sĂ¡bado, 1 de dezembro de 2012

Para nĂ£o esquecer: “Casa da Morte” em PetrĂ³polis, que deve virar memorial, estimula a reflexĂ£o sobre o passado


A tranquila Rua Arthur Barbosa, em PetrĂ³polis, regiĂ£o serrana do Rio de Janeiro, quase passa despercebida. Provavelmente por isso, uma de suas casas funcionou, nos anos 1970, como aparelho clandestino do Centro de Informações do ExĂ©rcito (CIE), para repressĂ£o e extermĂ­nio de opositores da ditadura. A histĂ³ria da “Casa da Morte” estampou os jornais recentemente graças ao depoimento de uma sobrevivente do local, InĂªs Etienne Romeu. Mas ainda vai render alguns capĂ­tulos. Enquanto o atual dono da casa se nega a sair, a prefeitura declarou o imĂ³vel de “utilidade pĂºblica para fins de desapropriaĂ§Ă£o” e estĂ¡ negociando a estruturaĂ§Ă£o de um Memorial de Liberdade, Verdade e Justiça no local.
“O dono da casa diz que o testemunho de InĂªs Etienne Romeu nĂ£o Ă© suficiente para confirmar a existĂªncia do centro de tortura. De qualquer forma, o custeio da desapropriaĂ§Ă£o jĂ¡ estĂ¡ sendo decidido”, afirma Rafael Coelho, coordenador executivo do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de PetrĂ³polis (CDDH), uma das entidades que estĂ£o encabeçando o projeto do memorial. A ideia Ă© que o governo do estado, o governo federal e a prefeitura dividam o valor. “O projeto serĂ¡ estruturado com o apoio de governos, sociedade civil e organizações como o grupo Tortura Nunca Mais. O que temos em mente Ă© um centro de memĂ³ria com arquivos, fotos e outros materiais que nos permitam trabalhar com jovens essa parte da histĂ³ria que passa muito rĂ¡pido na escola”, diz Coelho. (RBN)
Numa Ă©poca em que comissões da verdade se espalham pelo paĂ­s, essa iniciativa ajuda a refletir sobre o passado – mas nĂ£o sem questionar as prĂ³prias funções de um memorial. “Na Argentina, todos os principais centros clandestinos de detenciĂ³nviraram centros de memĂ³ria. Mas lĂ¡ a participaĂ§Ă£o popular Ă© muito maior. Esse Ă© o ponto principal: os movimentos sociais e as pessoas atingidas pela repressĂ£o devem participar”, afirma o historiador Carlos BeltrĂ£o do Valle, que defendeu em agosto, na UniRio, uma dissertaĂ§Ă£o de mestrado sobre lugares de memĂ³ria da ditadura.
Uma das inspirações para o projeto petropolitano Ă© o Memorial da ResistĂªncia, criado em 2008 no antigo edifĂ­cio do Departamento Estadual de Ordem PolĂ­tica e Social de SĂ£o Paulo (Deops/SP). Ali sĂ£o realizadas exposições temporĂ¡rias e diversas atividades com estudantes, pesquisadores e ex-perseguidos polĂ­ticos. Segundo a diretora KĂ¡tia Felipini, em vez de tratar os temas da liberdade ou da repressĂ£o, o foco Ă© o conceito de resistĂªncia: “Se hoje vivemos uma democracia, Ă© porque teve quem lutou por isso”.
Valle tem algumas crĂ­ticas ao memorial de SĂ£o Paulo, e uma delas poderia ser aplicada ao espaço em PetrĂ³polis, pois ambos os prĂ©dios tiveram o interior alterado. “NĂ£o hĂ¡ mais algumas celas, e as inscrições dos presos nas paredes tiveram que ser refeitas. Parte do simbolismo e da originalidade foi perdida”, diz o historiador. Ele reafirma a importĂ¢ncia da iniciativa paulistana, mas pondera: “É claro que o melhor serĂ¡ a criaĂ§Ă£o de vĂ¡rios memoriais”.

EU, A CEU, A DITADURA E AS LUTAS SOCIAIS


Vindo de S. Paulo chegando a Curitiba em final de Agosto de 1978 ao desembarcar na rodoviĂ¡ria de pronto tive de enfrentar uma garoa fria. Com pouco dinheiro no bolso nĂ£o tinha condições de pagar um taxi. Pedi informações sobre o caminho para chegar ao Passeio PĂºblico, ponto de referĂªncia que me deram para chegar a CEU, que soberana reinava encravada no meio da maior Ă¡rea verde central. Era 5;30 da manhĂ£, enfrentando a intempĂ©rie comecei o que era para ser uma curta caminhada, haviam me dito que nĂ£o passava de dez quadras, “logo ali”. Depois de caminhar poucas centenas de metros a minha roupa jĂ¡ estava encharcada e a cada passo a mochila pesava cada vez mais. A garoa fria penetrava na alma, tremia de frio.

