terça-feira, 14 de junho de 2011

As difíceis relações entre o governo e os usineiros


Em janeiro de 2011, mal havia tomado posse, a nova presidenta, Dilma Rousseff, expressou insatisfação com a alta dos preços do etanol e cobrou do ministro da Agricultura, Wagner Rossi, uma postura mais firme na discussão com os usineiros. Em abril de 2011, o governo mais uma vez endureceu as relações com os usineiros, optando por transferir à ANP a regulação da cadeia de etanol. Mas, quais seriam os fatores que provocaram essa rápida mudança nas relações entre governo e usineiros? E de que maneira esses fatores afetam os comportamentos do governo e do setor sucroalcooleiro? O artigo é de Georges Flexor e Karina Kato.

Em março de 2007, o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, afirmou que “os usineiros de cana, que há dez anos atrás eram tidos como se fossem os bandidos do agronegócio neste país, estão virando heróis nacionais e mundiais”. Naquele momento, comunicava certa convergência de interesses entre o governo e os produtores de etanol e a constatação de que o relacionamento entre eles nunca havia sido tão bom. Essa situação, no entanto, nem sempre foi assim e nem perdurou muito tempo. Após um curto período de lua de mel, desde o final de 2010, as relações entre o governo e os usineiros vêm demonstrando sinais de deterioração acelerada. Em janeiro de 2011, mal havia tomado posse, a nova presidenta, Dilma Rousseff, expressou insatisfação com a alta dos preços do etanol e cobrou do ministro da Agricultura, Wagner Rossi, uma postura mais firme na discussão com os usineiros. Em abril de 2011, o governo mais uma vez endureceu as relações com os usineiros, optando por transferir à ANP a regulação da cadeia de etanol. Mas, quais seriam os fatores que provocaram essa rápida mudança nas relações entre governo e usineiros? E de que maneira esses fatores afetam os comportamentos do governo e do setor sucroalcooleiro? A elevação recente do preço do etanol no mercado brasileiro, seu impacto no preço final da gasolina e, de maneira mais geral, seus efeitos no crescimento da inflação têm sido foco das atenções do governo ultimamente e um fator determinante da evolução das relações entre o Executivo e os produtores de etanol. Por exemplo, o valor do indicador mensal do etanol hidratado divulgado pelo Centro de Estudos Avançados de Economia Aplicada da Esalq/USP aumentou 77,80% de abril de 2010 a março de 2011, quando alcançou R$ 1,4219 por litro. No caso do etanol anidro, que é efetivamente misturado à gasolina, o valor do indicador cresceu 161,44%, passando de R$ 0,90 em abril de 2010 para R$ 2,37 um ano depois. Os contínuos aumentos de preços do etanol têm contribuído para elevar a participação deste combustível no preço final da gasolina, chegando a 16,19% em março de 2011. Em abril de 2011, os combustíveis foram a principal influência na formação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), correspondendo a 0,39% do índice. Neste mesmo mês, a inflação medida pelo IPCA ultrapassou o teto da meta do governo (que era de 6% para 12 meses). As preocupações dentro do governo com os impactos dos combustíveis sobre o índice de inflação, o crescimento e a distribuição da renda geraram uma crescente insatisfação com os usineiros. Reagindo aos sinais de insatisfação cada vez mais claros do governo, os produtores de álcool têm argumentado que o aumento dos preços se deve a dois motivos: 1) o período de entressafra da cana e 2) o aumento do custo dos fatores de produção do combustível. No período de entressafra da cana-de-açúcar, a escassez de matéria-prima se intensificou, puxando para cima os preços do etanol. O aumento dos custos de produção do álcool resultou do aumento nos preços do petróleo no mercado internacional e de outros insumos necessários à produção do combustível. O preço da terra, por exemplo, cresceu acentuadamente desde os anos 2000. Segundo pesquisa da Informa/FNP, o valor médio da terra no Brasil alcançou R$ 5.017,00 por hectare no último bimestre de 