sexta-feira, 28 de outubro de 2011

AO MESTRE COM CARINHO

por José Maria Correia

Quando ainda menino e lá por 1960 fui ao Cine Santa Maria assistir o clássico do diretor Akira Kurosawa, Os Sete Samurais, não podia imaginar que dentro de alguns poucos anos, um personagem como aqueles heróis destemidos e exímios em artes marciais iria também fazer parte de toda minha vida.

Pois aconteceu mesmo, ao visitar pela primeira vez a Academia do mestre de Karatê Hiroshi Taura, logo em minha sempre fértil imaginação o identifiquei com os personagens dos filmes épicos que descreviam a epopéia dos primeiros guerreiros japoneses que professavam rigorosos códigos de ética O HAGAKURÊ e O BUSHIDÔ.

Taura ainda muito jovem tinha concluído sua formação na Universidade de WASEDA e decidira vir para o Brasil aqui apaixonado pelas artes marciais como faixa preta e campeão de sua categoria, logo foi convocado para transmitir a arte que dominava como poucos.

Ainda não falava português, mas com gestos decididos, comandos verbais na língua de sua terra natal e acima de tudo expressões faciais sabia transmitir todas as técnicas.

Foi na antiga academia da Sociedade Polonesa da Rua Ébano Pereira que me tornei seu discípulo com a faixa branca até atingir anos depois a faixa preta em Karatê e Judô como primeiro paranaense a obter a graduação nas duas modalidades muito diversas uma da outra.

Eram tempos duros da ditadura militar onde tudo era visto com desconfiança e suspeição até mesmo o fato de jovens universitários reunirem-se semanalmente para aprender a lutar.

Não posso deixar de admitir que na realidade as aulas do mestre Taura foram fundamentais para nós, jovens rebeldes nos enfrentamentos de rua com a repressão nas passeatas promovidas pela UPE e pela UNE então postas na clandestinidade.

Aprendemos a desviar dos cassetetes e com facilidade colocávamos no chão com alguns golpes os militares que com truculência nos encaravam.

Taura era um pacifista e só admitia que nos defendêssemos, sua fama correu o meio universitário e foi chamado para ensinar também na Casa do Estudante e em vários cursos da Universidade Federal.

Quando venci os jogos de calouros e depois os jogos universitários ele estava ao meu lado incentivando exatamente como fazia o técnico no filme Karatê Kid.

Depois as coisas foram acalmando e as forças armadas já sem confronto convocaram também o Taura como instrutor e lá fui eu como seu auxiliar direto para a tropa de elite da Marinha na Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, o Batalhão Riachuelo de fuzileiros navais.

Ficávamos hospedados no camarote dos oficiais e o treino começava às cinco horas da manhã na praia, a luta era contra baionetas caladas, envolvia risco e éramos desafiados o tempo todo a provar a eficácia dos movimentos o que o Taura fazia com facilidade.

Participavam do treinamento oficiais superiores e até almirantes e todos batiam continência e reverenciavam com absoluto respeito o mestre Taura que sabia se impuser e comandar como ninguém, eu era o seu sparing, o que me rendeu muitos hematomas e algumas pequenas fraturas, nada de mais sério e que não fosse comum.

Estávamos sempre juntos e ele gostava de ir ouvir as aulas na Faculdade de Direito da Federal para aprender português e passava o tempo fazendo anotações.

Uma vez fomos a Paranaguá participar de um torneio e voltamos de carona com um amigo, o carro colidiu com um caminhão e explodiu na serra, eu fui expelido do banco de trás e retornei em estado de choque em meio a um grande incêndio para retirar o Taura e mais três colegas dos destroços, Taura estava com lesões gravíssimas, o fêmur exposto e o quadril destroçado.

Foi operado pelo Dr. Aramis que o reconstituiu, porém ele ficou de muletas por muitos meses, mesmo assim ia dar suas aulas apesar da dor, das limitações e do sofrimento.

Depois quando ingressei na Policia Civil como delegado fui convocado com o Taura para uma demonstração de defesa pessoal na cerimônia de inauguração da nova Escola de formação de policiais, o governador era Jayme Canet que fez questão de abraçar o Taura e o convidou para o corpo docente da Academia.

Não havia quem não o admirasse e respeitasse por sua técnica, mas acima de tudo por sua formação ética e pelas lições de vida e os conselhos que distribuía a todos que o procuravam.

Absolutamente despojado de bens materiais era um verdadeiro monge na sua prática, gostava de andar a pé por toda a cidade carregando apenas o seu quimono e visitando as academias e ajudando naquilo que podia e sempre foi muito.

