O cacique NĂsio Gomes, assassinado no dia 18 de novembro de 2011, foi mais uma das lideranças dos guarani kaiowĂ¡ eliminada por pistoleiros contratados pelo agronegĂ³cio em Mato Grosso do Sul. A comunidade em que ele vivia foi atacada por jagunços, com armamento pesado, que alĂ©m de o executarem deixaram vĂ¡rios feridos por balas de borracha. Os pistoleiros (funcionĂ¡rios de uma empresa de segurança privada, criada pelos fazendeiros) levaram o corpo do cacique e raptaram sua esposa e duas crianças do acampamento. AtĂ© o momento, nem o corpo de NĂsio nem as pessoas raptadas foram encontrados.
O fato, pouco noticiado na grande mĂdia, expõe a situaĂ§Ă£o dramĂ¡tica de um povo que Ă© sistematicamente perseguido hĂ¡ 511 anos. De acordo com o Conselho Indigenista MissionĂ¡rio (Cimi), entre 2003 e 2010, 253 indĂgenas foram assassinados em Mato Grosso do Sul.
O poder dos latifundiĂ¡rios da regiĂ£o Ă© tamanho que nem a presença de representantes do governo federal e da Força de Segurança Nacional Ă© capaz de intimidĂ¡-los. Pouco depois da morte de NĂsio, um grupo de pistoleiros e fazendeiros parou um Ă´nibus com indĂgenas e entrou no veĂculo filmando e fotografando todos os presentes, em clara tentativa de intimidaĂ§Ă£o do movimento indĂgena. AlĂ©m de estarem fotografando indĂgenas ameaçados de morte, ainda conduziam veĂculos sem habilitaĂ§Ă£o.
Representantes do MinistĂ©rio da Casa Civil e da Força de Segurança Nacional que estavam a poucos metros do lugar do assĂ©dio solicitaram apenas que as fotos fossem apagadas das cĂ¢meras.
O cacique LĂ¡dio, filho de Marco Veron, lĂder indĂgena assassinado em 2003, esteve no dia 29 de novembro, em SĂ£o Paulo, em um ato promovido pela Rede de ProteĂ§Ă£o aos Militantes Ameaçados de Morte para denunciar os recentes assassinatos de indĂgenas em Mato Grosso do Sul.
A desnutriĂ§Ă£o flagela as crianças
AlĂ©m das mortes, LĂ¡dio apresentou o quadro geral da situaĂ§Ă£o de seu povo, que, ao ser expulso de suas terras, Ă© obrigado a morar na beira de estradas, em condições precĂ¡rias de moradia, nutriĂ§Ă£o e saĂºde, e correndo o risco de atropelamento. “Estamos espremidos entre a soja, a cana e a estrada, vivendo em barracas de lona sem ter o que comer. Estamos jogados na beira da estrada como lixo”, disse LĂ¡dio.
Em cima das terras dos guarani kaiowĂ¡ avança o agronegĂ³cio, seja por meio da produĂ§Ă£o de cana-de-aĂ§Ăºcar, pela plantaĂ§Ă£o de soja ou pelo pasto do boi. Um imenso deserto verde cobre vastas Ă¡reas indĂgenas em Mato Grosso do Sul. “Nossas terras em Mato Grosso do Sul estĂ£o passando por um processo de devastaĂ§Ă£o total; lĂ¡ um pĂ© de cana vale mais que um Ăndio, mais que uma criança indĂgena; um boi vale mais que toda uma comunidade indĂgena”, denunciou LĂ¡dio.
Enquanto o agronegĂ³cio se expande com incentivo do governo federal, a demarcaĂ§Ă£o das terras indĂgenas segue em marcha lenta. A ConstituiĂ§Ă£o de 1988 previu que todas as terras indĂgenas fossem demarcadas em cinco anos, mas, passados 23 anos, exceto em algumas Ă¡reas, principalmente na AmazĂ´nia, isso nĂ£o aconteceu.
O povo guarani kaiowĂ¡ tem direito Ă demarcaĂ§Ă£o de pelo menos 36 Ă¡reas. Desde 2007, aguardam a finalizaĂ§Ă£o do laudo antropolĂ³gico da Funai e a assinatura da PresidĂªncia da RepĂºblica para serem homologadas.
A demora nas demarcações causa revolta nos indĂgenas, agravada pelo fato de que veem o agronegĂ³cio entrar livremente nessas Ă¡reas, devastando-as para o plantio de gĂªneros de exportaĂ§Ă£o, como soja e cana, e a pecuĂ¡ria.
AlĂ©m da devastaĂ§Ă£o do meio ambiente em terras ainda nĂ£o demarcadas, os indĂgenas sofrem nas terras jĂ¡ demarcadas. O cacique LĂ¡dio disse que Ă© comum aviões dos grandes latifundiĂ¡rios sobrevoarem as terras indĂgenas despejando agrotĂ³xicos.
Outro problema enfrentado nos limites das terras demarcadas Ă© a descontinuidade entre as Ă¡reas. Por diversas vezes, os guarani kaiowĂ¡ sĂ£o obrigados a atravessar fazendas inteiras para acessar uma parte de terra demarcada onde hĂ¡ Ă¡gua ou outros recursos naturais. AlĂ©m de terem de percorrer longas distĂ¢ncias para conseguir Ă¡gua para beber, eles sĂ£o muitas vezes impedidos de cruzar as fazendas.
