quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Ameaça ao patrimônio histórico: Uma cidade sem passado e sem lei


Durante 20 anos, um dos elogios mais comuns feitos a Curitiba se dirigia à sua política de patrimônio histórico. Chamavam-na de “moderna”, um “modelo”. Embora não tivesse o peso de lei, mas de um reles decreto, o que parecia um defeito jurídico resultou num fenômeno. No lugar dos rigores do tombamento, o projeto municipal oferecia os préstimos de uma equipe da prefeitura, que acompanhava os proprietários de imóveis antigos nos restauros.
Em vez de proibi-los de mexer numa tramela de porta, os técnicos ofereciam bulas sobre como usar e preservar uma casa centenária. Ao mesmo tempo, premiavam os proprietários com descontos no IPTU e alcançavam resultados inimagináveis em se tratando de um assunto que mexe com o juízo dos herdeiros de um casario.
Alerta
Apesar de “descolada”, política do “cuidar sem tombar” cada vez se mostra menos eficiente.
A lei
A Justiça não entende as unidades de interesse de preservação (Uips) como um tombamento. As defesas têm se escorado no artigo 30, IX, da Constituição, que diz ser competência do município a proteção do patrimônio histórico e cultural “observando a legislação estadual e federal”. “A política curitibana é exótica demais”, diz o advogado Francisco Zardo. Nessas condições, inclusive, a prefeitura não pode nem fazer tombamento compulsório, recurso muito usado em casos extremos.
Os marcos
O “fim anunciado” das Uips teve início em 2006, quando a Construtora Sion ganhou na Justiça o direito de demolir uma casa modernista na Rua Gutemberg. O imóvel era unidade cadastrada. Em 2010, outra vitória – autorização para demolir mansão do engenheiro Mário de Mari, na Avenida Nossa Senhora da Luz, 9.170. Proprietário recuou. Ano passado, Hospital Santa Cruz foi liberado para demolir casas geminadas na Avenida do Batel, 1.859 e 1.969. Há dois novos pedidos em andamento.
A lista
O cadastramento de unidades de interesse é bastante completo. Difícil encontrar um imóvel antigo que não esteja listado. Mas os proprietários se mostram cada vez menos receptíveis. Exemplos de Uips desabando não faltam – a exemplo da casa da Rua Comendador Roseira, 440, ou a antiga Casa de Portugal, na Rua Paula Gomes, 325, hoje um mocó no bairro São Francisco.
Ausências
Acusada de muito extensa, a lista de casas cadastradas pela prefeitura, com perto de 600 imóveis, tem apenas meia dúzia de residências de madeira. Trata-se de uma arquitetura típica ameaçada, a exemplo do conjunto do bairro Umbará. O novo presidente do Ippuc, Sérgio Póvoa Pires, afirma que a lista pode ser aumentada, incluindo, por exemplo, casas populares, como as mais preservadas da Vida Nossa Senhora da Luz, primeira Cohab do Paraná.
Linha do tempo
1964: Prefeitura de Curitiba engatinha no que seria sua política de patrimônio, prevendo pela primeira vez recursos para o setor. Patrimônio, contudo, é pensado como arquitetura – a preservação é de prédios – e não como nichos históricos.
1979 - 1983: O decreto municipal 1547/1979 propõe tombamento de 586 imóveis. À lista se somaram outros 200 imóveis. Trabalho é encabeçado por Rafael Greca de Macedo, então do corpo técnico da prefeitura. Levantamento é considerado irregular, sendo revogado por escritório do advogado René Dotti, depois de campanha movida pelo empresário Cândido Gomes Chagas, o Candinho, dono da revista Paraná em Páginas. Do imbróglio resulta início da política de potencial construtivo e maior vigilância do Ippuc na preservação de casario. É feita a demarcação do Centro Histórico.
1991: Prefeitura retoma projeto de preservação e formata programa das unidades de interesse de preservação, as Uips, gerida por equipe própria no Ippuc. Técnicos da casa fazem corpo a corpo com proprietários, orientando restauros e desenvolvendo projetos, como os que articularam parte dos imóveis antigos com novas construções no mesmo terreno.