2010, um valor 9,1% maior daquele prevalecente em janeiro de 2010. Nas áreas de maior concentração de usinas do estado de São Paulo, como Ribeirão Preto e Sertãozinho, o hectare chega a custar R$ 24.000,00. Além da questão do valor da terra, os usineiros apontam para o crescimento dos preços de quase todos os fatores de produção, como equipamentos, combustíveis, insumos agrícolas, mão de obra, créditos etc. O discurso dos produtores, no entanto, é menos enfático na análise do papel desempenhado pelo preço do açúcar na dinâmica dos preços relativos avaliada pelos usineiros. A diferença entre o valor do quilograma de açúcar e o do litro de etanol sempre representa um parâmetro fundamental das avaliações e das decisões dos produtores com relação à composição de sua produção em álcool e açúcar. Ela determina a principal variável a ser analisada, a saber, o custo de se optar por produzir uma parcela maior do biocombustível. Em março de 2011, o diferencial de preços entre os produtos do setor sucroalcooleiro chegou a 40% em favor do açúcar. Uma mudança deste tipo nos preços relativos pode ser atrativa demais para os usineiros, incentivando-os a substituir parte da produção de etanol por açúcar. Os usineiros podem até acreditar que, ao produzir etanol mesmo quando existem fortes incentivos para não fazê-lo, cumprem sua parte do “contrato” com o Executivo. Mas para o governo, optar pelas oportunidades de lucros presentes num momento em que se espera um comportamento cooperativo no combate à inflação pode ser considerado um comportamento oportunista que precisa ser combatido. Nessa situação, o fato de ter que importar etanol (de milho) não ajuda a causa dos usineiros. A trajetória ascendente dos preços do etanol num momento de aumento das cotações do petróleo e do açúcar pode ser a razão principal da degradação das relações entre o governo e as usinas nesses últimos meses, mas não a única. Precisam ser considerados também elementos mais estruturais como o histórico padrão de interação entre esses atores. Para diversos atores governamentais ligados, sobretudo, às políticas energéticas, a produção de combustíveis a partir da biomassa é uma variável importante da oferta de energia, mas considerada uma variável de comportamento incerto, uma vez que a oferta de etanol envolve riscos contratuais importantes. Do ponto de vista do Executivo, o problema central residiria ainda na falta de comprometimento dos interesses privados para com os objetivos do governo. Os agudos problemas de abastecimento de etanol vivenciados no fim do Pró-Álcool (1980/90) ainda se fazem presentes na memória de parte da administração pública brasileira. Os acontecimentos recentes, desta forma, tiveram um efeito negativo sobre a confiança entre o governo e os usineiros visto que os argumentos da indústria canavieira sobre o aumento dos preços podem ser interpretados como uma forma de legitimar comportamentos oportunistas relacionados somente com os interesses privados. Por outro lado, é bem possível que o setor sucroalcooleiro considere a postura governamental como uma nova e injustificada cobrança, evidenciando a falta de conhecimento do governo quanto aos problemas enfrentados pelas usinas. Como um governo que toma posse, que enfrenta uma situação inflacionária e que necessita estabelecer credibilidade é geralmente pouco propenso a aceitar argumentos justificando uma elevação dos preços, os problemas de confiança reaparecem e os conflitos, muitos deles históricos, se tornam mais intensos. Nesse contexto, não surpreende que o Executivo esteja redefinindo o tipo de relações estabelecidas com o setor sucroalcooleiro e procure fortalecer seu controle sobre a cadeia produtiva. A recente reclassificação do etanol de “produto agrícola” para “combustível” é um primeiro passo nessa direção. Com essa iniciativa (Medida Provisória 532), o Executivo outorga à ANP o poder de atuar na fiscalização, comercialização e estocagem do etanol, e o biocombustível adquire um tratamento semelhante ao dos hidrocarbonetos. Para