sábado, 19 de maio de 2012

'Anistia a Fernando Santa Cruz': "Um simples pedido de desculpas do governo não é suficiente. Vamos aproveitar para cobrar uma ampla investigação, tendo como roteiro esse livro do ex-delegado", disse o irmão do desaparecido político


Por Sérgio Montenegro Filho


A Comissão Nacional de Anistia (CNA) se reúne no próximo dia 22 para julgar o processo de anistia do estudante pernambucano Fernando Santa Cruz, desaparecido no Rio de Janeiro em fevereiro de 1974. Após as revelações feitas pelo ex-delegado do DOPS, Cláudio Guerra – que lançou este mês o livro Memórias de uma guerra suja, no qual confessa a participação em centenas de mortes, inclusive a do estudante pernambucano –, o secretário nacional de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, Paulo Abrão, enviou carta aos familiares de Fernando Santa Cruz convidando-os para a sessão da comissão, na qual lhe será concedida a anistia, incluindo um pedido formal de desculpas do governo brasileiro pela sua morte.

De acordo com o irmão de Fernando, o advogado e vereador olindense Marcelo Santa Cruz, a iniciativa de Abrão é positiva e vem num momento em que a família recebeu as primeiras notícias sobre o destino do corpo do seu irmão. Segundo o relato do ex-delegado no livro, Fernando e outros nove mortos sob tortura tiveram seus cadáveres incinerados – sob seu comando – num dos fornos da usina Cambahyba, no município de Campos, norte do Rio de Janeiro. “Um simples pedido de desculpas do governo não é suficiente. Vamos aproveitar para cobrar uma ampla investigação, tendo como roteiro esse livro do ex-delegado. Afinal, é a primeira vez que algum agente da repressão decide contar os fatos”, disse Marcelo, que estará presente à sessão da Comissão da Anistia, dia 22, juntamente com seus irmãos e o filho de Fernando, Felipe Santa Cruz. A mãe do estudante, dona Elzita Santa Cruz – considerada um símbolo da resistência dos familiares de mortos e desaparecidos no País – não poderá comparecer, mas enviará uma carta que será lida na sessão.

Antes da sessão da comissão, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, convidou os familiares de vários desaparecidos políticos para uma reunião, na qual ele pretende fazer um relatório das primeiras investigações realizadas pela Polícia Federal com base no livro publicado pelo ex-delegado Cláudio Guerra. Pouco antes do lançamento do livro – quando vazaram os primeiros trechos –, o ministro começou a ser duramente cobrado por parte dos movimentos nacionais de direitos humanos, inclusive a Comissão Nacional de Familiares de Mortos e Desaparecidos – da qual Marcelo Santa Cruz faz parte – para que tomasse providência no sentido de checar as informações contidas no relato.



HISTÓRIA:






Fernando Santa Cruz, pernambucano, casado e pai de um filho, tinha 26 anos de idade e estudava Direito na Universidade Federal Fluminense quando foi declarado desaparecido político em 1974. Preso por agentes do DOI-CODI em Copacabana, junto com outro militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), Eduardo Collier Filho, foi torturado até a morte. A última pessoa que admitiu tê-lo visto com vida foi um carcereiro, de apelido “Marechal”, logo desmentido pelo então ministro da Justiça, Armando Falcão. Foi longo o sofrimento de dona Elzita, mãe do estudante, que em vão apelou a dezenas de autoridades militares e civis na época, em busca de notícias do pai de seu neto Felipe. 
Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira nasceu em 20 de fevereiro de 1949, em Olinda, Pernambuco, sendo o quinto filho do médico-sanitarista Lincoln de Santa Cruz Oliveira e de Elzita Santos de Santa Cruz Oliveira.

Militante do movimento estudantil secundarista, foi preso em 1967, após participar de uma passeata, no Recife, contra o acordo MEC-USAID, projeto que enquadrava o ensino brasileiro nos moldes norte-americanos e que, segundo os estudantes, alienava a classe estudantil e extinguia o seu campo de participação. 

Detido com o seu companheiro Ramirez Maranhão do Valle, passou uma semana no Juizado de Menores de Pernambuco, onde conheceu o drama dos menores marginalizados e perseguidos pela sociedade.