Quando ingressei no antigo MDB lá por 1978 Taura rompeu com uma antiga tradição da colônia nipônica, a de apoiar sempre o governo e a situação e veio somar conosco na luta pela anistia e pela retomada do estado de direito.

Todos os intelectuais o conheciam e ele esteve sempre presente em todas as reuniões públicas e comícios de José Richa, o primeiro governador eleito depois de dezoito anos de arbítrio em 1982.

Taura era amigo do Professor Oto Bracarense um grande humanista que o prestigiava comparecendo a todas as festividades da seita budista Soka Gakai da qual Taura era um dos principais líderes..

Aliás, foi com Taura que tive o privilégio de conhecer o budismo como filosofia elevada e aprendi a recitar os mantras sagrados e o DAIMOKU e conduzir meu cérebro ao estado Alfa de tranqüilidade, o que me ajudou por toda a vida a manter a paz e a tranqüilidade e compreender o sentido de muitas adversidades próprias da primitiva e cruel espécie humana.

Com o passar do tempo o mestre Taura já muito amadurecido e elevado espiritualmente passou a conjugar a prática das artes marciais com o exercício do budismo de NITIREN DAISHÔNIN e suas aulas ganharam uma vertente até então quase desconhecida no Brasil e que podia remeter-se aos monges que em seus monastérios adotavam as artes marciais para conhecer e superar os próprios limites.

Aprendi com o mestre que o grande adversário somos nós mesmos e o desafio maior está em nosso interior como contido no GOSHO.

Aproximei o mestre de outros amigos e governantes, os Prefeito Mauricio Fruet, e depois Requião que o levou para treinar a Guarda Municipal que criei como vereador de Curitiba.

Taura era incansável nas suas iniciativas e foi o responsável junto com o professor Araújo também seu discípulo pela efetivação do convênio entre a grande Universidade de Soka e a nossa Federal o que possibilitou que centenas de acadêmicos participassem do intercâmbio viajando ao Japão e vice-versa.

Lembro que no meu mandato de Vereador eu o homenageei com o Prêmio Cidade de Curitiba, ele e o gênio Paulo Leminski também judoca, terminada a cerimônia fomos todos jantar e naquela noite Taura levado pelo poeta exagerou um pouco no sakê e cantou com a alma canções nostálgicas de sua terra natal, seguido na segunda voz pelo Paulo que conhecia muito de japonês pelas obras de Matsuo Bashô dos Hai- Kais, de Yukio Mishima e de outros tantos que líamos durante horas na biblioteca pública.

Reunir esses dois mestres numa tertúlia até a madrugada foi inesquecível e agora só pode se repetir em outro plano, o do desconhecido.

Quando fomos ao Japão em 1992 em uma missão governamental Taura seguiu junto já como interprete da delegação e foi responsável pela organização de eventos muito significativos com o apoio local dos membros da poderosa SOKA GAKAI.

Eu era o Chefe da Policia Civil e tentei sem sucesso através de nossa Embaixada e dos meios diplomáticos visitar a sede da Policia Federal de Tókio.

Os japoneses são muito rigorosos com a segurança e o protocolo e todas as tentativas foram inúteis até que Taura entrou no circuito e com alguns telefonemas para seus contatos conseguiu que eu fosse recebido sem reservas em todos os departamentos que desejava visitar com honras e prerrogativas.

Fui com Taura visitar a milenar Academia Imperial de Policia e lá participamos de treinamentos extenuantes, mas, Taura como era mais graduado e já tinha o grau de SHIHAN, mestre dos mestres, assumiu o comando e recebeu a reverência cerimonial de todos aos alunos e professores.

Taura foi o interlocutor responsável pela outorga ao Governador Requião do titulo de Doutro Honoris-Causa da Universidade de Soka em um auditório no campus com mais de cinco mil cadeiras, o triplo do nosso teatro Guaira.

No pórtico do auditório estão duas estátuas gigantes de Leon Tolstoi e de Victor Hugo mostrando a consideração que os japoneses dedicam aos expoentes da literatura em todos os países.

Taura não parou por aí, com a sua simplicidade e empenho foi fundamental para a vinda da exposição Tesouros do Japão, uma das mais ricas e visitadas do planeta para o nosso museu Oscar Niemeyer, tarefa das mais delicadas pelo valor das relíquias e do acervo.

Em 2003 quando assumi a Prefeitura de Matinhos o levei como diretor de esportes e ele rápidamente montou um circuito de treinamento para os guardas municipais do litoral e outro diferenciado para as crianças carentes no contra-turno das escolas municipais com ênfase na educação para a vida como parte da pedagogia da superação.