1993: Criação das Unidades Especiais de Interesse de Preservação, as Uieps, com a intenção de concentrar transferência de dinheiro para imóveis de grande porte, necessitados de restauro, a exemplo da Catedral Metropolitana e Sociedade Garibaldi.
A partir de 2000: Cresce movimento para inclusão de casas modernistas na lista das Uips. Mas tendência da prefeitura passa a ser não incluir mais nomes, fazendo recomendações aos proprietários. Temor leva à perda de vários imóveis, como uma casa assinada por Brakte, no Alto da XV, e outra de Elgson Ribeiro, no São Francisco.
2006: Processo presidido pelo desembargador José Antônio Vidal Coelho, do Tribunal de Justiça, dá à Construtora Sion o direito de demolir casa modernista na Rua Gutemberg, 477. Casa era unidade de interesse de preservação (Uip).
2010: Processo presidido pelo juiz Abraham Lincoln Calixto, da Quarta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, autoriza a demolição de casa modernista do engenheiro Mário de Mari, a pedido do próprio De Mari, na Avenida Nossa Senhora da Luz, 9.170. Casa era unidade de interesse de preservação (Uip).
*** Decreto 689, da prefeitura, vulgariza uso do recurso de potencial construtivo, criado nos anos 1990 para beneficiar proprietários de imóveis cadastrados.
2012: Processo presidido pelo desembargador Luiz Mateus de Lima dá ganho de causa ao Hospital Santa Cruz, liberando alvará de demolição às casas de número 1859 e 1869 na Avenida do Batel. Ambas eram unidades de interesse de preservação (Uips).
2014: Revisão obrigatória do Plano Diretor da cidade deve contemplar a preservação do patrimônio histórico, no mesmo pacote em que discutirá mobilidade, por exemplo,
Fonte: Gazeta do Povo, Prefeitura Municipal, Jeferson Navolar.
O resultado veio a galope. Em vez de tombar não mais do que uma dúzia de prédios essenciais à memória da cidade, a política curitibana conseguiu salvar quadras e ruas inteiras. Para que se tenha uma ideia, a prefeitura chegou a monitorar 900 imóveis históricos em Curitiba. O Patrimônio do Estado, no Paraná inteiro, preserva perto de 200.
Mas as glórias curitibanas na salvaguarda do passado estão a perigo. Nos últimos quatro anos, a política um dia capaz de arrancar confetes das mãos de especialistas se tornou alvo de críticas impiedosas. A mais comum diz que um decreto, por melhor que seja, não tem poder para salvar imóvel algum. “O Judiciário não tem piedade”, lamenta o advogado Carlos Marés, conhecedor de leis de tombamento.
Jurisprudência
De 2011 para cá, a prefeitura perdeu na Justiça três pedidos de demolição de Uips, como são chamadas as “unidades de interesse de preservação” da capital. Dois foram praticados – um na Rua Gutemberg, 477; outro na Avenida do Batel, 1.938. Há jurisprudência. Outros donos de imóvel cadastrado agora podem fazer o mesmo. E o farão, a depender do grau de insatisfação com as limitações a eles impostas pelo Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) no uso dos imóveis. A depender desse efeito dominó, o que sobrou de conjuntos como os da Avenida Batel e da Rua Bispo Dom José podem estar com os dias contados. Há dois pedidos de demolição de Uips nessas vias. “Foi inovador para a época, mas a corrida imobiliária mudou tudo”, constata Rosina Parchen, diretora do Patrimônio do Estado.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, as derrotas no Judiciário são um sinal evidente de que a era das Uips acabou e que, por ironia, só uma lei de tombamento poderá salvá-las. Falam em urgência. O número de unidades preservadas é uma incógnita. Já foram 900, mas hoje o site da prefeitura aponta que são 619. A lista, diz-se, teria excrecências – casas que não mereceriam ser Uips. Mas o maior defeito do levantamento é não vir acompanhado de um inventário capaz de justificar a importância desse ou daquele imóvel, o que teria deixado uma brecha para os demolidores, já hábeis em colocar uma banana de dinamite no decreto municipal.
