sábado, 17 de março de 2012

Demarcação de terras indígenas esbarra na Justiça


Renato Santana

Editor do jornal Porantim

Quem pensa que o gargalo das demarcações e homologações de terras indígenas no Brasil se reduz à morosidade do órgão indigenista estatal, a Fundação Nacional do Índio (Funai), engana-se.

Apenas no Supremo Tribunal Federal (STF), 15 processos envolvendo terras indígenas estão parados e, com isso, impedindo a continuidade do procedimento administrativo de demarcação.

Dentre estes 15 processos, 12 são referentes a territórios indígenas no Mato Grosso do Sul, que ano após ano lidera a lista de assassinatos e mortes de indígenas entre os estados brasileiros.

Listam-se mais a anulação de títulos imobiliários incidentes na Terra Indígenas Caramuru-Paraguassú, dos Pataxó Hã-Hã-Hãe, no sul da Bahia, outro processo envolvendo interesses indígenas de povos do Rio Grande do Sul e o terceiro sobre a Terra Indígena Marãiwatsédé, do povo Xavante, no Mato Grosso.

Por conta de tal realidade, a Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) protocolaram nos gabinetes dos ministros do STF pedido para que os processos sejam julgados.

Assinado por dezenas de lideranças indígenas de todo o país, o documento pede ainda que as decisões sejam favoráveis aos povos indígenas nos termos da Constituição Federal e das convenções e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário – caso da Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

No geral, tais matérias são decisões liminares dadas pelo ministro relator, que suspendem os processos administrativos de demarcação, feitos pela Funai, ou até mesmo portarias do Ministério da Justiça declarando determinada terra como tradicionalmente ocupada.

Esquecimento

Questionar os relatórios da Funai é um direito dos donos de terras cujas propriedades incidem sobre territórios indígenas. Nos bastidores, não a de se negar o jogo político que infelizmente arma-se em tabuleiro sobre a Constituição Federal, transformando a sorte dos povos indígenas num lance de dados viciados.

Porém, nada justifica que após análise do pedido de liminar feita pelo ministro relator, ele não leve ao julgamento de seus pares o processo. O que acontece é simples e perverso: o ministro relator concede a liminar, paralisa o processo administrativo de demarcação e depois esquece o processo, que fica apenas sendo acrescido de episódios trágicos e cruzes dos indígenas assassinados à espera da Justiça kafkiana.

Um fato é inegável: não há prazos definidos para que se julguem tais matérias. Conforme a advogada Michael Mary Nolan, recentemente agraciada com o Prêmio Santo Dias de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e há mais de três décadas dedicada aos povos indígenas, passou-se a discutir um prazo razoável para se julgar processos que se destacam por, entre outros fatores, vulnerabilidades sociais das partes envolvidas.

A discussão, de acordo com Michael, pauta-se pelos convênios internacionais dos quais o Brasil é signatário. O que será razoável ou não é impossível saber, mas no caso da demarcação das terras indígenas as violências periódicas mostram que nada menos que imediatamente é aceitável – sobretudo na atual conjuntura de avanço das fronteiras agrícolas e grandes empreendimentos sobre territórios indígenas.

Aos exemplos

Para se concentrar no Mato Grosso do Sul, nos últimos oito anos, como apresenta o Relatório de Violências do Cimi no estado, 250 indígenas da etnia Guarani Kaiowá foram assassinados entre 2003 e 2010. Todos, sem exceção, estavam envolvidos na luta pela terra. Em novembro do ano passado foi a vez do cacique Nísio Gomes, do tekoha Guaiviry.

A Terra Indígena Nhanderu Marangatu, por exemplo, está com liminar que suspendeu a homologação, assinada por Luiz Inácio Lula da Silva enquanto esteve na presidência da República, sem julgamento no STF. Dos nove mil hectares homologados, os Guarani Kaiowá vivem apenas em 100 hectares.

Marangatu é o tekoha de Dorvalino Rocha, assassinado em 2005, e de Marçal de Souza, morto em 1983 e cujo processo contra os assassinos prescreveu. A Terra Indígena Cachoeirinha, do povo Terena, é outra no Mato Grosso do Sul que aguarda decisão do STF. No ano passado, um ônibus escolar da comunidade foi atacado com coquetéis molotov. Uma indígena, mãe de quatro filhos, morreu.

Na Bahia, a Terra Indígena Caramuru-Paraguassú do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe aguarda julgamento desde 2008, num processo que começa ainda nos anos 1980. De lá para cá foram 30 lideranças assassinadas. Galdino Pataxó Hã-Hã-Hãe foi queimado num ponto de ônibus em Brasília, na madrugada do dia 20 de abril de 1997, depois de um dia brigando pelo território de seu povo na ocasião do Dia do Índio. O compasso da espera aos indígenas, portanto, tem desenhado dor, sofrimento e mortes.

Insegurança jurídica

Michael define a situação como insegurança jurídica.

"A insegurança jurídica leva a violência. O lado mais poderoso fica com mais poder, se sente mais impune. Insegurança jurídica é um mal e quem aproveita é quem quer criar violência e impunidade”, define a advogada.

Para Michael, no entanto, os dois lados da história sofrem, pois a insegurança afeta tanto os índios quanto os proprietários de boa fé, que a qualquer momento podem perder tudo. "Os indígenas, claro, são os que acabam morrendo e vivendo em situação de extrema dificuldade, ainda mais com o poder político dos ocupantes de suas terras”, declara.

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) acompanha a situação de processos com urgência social por intermédio do programa Justiça Plena. Hoje em dia, cerca de 200 processos estão sob o olhar atento dos juristas do CNJ.

De acordo com a assessoria de comunicação do conselho, quatro tratam da questão indígena. Todos estão concentrados no Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), em São Paulo, e tratam da demarcação de terras indígenas Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul.

No caso da Terra Indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso, podemos ter a exata dimensão de como funciona a demarcação de terras no país: depois do contato, em 1957, os Xavante perderam suas terras, expulsos delas, em menos de dez anos. Há exatos 20 anos, depois de um exílio forçado, aguardam que a Justiça cumpra a Constituição no território – retomado à força pelos indígenas.

Será esse um prazo razoável?

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