complementar a ação regulatória da ANP, o Executivo determinou uma mudança na faixa de obrigatoriedade de mistura do álcool anidro na gasolina. A banda que era de 20% a 25% passou para 18% a 25%. Isso significa não somente que o governo amplia sua capacidade de controlar o volume da demanda por etanol como sinaliza ao conjunto dos agentes da cadeia que não admite comportamentos oportunistas e “corpo mole” no combate à inflação. Para não deixar dúvidas quanto à sua capacidade de influenciar as “regras do jogo” no mercado de etanol, o governo está acelerando a amplitude das ações da Petrobras no setor e o leque de empréstimos do BNDES à indústria sucroalcooleira. A Petrobras, que já tem participações em usinas, deve reforçar sua posição na indústria por meio da compra de usinas já existentes ou da construção de outras. Com essas ações, o Ministério de Minas e Energia espera que a participação da Petrobras na produção de etanol alcance 15%, ante os 5% atuais. No intuito de ampliar a oferta de etanol, o governo atua também na questão do acesso aos recursos financeiros. De um lado, o BNDES mostra-se mais ativo na alocação de crédito para a construção de novas usinas e espera recuperar os investimentos num setor que tem visto o número de usinas novas passar de 31 em 2008 para 10 em 2010, com previsão de apenas 5 em 2011. De outro lado, investe em projetos de tecnologia capazes de melhorar os processos e a matéria-prima, além de desenvolver novos produtos e combustíveis – como o etanol de segunda geração. A atuação mais agressiva do governo não é provavelmente do gosto dos usineiros. Segundo eles, restringe o espaço dos arranjos privados, eleva os custos das oportunidades existentes no mercado de açúcar e sinaliza desconfiança. Em reação às iniciativas do governo, o setor procura se proteger por várias frentes. Por exemplo, as novas lideranças do setor sucroalcooleiro tentam manter bons canais de comunicação com os órgãos públicos, procurando garantir a priorização da produção do etanol anidro pela indústria. Além disso, se esforçam em minimizar o papel do setor sucroalcooleiro no processo inflacionário, destacando a elevação dos preços das commodities e, em particular, do petróleo. Nos mercados internacionais, para restaurar parte de sua imagem, a principal representação do setor tem reforçado seu trabalho de qualificação como combustível “verde”, bem como implementado inúmeras ações na direção de garantir a mecanização da produção e, portanto, a melhoria de seus indicadores sociais. E no cenário interno procura assumir a tarefa de organizar coletivamente a melhoria das condições de suprimento. Muito recentemente, os preços da gasolina estão caindo nos postos, aliviando as fontes de tensões entre governo e usineiros. No entanto, deve-se reconhecer que as relações entre indústria canavieira e governo atravessam momentos difíceis ultimamente. Embora não seja uma situação inusitada, já que, desde a promulgação da Constituição, governo e usineiros passaram por crises mais graves, a conjuntura atual contrasta duramente com o clima confiante prevalecente no início da segunda metade dos anos 2000. Além de refletir uma conjunção de fatores específicos ao momento político e econômico atual e as preferências e crenças dos atores envolvidos, esta situação é também o reflexo de uma história de desconfiança que é reforçada no contexto atual, mas cujas origens remontam a velhas lutas. É provável que essa característica perdure por mais tempo, mostrando que é parte da própria dinâmica das relações estabelecidas entre eles. (*) Georges Flexor é Professor do IM/UFRRJ, bolsista FAPERJ, Pesquisador do Observatório de Políticas Públicas para Agricultura (OPPA/CPDA/UFRRJ) e Pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento/INCT-PPED (*) Karina Kato é Doutoranda do CPDA/UFRRJ, Pesquisadora do Observatório de Políticas Públicas para Agricultura (OPPA/CPDA/UFRRJ) e Pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento/INCT-PPED


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