domingo, 26 de junho de 2011

78 dias no inferno

Márcio Barros para a Revista Ideias
Fotos Átila Alberti

Quanto vale a liberdade de um homem? Para alguns não muito, mas há registros na história que várias pessoas mor­re­­ram em busca dela. Levando em consideração a inoperância do sistema judiciário brasileiro, a defici­ên­cia das polícias Militar e Civil é mais comum do que se imagina, pessoas inocentes serem presas por crimes que não cometeram. O caso mais recente aconteceu em Fazenda Rio Grande, na Região Metropolitana de Curitiba. Três rapazes foram presos, confundidos com bandidos que haviam assaltado um mercado, e passaram quase três meses atrás das grades. A injustiça só não foi mais extensa, porque um policial suspeitou que fossem inocentes e mesmo com o caso supostamente resolvido, continuou as investigações. Duas pessoas foram detidas, entre elas um adolescente de 17 anos.

O CASO – Sexta-feira, dia 25 de fevereiro. O sol já dava sinais de que o dia seria quente. O florista Giovani Aparecido da Silva estava de folga, dia perfeito para uma pescaria. Giovani não perdeu tempo. Ligou para o amigo Alexander Busato, e combinaram o dia de lazer. Giovani passou no mercado, comprou artigos de pesca, algumas frutas e outros alimentos para passar o dia na beira de uma cava, na maior tranquilidade. Com as sacolinhas do mercado em uma mão, e na outra o fecho com as varas, seguiu ao lado do amigo. Quando chegaram próximo do destino, encontraram Rubens Alves Ferreira, que até então não conheciam. Ele já estava pescando no local. Em poucos minutos, foram surpreendidos com o barulho de diversas viaturas policiais que passavam pela estrada de chão, levantando poeira e arrastando os pneus. Eles foram abordados e explicaram que estavam no local pescando, no entanto, como se não tivessem sido entendidos, foram colocados no camburão. Rubens, mesmo sem conhecer os rapazes, foi preso junto, e a partir daquele momento, o dia de pescaria havia acabado, e dado lugar a uma temporada de terror, medo e decepção, que durou 78 dias.

AQUI É BRASIL – Três dias depois de ser libertado, Giovani recebeu a equipe da Ideias e contou como foram os primeiros momentos dos piores dias da vida dele. Na hora da primeira abordagem, mais de 20 policiais, todos com arma em punho, exatamente como deve ser uma abordagem, renderam os três e os revistaram. Eles disseram que estavam atrás de três assaltantes que haviam atirado contra as viaturas, abandonado um carro bem próximo dali e fugido no mato. “Teve um policial que foi educado. Ele conversou e já estava nos liberando, mas logo em seguida veio outro, e disse que a gente era muito parecido com os caras do assalto e que iria nos levar mesmo assim”. O equipamento de pesca foi jogado no chão e os três colocados no camburão. Apertados e ainda sem saber o motivo da prisão, foram interrogados aos gritos dos policiais, que mesmo sem ouvir as respostas, incriminava-os somente com o olhar. Os três não sabiam o que eles procuravam, mas tentavam justificar que estavam ali somente para passar algumas horas pescando, e para comprovar, apontaram as varas e demais equipamentos de pesca, além da sacola com as compras. “Eu mostrei a nota e disse que estava acontecendo um equívoco, e que eles poderiam confirmar tudo se fizessem uma ligação para a minha patroa, ou se fossem no mercado onde eu havia feito as compras. Mas não. Um soldado pegou as notas, amassou e jogou fora, dizendo que aquilo não era prova”, contou Giovani. Ele disse também que, antes de serem levados para a delegacia, ouviu dois policiais conversando sobre a inocência dos pescadores. “Um deles disse que tinha certeza que não éramos os caras que eles procuravam, mas o outro insistia dizendo que precisava alguém preso”. Em seguida, a porta traseira da viatura foi fechada e um policial jogou spray de pimenta nas frestas, que imediatamente tomou conta do espaço todo. “Eu sou asmático e comecei a passar mal, até que um policial, o mais educado de todos, abriu a porta e questionou o outro, perguntando por que ele estava fazendo isso. Ele deu risada e disse que era assim que tinha que tratar o lixo da sociedade”.

