"Aqui, talvez, esteja o nó da questão social: apesar de quase oito anos do Programa Bolsa Família, temos a constatação pelo Censo de 2010 de uma enorme miséria, ou pessoas que vivem em extrema pobreza. A resposta é simples, mas o diagnóstico ou a solução é complexa, pois remete ao enfrentamento do tipo de desenvolvimento que estamos implementando, bem como da política econômica em curso: tudo converge para o aumento da riqueza do capital financeiro, tudo se dirige para a geração de lucros astronômicos como ‘jamais antes neste país’ conhecemos. Mas a questão social fica relegada aos mínimos sociais, à ajuda para evitar o colapso social, para que os pobres não se revoltem, permaneçam confiantes de que os governos estão atentos às suas demandas. Será que, de fato, estão?”. O questionamento é da professora Maria Sarah da Silva Telles, da PUC-Rio, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Maria Sarah da Silva Telles é socióloga, professora e pesquisadora, atualmente na direção do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio. Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, é mestre em Sociologia pela Université de Toulouse II, onde também obteve o diploma de Maitrîse em Sociologia, e graduada em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Confira a entrevista. IHU On-Line – Qual a sua avaliação de programas sociais do governo como SUAS, Bolsa Família e Brasil sem Miséria? Maria Sarah da Silva Telles – Sobre o SUAS, trata-se da regulamentação de uma exigência da Constituição de 1988, criando o Sistema Único de Assistência Social, que é de responsabilidade do Estado. Trata-se de um grande avanço, mais uma conquista da Constituição Federal de 1988, que tardiamente é regulamentada: o direito de todas e todos que necessitem de assistência, um direito de cidadania. Quanto ao Bolsa Família, programa do governo Lula que unificou e ampliou as políticas sociais para os miseráveis, trata-se de uma política focalizada que tem algumas restrições, se comparada com as políticas universalistas. Trata-se também de mínimos sociais – como a Assistência Social – para aqueles e aquelas que não possuem condições mínimas para a sobrevivência: renda de até 140 reais por pessoa/mês, o que dá menos de 5 (cinco) reais por dia. Quando a pessoa/criança/adolescente/idoso ultrapassa este limite, o benefício é suspenso. Estamos falando de valores muito baixos: quem, por exemplo, dispõe de 6 (seis) reais por dia, já não tem direito ao benefício. Quanto ao Brasil sem Miséria, resultado da constatação da permanência de uma enorme miséria no Brasil, pretende ampliar o Programa Bolsa Família e incluir outros investimentos que já existem ou existiram, como o acesso aos serviços (eletricidade, saneamento, água) e a inclusão produtiva, com a qualificação profissional e talvez a obrigatoriedade do trabalho voluntário. IHU On-Line – Recentemente foi divulgado que o Brasil tem mais de 16 milhões de pessoas em extrema pobreza. Por que o país, apesar de se desenvolver, ainda continua registrando grande número de pessoas que vivem na miséria? Maria Sarah da Silva Telles – Aqui, talvez, esteja o nó da questão social: apesar de quase oito anos do Programa Bolsa Família, temos a constatação pelo Censo de 2010 de uma enorme miséria, ou pessoas que vivem em extrema pobreza. A resposta é simples, mas o diagnóstico ou a solução é complexa, pois remete ao enfrentamento do tipo de desenvolvimento que estamos implementando, bem como da política econômica em curso: tudo converge para o aumento da riqueza do capital financeiro, tudo se dirige para a geração de lucros astronômicos, como “jamais antes neste país” conhecemos. Mas a questão social fica relegada aos mínimos sociais, à ajuda para evitar o colapso social, para que os pobres não se revoltem, permaneçam confiantes de que os governos estão atentos às suas demandas. Será que, de fato, estão? Se estivessem, o Brasil seria muito mais justo, com muito mais cidadania para todos e todas. O governo que chegou à presidência pelo Partido dos Trabalhadores tinha como meta transformar a sociedade, segundo o ideário de igualdades, e o que ficou como legado foi um país ainda profundamente desigual e, sobretudo, que aproveitou mal a onda de crescimento econômico que atingiu toda a América Latina: aqui poderíamos ter feito a diferença. O Censo de 2010 poderia ter revelado um país sem miseráveis, por exemplo. Se o número de milionários vem aumentando significativamente nestes últimos anos, por que não poderíamos ter diminuído drasticamente a miséria? Trata-se de uma escolha da sociedade e, principalmente, do governo. IHU On-Line – O que significa para um país como o Brasil ter mais de 16 milhões de pessoas pobres? Maria Sarah da Silva Telles – Creio que um país rico, com o oitavo maior PIB do mundo, não poderia conter este número avassalador de miseráveis: é o tamanho da população do Chile, conforme reconheceu a presidente Dilma. Revela uma sociedade profunda e extremamente desigual. Por mais que a desigualdade de renda venha diminuindo nos últimos dez a quinze anos, ela ainda é enorme, vergonhosamente alta, demonstrando as escolhas da sociedade e principalmente dos governos: esta ainda não é uma prioridade, nem para a sociedade e nem para os governos. IHU On-Line – De acordo com o IBGE, do contingente de brasileiros que vivem em condições de extrema pobreza, quase cinco milhões têm renda nominal mensal domiciliar igual a zero, e mais de 11 milhões possuem renda de 01 a 70 reais. O que justifica esses dados e quais devem ser as ações que o governo deve tomar para reverter este quadro? Maria Sarah da Silva Telles – O que justifica os dados de miséria são as pouquíssimas oportunidades de inclusão cidadã para uma parte da população brasileira, no caso, milhões de brasileiros. Estes milhões de brasileiros que vivem sem renda, ou com