Após a saída da prisão, intensificou o seu processo de militância política, atuando ainda mais nas lutas estudantis. Foi um dos articuladores do movimento em Pernambuco, sendo um dos reestruturadores da Associação Recifense dos Estudantes Secundaristas (ARES).

Com o recrudescimento da repressão política no Brasil, através da promulgação do Ato Institucional Nº 5, Fernando se viu obrigado a sair do Recife. Já casado com Ana Lúcia Valença, partiu para o Rio de Janeiro, onde aliou o trabalho profissional na CHISAM, órgão da administração pública, subordinado ao Ministério do Interior, com o trabalho político.

Fez vestibular para o Curso de Direito na Universidade Federal Fluminense, obtendo aprovação. Na UFF, participou das lutas dos estudantes fluminenses, através do Centro Acadêmico da Faculdade de Direito e do Diretório Central dos Estudantes, que hoje tem o seu nome.


Fernando Santa Cruz e um grupo de estudantes secundaristas de Pernambuco.


Em 1972, dois fatos marcantes aconteceram na vida de Fernando. Nasce o seu primeiro e único filho, Felipe, nome dado em homenagem ao companheiro Felipe, como era conhecido Humberto Câmara Neto, desaparecido após ser preso e torturado pela polícia carioca. O outro fato seria a mudança para São Paulo, onde foi admitido por concurso público na Companhia de Águas e Energia Elétrica do Estado de São Paulo.

Em 1974, Fernando e Ana Lúcia decidem passar o carnaval no Rio de Janeiro. Aproveitam o feriado para estabelecer contatos com companheiros de luta política pertencentes à Ação Popular Marxista-Leninista - APML, que, por força do terror implantado pela repressão, eram obrigados a viver na clandestinidade.

O primeiro encontro foi, justamente, com Eduardo Collier. Fernando saiu da casa do seu irmão Marcelo para o encontro marcado para às 16:00 horas daquele sábado de carnaval, marcando para às 18:00 horas o seu regresso.

No entanto nunca mais retornou.

Logo depois, surgia a primeira evidência de sua prisão: o apartamento de Eduardo Collier, em Copacabana, era invadido por agentes de segurança. Sem se identificarem ao porteiro do prédio, reviraram todo o apartamento e apreenderam uma grande quantidade de livros de conteúdo ideológico, deixando claro que se tratava de uma ação repressiva de natureza política.

De imediato, começaram as buscas, ao mesmo tempo que teve início um sinistro jogo de empurra das autoridades militares para coma família e os advogados. Informações trocadas, dissimulações e mentiras generalizadas passaram a ser uma constante no procedimento das autoridades que eram procuradas para elucidar o caso.

A procura se estendeu pelos Estados do Rio de Janeiro e São Paulo, nos I e II Exércitos, respectivamente. A Igreja, através do Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, juristas como Sobral Pinto, escritores como Alceu Amoroso Lima, todos tentaram investigar, pedir, colaborar, sem, contudo, obterem resultados concretos.

Igualmente inúteis foram os habeas-corpus impetrados pelos advogados junto à Justiça Militar. Nem a presença de militares insuspeitos como os marechais Juarez Távora e Cordeiro de Farias, muito menos o envolvimento direto de entidades internacionais como a O.E.A. e a Anistia Internacional, nada conseguiu surtir efeito ou sensibilizar as autoridades brasileiras.

Um ano mais tarde, pressionado pela opinião pública e pelos consecutivos pedidos de informações por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da O.E.A., o ministro da Justiça Armando Falcão fez divulgar pelos veículos de comunicação uma seca nota oficial , na qual Fernando e Eduardo Collier, juntamente com mais 25 pessoas  desaparecidas, eram dadas como clandestinos e caçados pelas forças de segurança.

Imediatamente, a nota foi contestada pela família de Fernando, através de carta enviada ao ministro por Dona Ezita. Na carta, a farsa oficial era desmontada: Fernando não era clandestino, pois tinha, na época da prisão, residência e emprego fixos; não estava também foragido, já que não havia sido procurado por nenhum órgão de segurança.