Curiosamente, segundo Giovani, quando um helicóptero começou a sobrevoar a área onde eles estavam, rapidamente os policiais fecharam a porta do camburão e se espalharam pelo mato, como se ainda tivessem procurando por alguém. “Não entendi por que eles fizeram isso, talvez porque ainda não tinham avisado a central deles de que haviam três pessoas detidas”.

Quando chegaram à delegacia, as vítimas do mercado já estavam lá. Os três foram colocados em um paredão, com a cabeça baixa. E imediatamente o comerciante fez o reconhecimento com 100% de certeza.

Com tantos indícios forjados, o reconhecimento, o depoimento dos policiais de que haviam trocado tiros com os rapazes, a prisão era somente uma questão de tempo. “Nenhum policial militar quis nos ouvir, ninguém quis saber da nossa história. Eu disse várias vezes que no mercado onde eu tinha feito as compras havia sistema de gravação de imagens e poderiam comprovar que eu estive lá de manhã, disse que poderia tirar minhas digitais, e até fazer o exame de coleta de pólvora, para comprovar que não havia manuseado uma arma. No entanto, um policial ainda tirou sarro dizendo que aqui é Brasil, e isso só existe nos filmes”, completou Giovani.

DUQUE 13 – Enquanto aguardavam para serem colocados no xadrez, chegou uma outra viatura com duas moças adolescentes e um rapaz. Ele tinha sido preso com duas armas e uma sacola de dinheiro. “Não consigo imaginar quanto tinha de dinheiro, mas acho que entre R$10 mil e R$15 mil, divididos em notas e moedas, além de maços de cigarro. Vi eles (policiais) colocando nos bolsos e logo em seguida desapareceram. Só sei que aquele rapaz que foi preso com o dinheiro e com as armas, não ficou no xadrez junto conosco”.

Quando estava sendo ouvido por policiais civis, Giovani, que tem uma cicatriz no lado direito do rosto, foi apontado como suspeito de um estupro, que aconteceu recentemente no município. Um homem que pratica assaltos e depois abusa sexualmente de suas vitimas, tinha uma marca muito parecida com a dele. “Quando o policial falou isso, para me defender, tive que falar sobre minha sexualidade. Contei que era homossexual e mesmo que não fosse, jamais estupraria alguém, sou contra todo tipo de violência”, contou o rapaz.

Mas a revelação, segundo ele, em vez de ajudar, atrapalhou. Quando foi colocado no xadrez, os presos queriam saber por qual motivo estava ali. O policial, supostamente sem saber do poder das suas palavras respondeu: “duque 13”(gíria usada no meio policial para identificar estupradores), foi o que bastou para despertar a ira nos mais de sessenta homens que ocupavam as três celas. “Eu os ouvi dizendo que iam esquentar água e óleo para dar um jeito em mim. Foi terrível. Mas graças a Deus um preso, acredito que era o líder dentro da cadeia, diferente de todos os policiais com que eu havia tido contato, conversou comigo e me ouviu. Contei toda a história e ele foi em cada cela e repassou para todos os detidos”. Os dias seguintes foram passando lentamente, principalmente porque, segundo Giovani, ficou sem apoio jurídico. “A minha força estava na minha família, e na minha patroa. Eles acreditavam em mim e sabiam que eu jamais faria uma coisa dessas. A advogada que foi contratada para me defender, nunca apareceu para conversar conosco, pra saber a nossa versão da história ou coisa parecida. Até hoje não sei exatamente de que forma ela ia me ajudar”, contou.