míseros 01 a 70 reais, estão impossibilitados de obter seu direito à sobrevivência biológica: trata-se de fome, da fome que acreditávamos, pela propaganda insistentemente veiculada pelo governo, estaria resolvida. Para reverter esse quadro, só há uma alternativa: universalizar o direito de todas e todos a uma renda mínima, sem qualquer burocracia que impeça aos miseráveis tal acesso. Se o candidato ao benefício tiver de provar uma série de documentos para sua conquista, continuará fazendo parte desta estatística de miséria. Sabemos que a maioria dos miseráveis tem dificuldade de acesso à máquina burocrática. IHU On-Line – Ainda segundo o levantamento, a grande maioria dos brasileiros em situação de miséria é parda ou negra, tanto na área rural quanto na área urbana. Em que medida a questão racial interfere na questão social e como o governo pode atuar para mudar a situação? Maria Sarah da Silva Telles – A pobreza no Brasil é parda e negra; o legado da escravidão ainda está longe de ser superado. Não se supera mais de três séculos de escravidão sem uma agressiva política de inclusão social, de expansão dos direitos de cidadania para que todos sejam contemplados. Ainda estamos com esta dívida histórica, que os governos progressistas assinalaram em suas plataformas políticas, mas que até agora ficaram nas promessas: a inclusão racial, a inclusão dos pobres tem ocorrido muito lentamente, o que nos faz chegar à segunda década do século XXI com esta dívida social colossal. O governo, ao atacar seriamente a exclusão social, automaticamente incluirá todos os deserdados pela sua cor de pele, pela sua origem social. Por exemplo, com um valor de salário mínimo que ofereça condições dignas de vida a todos, o quadro da sociedade brasileira seria outro. Segundo o Dieese, o valor justo seria a partir de 2 mil reais. IHU On-Line – Os programas sociais do governo cumprem o papel de erradicar a pobreza e a miséria no país? Deve haver outras estratégias de governo para mudar o número de pessoas que vivem na extrema miséria no país? Maria Sarah da Silva Telles – Os programas sociais existentes ajudam, mas são insuficientes. Como solução, não vejo outra a não ser a de política universal de inclusão social pela renda universal para todas e todos, pelo acesso à educação de qualidade, à saúde de qualidade, à moradia digna e acesso à infraestrutura, independentemente de origem social, de cor da pele, de região do país, de número de filhos e ocupação. Trata-se da agenda cidadã. IHU On-Line – O governo criou este ano o Bolsa Verde, componente do programa Brasil sem Miséria que tem como objetivo estimular a proteção ao meio ambiente. De que forma o programa pode melhorar a qualidade de vida das pessoas que vivem no meio rural? Maria Sarah da Silva Telles – Trata-se de mais um programa pontual, que pode gerar alguma melhoria, mas não vai resolver a situação do pobre no campo. A consciência ambiental é crucial, tem de ser uma prioridade para toda a sociedade. Mais uma vez estamos condicionando o acesso a uma ajuda mínima a certas condicionalidades que acabam por impedir que todos tenham acesso ao benefício: trata-se de um direito de todo cidadão brasileiro. IHU On-Line – Outro objetivo do programa Brasil sem Miséria é a construção de cisternas (reservatórios de água) para plantio, com o objetivo de atender 60 mil famílias rurais e 650 mil famílias em dois anos e meio. Trata-se de uma saída para a redução da miséria no país? Por quê? Maria Sarah da Silva Telles – A construção das cisternas é uma alternativa fundamental e louvável, a ser estendida a todas as famílias do semiárido. Mas não resolve todos os problemas. O que se pode fazer para que estas famílias vivam de forma autônoma, sem a ajuda da política social? Sabemos, por experiência de outros países e em outros períodos históricos, que uma parte da população precisará sempre de ajuda: seja porque está impossibilitada para o trabalho, seja porque o tipo de trabalho que existe – além do desemprego – não é acessível para todos, exigiria uma qualificação específica, uma disposição física que muitos pobres já não dispõem, pelas péssimas condições de acesso à saúde, por exemplo. O mais chocante é que parece que nosso governo – e nossa sociedade? – não está disposto a suprir o conjunto dos direitos para todos. E tudo indica que os miseráveis, o mundo popular, tem uma enorme dificuldade de organizar suas demandas, de fazer valer os seus direitos. Os movimentos sociais estão bastante fragmentados em lutas identitárias, que são justas, mas que contemplam parcialmente os direitos de cidadania para alguns grupos, mas não levam a bandeira da inclusão de todas e todos. Enquanto o universo popular se contentar com o Bolsa Família, não haverá mudanças no horizonte. Mas esta situação é provisória, como revela a história da luta pelos direitos humanos, pois direitos remetem sempre a mais direitos.*Maria Sarah da Silva Telles
Doutora em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ, 2008, mestre em Sociologia pela Université de Toulouse II, 1986, onde também obteve o diploma de Maitrîse em Sociologia, 1984, e Graduada em Ciências Sociais pela PUC-Rio, 1976. É coordenadora da área de Sociologia do Departamento de Sociologia e Política da PUC-Rio, professora de graduação, pós-graduação e pesquisadora na área de Sociologia Urbana. Nesta área, tem trabalhado com os seguintes temas: pobreza e desigualdade social, favela, habitação popular, migração nordestina, família popular, escola e mobilidade social. Em 2008 defendeu a tese de doutorado, intitulada Viver na pobreza: experiência e representações de moradores de uma favela carioca.
segunda-feira, 12 de setembro de 2011
A questão social relegada aos mínimos sociais
segunda-feira, setembro 12, 2011
Molina com muita prosa & muitos versos
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