Desvirtuamento
Difícil não culpar a prefeitura pelo atual estado das coisas. Em uma década, pouco a pouco o setor de Patrimônio do Ippuc foi sendo desmantelado, a ponto de perder a expressão. Especialistas em patrimônio, concursados na prefeitura, não tiveram seus pareceres reconhecidos, o que poderia impedir a demolição de imóveis como o Hospital Bom Retiro e a fábrica da Matte Leão, entre outros, numa flagrante derrota da memória.
A pá de cal que faltava veio em 2010 com o Decreto 689, que permitiu usar a “transferência de potencial construtivo” para construir creches e preparar a Arena do Clube Atlético Paranaense para a Copa de 2014. Originalmente, o “potencial construtivo” foi adotado como fonte de receita para restaurar imóveis cadastrados. O recurso é simples – o dono de uma casa histórica com um ou dois pisos, mas em cujo terreno seria possível erguer um prédio de 12 andares, vende os metros quadrados a que teria direito para uma empreiteira interessada em construir mais do que o permitido, em outro zoneamento da capital. Elas por elas, o dinheiro ganho com a venda era usado no restauro e preservação.
Ao vulgarizar esse recurso, a prefeitura inflacionou o mercado. Pior: o poder público se tornou concorrente dos donos de Uips. Um concorrente desleal – é muito mais fácil comprar da prefeitura. “Começou a se falar mais do lucro com a venda de potencial do que em patrimônio. A casa que tem mais valor histórico para a cidade é que tem mais potencial construtivo”, ironiza o arquiteto Jeferson Dantas Navolar, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Paraná (CAU).
A venda de potencial é hoje moeda para todo e qualquer projeto urbanístico. Menos para salvar quem mais precisa. Sem lei de tombamento, Curitiba adotou a lei da selva.
Eles dizem...
Lei de tombamento, já? O que dizem cinco entrevistados pela Gazeta do Povo
Sim
Rosina Parchen, diretora do Patrimônio do Estado
Ela defende que a política das unidades de interesse de preservação, as Uips, seja entendida como um pré-tombamento, com classificação de etnia, sistema construtivo e beleza, entre outros. “Do jeito que está não tem força para garantir a integridade das casas. Uma ação judicial as derruba”, alerta, lembrando que o alto valor alcançado pelos terrenos desestimula os proprietários a lutarem pelos edifícios históricos.
Carlos Frederico Marés, advogado
“Curitiba está atrasada. Tem de criar uma lei de tombamento, já”, afirma Marés, autor do livro Bens culturais e proteção jurídica. Para ele, ao tentar preservar sem tombar, a prefeitura fez uma escolha genérica e falsamente moderna, favorável à especulação imobiliária. “Há recursos avançados de tombamento, nem sempre tão rígidos como se diz, e são protetivos, ao contrário de um decreto”.
Francisco Zardo, advogado
Zardo acompanhou os três casos de liberação na Justiça de demolição de Uips. Para ele, a atual política de preservação tem perdido na Justiça ao não apresentar estudos técnicos que justifiquem por que um imóvel deve ser mantido em pé. “Além do mais, as práticas municipais são ‘estranhas’ se comparadas às leis estaduais e federais, e nas quais deveria se pautar para ser reconhecida.”
Não
Sérgio Póvoa Pires, presidente do Ippuc
Do alto de quem ajudou a consolidar a atual política de patrimônio histórico, na década de 1980, Pires permanece acreditando na inovação do projeto. “Curitiba exporta tendências. As unidades de interesse de preservação [Uips] são inovadoras, podem inspirar outras cidades”, afirma. Sua promessa, restaurar a importância do setor do patrimônio no Ippuc, enfrentar o Judiciário e manter o corpo a corpo com os proprietários. “É possível”.
Henry Milleo/Gazeta do Povo
Em termos
Jeferson Dantas Navolar, presidente da CAU
Para o arquiteto – autor do livro A arquitetura resultante da preservação do patrimônio edificado em Curitiba , o sistema das Uips, tal como foi criado, funcionaria se fosse uma política de estado. “Mas virou negócio, trazendo à tona sua fragilidade jurídica e histórica”, lamenta. Ele se refere à comercialização maciça de potencial construtivo e ao fato de que a lista de Uips não tem justificativas rígidas e claras. “Quantas Uips temos? Virou um mistério”, diz. (GP)

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