TATUAGEM NA MEMÓRIA

Giovani disse que todos os dias na cadeia foram intensos, e ficarão marcados na sua memória, como se fosse uma tatuagem feita a ferro quente. Cada dia o pedaço de um desenho feio, que por mais que não quisesse mais ver, estará presente para sempre na sua vida. No 67.º dia, o delegado Erik Wermelinger Busato (foto), chegou com uma boa notícia. Ele disse que sua equipe havia prendido um suspeito do crime. Vanderlei Augusto, de 31 anos, com várias passagens pela polícia, acompanhado de um adolescente, foi identificado por meio do sistema de gravação do estabelecimento, e posteriormente, os dois assumiram a autoria do assalto. O delegado disse que desde o começo havia algumas informações que não estavam batendo, mas pelo fato de todas as vítimas terem reconhecido os rapazes, e os policiais terem afirmado que foram eles, presos em flagrante logo depois de trocarem tiros, tiveram que permanecer presos. “A partir dessa nossa suspeita continuamos a investigação mesmo com os principais suspeitos detidos. Logo depois da prisão do verdadeiro assaltante, entramos em contato com o juiz informando sobre o ocorrido e solicitando que eles fossem colocados em liberdade”, explicou o delegado.

DISCORDÂNCIA

A advogada Célia Mazzagardi (foto) disse que discordou da versão apresentada por Giovani. Ela disse que só foi contratada 15 dias depois de eles já estarem presos. Além disso, tentou de todas as formas ajudar a família dele. “A mãe dele, uma mulher doente, chegou aqui dizendo que ia vender a casa para poder pagar os serviços advocatícios. Eu disse que não precisava, que a gente parcelaria e tudo acabaria bem. Acertamos a forma de pagamento em uma entrada de R$500,00 e mais 10 parcelas de R$100,00, e ela concordou”, explicou a advogada. Ela disse que logo que pegou o caso, pediu a liberdade provisória de Giovani, mas foi negada, pois ele não era réu primário e havia diversas testemunhas do crime. “O juiz negou. E qualquer outro negaria também. É só colocar de um lado várias testemunhas que identificaram um assaltante, uma pessoa que já cumpriu pena por assalto. Difícil ficar do lado do suspeito”, comentou Célia.

Dois dias depois de conceder a entrevista, ela renunciou o mandato e o processo passou a ser defendido pelo advogado Dalio Zippin, que é representante da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ele disse que foi procurado pelas vítimas e imediatamente assumiu o compromisso de ajudá-los, e como a advogada que estava no caso renunciou, foi nomeado titular de defesa. “Já sabemos que o Giovani e o Alexander, que agora são meus clientes foram maltratados, humilhados, ofendidos e ainda ficaram 78 dias presos injustamente. Eles deixaram de cumprir seus compromissos, e pior do que tudo isso, vão ter que viver com essas marcas. Alguma coisa precisa ser feita”, comentou. Com relação à passagem que Giovani já teve na polícia, há muitos anos, no interior do Estado, o advogado disse que jamais um homem pode ser condenado por um crime levando em consideração o outro. “No passado ele errou, mas naquela ocasião, o juiz entendeu que ele deveria pagar sua pena doando cestas básicas e comparecendo no fórum mensalmente. Se naquela ocasião a pena foi branda, como pode agora, depois de tantos anos ele ser penalizado?”, questionou Zippin.

GRAVÍSSIMO – O Tenente-Coronel Maurício Tortato, comandante do 17.º Batalhão da Polícia Militar, disse que as denúncias são gravíssimas e que todas elas serão investigadas. “Já identificamos os policiais. Vamos apurar os fatos e agir sem corporativismo, inclusive já entramos em contato com a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e o Ministério Público para que eles acompanhem de perto todas as medidas que estão sendo tomadas. Não podemos agir precipitadamente, portanto, já determinei a abertura de um Inquérito Policial Militar e todos os envolvidos serão ouvidos. Caso seja confirmada a ação irregular, os culpados serão punidos no rigor da lei”, explicou o comandante.

O advogado Dalio Zippin, disse que, como as denúncias são graves e atingem diretamente aos policiais da ativa, as vítimas deveriam ser incluídas no programa de proteção à testemunha, no entanto, novamente teriam que ser afastados das suas atividades até o caso ir a julgamento. “Eles preferiram ficar em casa, mas acreditam na seriedade da polícia, apesar do desvio de conduta de alguns deles”, completou.

A imagem dos verdadeiros assaltantes gravada pela câmara de segurança do estabelecimento. Os dois assumiram, posteriormente, a autoria do assalto:

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