Guarani vĂtima de emboscada de grileiros de terras
Modelo agroexportador
Apesar de vĂ¡rias iniciativas e de alguns avanços civilizatĂ³rios, no Brasil e de modo geral em toda a AmĂ©rica Latina ainda nĂ£o superamos a herança colonial. Isso se reflete em alguns equĂvocos econĂ´micos que se perpetuam em nossa histĂ³ria. NĂ³s nos constituĂmos como exportadores de produtos primĂ¡rios ou manufaturados. No sĂ©culo XVI, o Brasil jĂ¡ exportava quantidades formidĂ¡veis de manufaturados, principalmente o aĂ§Ăºcar, e por aqui se utilizava a tecnologia de ponta da Ă©poca: os engenhos de aĂ§Ăºcar. PorĂ©m, a existĂªncia de tecnologia de ponta e o volume de exportaĂ§Ă£o nĂ£o se refletiram em desenvolvimento econĂ´mico para os brasileiros, exceto para alguns. AliĂ¡s, estes podemos nominar como a elite do Brasil, que sempre se preocupou em se integrar com as elites dos paĂses imperialistas, a europeia e mais recentemente a norte-americana, manifestando um imenso desprezo e afastamento de seu prĂ³prio povo.
Nas Ăºltimas dĂ©cadas, a demanda por matĂ©ria-prima em volume crescente, antes da Europa e Estados Unidos e mais recentemente da China, definiram um processo de prioridade, na pauta de exportaĂ§Ă£o do Brasil, de produtos primĂ¡rios. Uma das consequĂªncias de tal processo Ă© o aumento do poder polĂtico do agronegĂ³cio e a expansĂ£o da fronteira agrĂcola. A visĂ£o hegemĂ´nica, que considera o que acontece nas regiões de expansĂ£o da fronteira agrĂcola – o ganho de capital a curto prazo e o uso de tecnologia na forma de produtos transgĂªnicos, produtos quĂmicos, tratores e computadores – como sinĂ´nimo de progresso, Ă© tacanha. Na realidade, o Brasil estĂ¡ repetindo e agravando um modelo que reproduz e amplia o atraso, pois gera a devastaĂ§Ă£o da natureza com esgotamento de seus recursos e aprofunda o sofrimento e o empobrecimento das populações, como ocorre hoje com os guarani que vivem em Mato Grosso do Sul e outras populações do paĂs.
De outro lado, os principais antagonistas desse projeto − as populações indĂgenas, quilombolas, coletor-extrativistas e camponesas − representam os interesses mais progressistas e civilizatĂ³rios, que apontam para a superaĂ§Ă£o da herança colonial, incluindo o modelo econĂ´mico, e da ideologia construĂda para mantĂª-la. Mas, atĂ© o momento, os interesses retrĂ³grados prevalecem.
No fundo o cacique NĂsio Gomes, que foi assassinado
SubsistĂªncia ameaçada
Privados de suas terras, os guarani kaiowĂ¡, assim como outros povos indĂgenas espalhados pelo territĂ³rio brasileiro e suas fronteiras, tĂªm suas condições de subsistĂªncia seriamente ameaçadas, uma vez que a terra Ă© sua fonte de sustento. É a terra que provĂª o alimento, os remĂ©dios, enfim, tudo o que Ă© necessĂ¡rio para a reproduĂ§Ă£o da vida.
Tolhidos do direito de acesso Ă terra, sobrevivem com o pouco que podem plantar e o que conseguem comprar. LĂ¡dio informou que, em alguns casos, a comida nĂ£o Ă© suficiente para todos na aldeia, o que obriga os adultos a comer raĂzes cruas de Ă¡rvores para que as crianças e os idosos tenham o que comer.
Essa situaĂ§Ă£o eleva o Ăndice de mortalidade infantil entre os guarani kaiowĂ¡. De acordo com dados do MinistĂ©rio PĂºblico Federal, o coeficiente de mortalidade infantil entre esses indĂgenas Ă© de 38 a cada mil crianças nascidas vivas, muito superior Ă mĂ©dia nacional de 25 a cada mil crianças.
Outro Ăndice que assusta Ă© o de suicĂdio entre os jovens guarani kaiowĂ¡: o MinistĂ©rio PĂºblico Federal estima que chegue a 85 por cem mil pessoas.1 A proximidade com a cultura urbana e a falta de terra para viver de acordo com as tradições indĂgenas foram apontadas por LĂ¡dio como os principais motivos para os suicĂdios.
Apesar do quadro devastador, o povo guarani kaiowĂ¡ vai continuar lutando por seus direitos, retomando suas terras, realizando atos e passeatas para que a sociedade reconheça a tragĂ©dia em que vivem. “NĂ£o queremos cesta bĂ¡sica, queremos nossa terra para plantar. Nossa sobrevivĂªncia depende disso. NĂ£o vamos recuar, vamos lutar atĂ© o final. Nossa briga Ă© para podermos viver nas terras de nossos ancestrais e que, portanto, sĂ£o nossas por direito”, afirmou LĂ¡dio.
Caio Zinet, Israel "SassĂ¡" TupinambĂ¡, Mario Cabral
Pesquisadores fazem parte da Rede de ProteĂ§Ă£o aos Militantes Ameaçados de Morte
1 Dados disponĂveis em: www.secretariageral.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2011/12/13-12-2011-governo-federal-garante-politicas-publicas-para-indios-na-regiao-da-grande-dourados.
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