Em mais de quarenta anos nunca nos separamos e nunca deixei de ser seu mais fiel discípulo e amigo.

Não há como descrever o conteúdo e a qualidade desse convívio que foi também usufruído por milhares de outros alunos formados por todo o Brasil desde o extremo norte até o Rio Grande do Sul e onde havia academias de Karatê ou reuniões de budistas.

Muitos governadores, ministros, políticos, desembargadores, médicos e profissionais de todas as atividades passaram pelas aulas do mestre Taura e sempre externaram o reconhecimento pela dedicação e exemplo do grande professor.

Com o Taura aprendi também a praticar o KIME, uma postura onde todos os músculos do corpo enrijecem instantaneamente a partir do abdômen, travam e formam uma couraça de proteção aos órgãos vitais por mais forte que seja o choque e aprendi também a manter a consciência e os estado de alerta mesmo com traumas profundos.

Assim foi neste mês de Julho quando retornava dirigindo do litoral meu roteiro de todos os finais de semana, o carro subitamente aquaplanou debaixo de um temporal e no momento da capotagem instintivamente e por reflexo condicionado entrei na postura do KIME, a destruição do carro foi total, ficou como uma lata de sardinha amassada, o teto desceu esmagando a minha coluna e sofri cinco fraturas graves que me mantiveram no hospital por 30 dias depois de uma cirurgia muito delicada com o implante de mais de dez parafusos e placas.

Graças aos treinos do mestre sobrevivi defendendo meus órgãos vitais, o que foi considerado um verdadeiro milagre pelos médicos e nessa ocasião apesar dos muitos traumas me mantive consciente o tempo todo.

Taura retribuiu a vez em que o retirei dos escombros na Serra do Mar.

Do hospital liguei para o Taura assim que pude, pois precisava dele ao meu lado, para minha surpresa ele atendeu falando com muita dificuldade me dizendo que havia sofrido um derrame cerebral, um AVC, estava impossibilitado de caminhar, mas lutava para se recuperar.

Liguei outras vezes e aí os telefonemas já foram atendidos pela cuidadora que ia me informando que infelizmente não havia progresso na recuperação.

Quando tive alta, assim que pude caminhar novamente e ainda com muita dor na coluna fui visitar o mestre que estava então internado no Hospital Cajuru, fui levado pelo Haziel Pereira que apesar de marxista também vinha estudando o budismo.

Encontramos um quadro desolador, o guerreiro antes tão vigoroso e enérgico estava combalido e devastado pela doença, o AVC agravara e ele teve grande parte da perna amputada.

Taura pareceu não me reconhecer, o Haziel, como bom baiano emocionou-se muito e não conseguiu conter as lágrimas.

Deixamos o hospital arrasados, Taura estava morrendo.

Nos últimos dias o Samurai recuperou parte da consciência, mas tinha também alucinações, se imaginava no DOJO em pleno combate com alunos e adversários em torneios acirrados.

Pedia o quimono, o KARATEGUI para as enfermeiras, queria a sua faixa vermelha e branca de SHIHAN, mestre dos mestres, gesticulava e quando perdia novamente a lucidez já havia uma dezena de adversários submetidos como sempre aconteceu na vida real.

Nesta quarta feira pela meia noite toca o telefone em minha casa, o horário prenuncia más notícias, era o filho Ricardo, com a elegância e a cortesia nipônica anunciou , “temo ter que lhe transmitir más noticias , perdemos papai”

Fiquei sem palavras, disse alguma coisa e me retirei para um canto da casa em silêncio ensimesmado, outra perda irreparável e meu mundo vai se estreitando cada vez mais.

Que fazer?

Resta o consolo de saber que o mestre tinha profunda convicção na vida eterna e na reencarnação conforme os dogmas budistas.

Tinha apenas 71 anos, com certeza gastou sua vida dedicando-se aos outros com tanta intensidade que um dia a chama extinguiu-se no corpo terreno agora transformado em LUZ IRRADIANTE.

Ele havia atingido o estado de BODHISATTVA, o de compaixão pelos semelhantes como escrito na SUTRA DE LOTUS de infinitos significados.

Diz frei Leonardo Boff que a morte é o passo necessário para a plenitude da vida e que com a morte corporal caem todas as barreiras interpostas pelo espaço e pelo tempo, pelo corpo e pela matéria.

Que assim seja também para o Taura meu amado mestre e de muitos outros nesta existência.

DOUMO ARIGATOU-GOZAIMASU SHIHAN.

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