Fernando Santa Cruz é, hoje, mais um nome na imensa lista de desaparecidos políticos no Brasil. 
Carta enviada pela mãe de Fernando ao Ministro da Justiça:

“Exmo. Sr. Ministro Armando Falcão

Ministério da Justiça - Brasília, Distrito Federal

Olinda, Pernambuco, 7 de fevereiro de 1975

 Sou mãe de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira e fui surpreendida com a Nota Oficial do Ministério da Justiça, divulgada em 6 de Fevereiro pela imprensa falada e escrita, em que são prestadas informações sobre 27 pessoas dadas como desaparecidas com os respectivos registros constantes dos órgãos de segurança.Entre as pessoas desaparecidas encontra-se meu filho, fato ocorrido no dia 23 de fevereiro de 1974, na Guanabara, quando se encontrava com o seu amigo Eduardo Collier Filho conforme alegações apresentadas pelos seus advogados ao Superior Tribunal Militar.Iniciou-se para nós a partir de sua prisão uma verdadeira maratona em busca de informações por este Brasil afora, desde os presídios civis e militares até os ministérios, no sentido de localizá-lo e ter a certeza da autoridade responsável pela sua custódia, a fim de que fosse permitido o acesso de advogado e familiares.

Apesar das negativas das autoridades responsáveis, as informações, fatos e indícios que obtivemos junto a pessoas e instituições indicam a sua prisão. Fatos estes, que foram já relatados minuciosamente a sua Excia. Sr. Ministro Golbery do Couto e Silva, em entrevista mantida em 7 de agosto de 1974, promovida pelo arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns.

Quero informar-lhe Sr. Ministro que o teor da nota expedida por V. Excia no que se refere ao meu filho, perpetua a incerteza de seu destino, razão pela qual sinto-me na obrigação de assumir, na qualidade de mãe, sua defesa, já que ele não pode se manifestar. Mas faço também imbuída por princípios de justiça e de verdade que acredito serem postulados que devem nortear a conduta humana.

A afirmação ‘encontra-se na clandestinidade’ a ele atribuída nesta Nota Oficial é paradoxal e para contestá-la informo a V. Excia. que Fernando era funcionário do Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo, residia à rua Diana, 698, no Bairro de Perdizes - SP; tendo, portanto, residência e emprego fixos e sendo responsável pelo sustento material de sua esposa e filho.

Para maiores esclarecimentos do que afirmo, junto a esta recibo de aluguel em seu nome e contra-cheque do último pagamento referente ao mês de janeiro de 1974, e inclusive poderá ser verificado na repartição que trabalhava o seu cartão de ponto, marcando a sua presença sempre pontual até a véspera do seu desaparecimento.

Sr. Ministro da Justiça, diante de tais esclarecimentos pergunto: que clandestinidade seria esta que, repentinamente, transformaria um filho, respeitoso, carinhoso e digno em um ser cruel e desumano, que desprezaria a dor de sua velha mãe, a aflição de sua jovem esposa e o carinho de seu filho muito amado? É fácil concluir que qualquer pessoa, mesmo perseguida, em qualquer lugar onde estiver terá como enviar uma palavra de calma e tranquilidade aos seus familiares. Ora, Sr. Ministro, por que Fernando não o faria?

Não posso aceitar pura e simplesmente o argumento de V. Excia, tendo em vista os fatos, indícios e informações já prestadas ao Exmo. Ministro Golbery e espero que não se dê por esgotado este episódio, mas que seja esclarecido o que realmente aconteceu ao meu filho para que possamos sair deste imenso sofrimento que nos encontramos: eu e todos os meus familiares.

Escrevo esta carta movida pela crença que sentimentos de justiça e de dignidade nortearão a conduta de V. Excia. e do Exmo. Sr. Presidente da República em relação a este fato. Nada peço ao Sr. para meu filho a não ser os esclarecimentos, que tenho direito, sobre o seu paradeiro, e justiça!

Disposta a qualquer esclarecimento que seja necessário, subscrevo-me

“Elzita Santos de Santa Cruz Oliveira.”
Alunos do Ginásio Pernambucano Recife.




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