?

Quando comecei na militância, achava que dos anos 1980 para 1990 a questão agrária se resolveria. Mas não. O problema permanece. A terra continua concentrada. Há problemas de trabalho es­­cravo no campo e extrema po­­bre­­za. A estrutura de distribuição da terra é desigual e vigora a cultura patrimonialista. Os trabalhadores rurais não são vistos como sujeitos de direito. São tratados como pessoas de segunda categoria. (GP)

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