Ao avistar o Passeio PĂºblico depois da “longa” caminhada pela Mariano Torres a alegria tomou conta de mim pela certeza de que estava perto do destino. Sonhava acordado com uma bela xĂ­cara de cafĂ© quente. Pegando a rua Luis LeĂ£o contornei o parque, sendo que neste trajeto menor fui assombrado pelos terrĂ­veis gritos e fortes pancadas nas grades dadas por algum bicho enclausurado naquele recinto pĂºblico. Pensei com os meus botões: SerĂ¡ que ele estĂ¡ tĂ£o irritado com este clima como eu estou? Clima filha da puta, que fazia a garoa paulistana virar coisa pequena!

No fim da pequena curva lĂ¡ estava a imponente CEU. Tinha dois contatos na Casa, o meu primo Pedro e o meu amigo BatistĂ£o, velho amigo da infĂ¢ncia e adolescĂªncia na minha querida TupĂ£. Dirigi-me a portaria e fui muito bem atendido pelo porteiro “Gabriela”, apelido estranho pelo qual um morador ao qual ele atendia antes de mim o chamou, e perguntei sobre os dois. Era muito cedo e eles ainda estavam dormindo, era um domingo, achei uma sacanagem os acordar. Com a autorizaĂ§Ă£o do porteiro fui ao banheiro ao lado da portaria e vesti uma roupa seca, quente. Voltando a portaria perguntei sobre como poderia tomar um cafĂ© e ele me encaminhou para o refeitĂ³rio. Tomei uma generosa xĂ­cara de cafĂ© com leite e comi dois pĂ£es com geleia e margarina, na situaĂ§Ă£o que estava foi um verdadeiro banquete.

Voltando portaria lĂ¡ estava outro porteiro, se nĂ£o me engano era o Sabugaro. Perguntando a ele como poderia arrumar um canto para descansar ele me encaminhou a “sala dos outros”, um enorme quarto repleto de beliches. O local fedia a mofo, o que de cara atacou a minha renite. Resolvi esperar acordado na sala de recepĂ§Ă£o, desisti da ideia de dormir um pouco. Acabei cochilando sentado em uma das poltronas, ao despertar jĂ¡ passava das dez. Acordei com uma tremenda dor no pescoço. A Casa jĂ¡ estava toda agitada, cheia de vida. Levantei e fui ao banheiro tirar o gosto de cabo de guarda chuva da boca e me dirigi novamente Ă  portaria. O Batista havia saĂ­do e o meu primo Pedro ainda estava no quarto, para lĂ¡ me dirigi e fui carinhosamente muito bem recebido por ele. Conversamos atĂ© a hora do almoço e descemos para almoçar. No refeitĂ³rio me senti em um “internato anĂ¡rquico”, o enorme salĂ£o estava lotado e o ruĂ­do era ensurdecedor, um borburinho de risadas e vozes desencontradas, misturados com o som metĂ¡lico dos garfos se chocando com as bandejas.

Elogiei a comida e os da mesa disseram que nĂ£o era para me acostumar, pois durante a semana nĂ£o era assim. A CEU passava por uma sĂ©ria crise causada pela mĂ¡ gestĂ£o dos recursos. A diretoria anterior havia desperdiçado muito dinheiro fazendo banquetes em homenagem aos polĂ­ticos ligados Ă  ditadura.

Logo que em 1978 cheguei a Curitiba, tendo como referencial a CEU, o MDB e a OposiĂ§Ă£o BancĂ¡ria, ao entrar em contato com a realidade para aqui poder me reorganizar jĂ¡ me engajei politicamente. AtravĂ©s destes amigos pude saber que existia um foco de oposiĂ§Ă£o começando a se reorganizar, e que este organizava uma panfletagem pela libertaĂ§Ă£o da FlĂ¡via Schilling, brasileira presa polĂ­tica no Uruguai. Ocorreu um panfletagem no campo do Coxa, era dia de Atletiba. Todo mundo muito tenso no executar da aĂ§Ă£o, aqui tambĂ©m a ditadura imperava. Do grupo participavam alguns ex-presos polĂ­ticos, sindicalistas de oposiĂ§Ă£o e vĂ¡rios estudantes, entre eles alguns moradores da CEU.

Anteriormente os professores estaduais havia tentando uma paralisaĂ§Ă£o grevista em 1977 e os estudantes da Federal haviam feito um protesto ocupando o prĂ©dio da Reitoria, fato tambĂ©m ocorrido em 1978, onde foram duramente reprimidos. A oposiĂ§Ă£o Ă  ditadura retomava os espaços nas ruas, e nela a CEU, junto com os demais segmentos democrĂ¡ticos, começava a se reengajar de forma mais massiva e neste Movimento fez a diferença.

Em 1979 vĂ¡rios ceuenses tinham forte presença no Movimento Cultural em Curitiba. Na Casa existiam muitos artistas amadores experimentais vanguardistas (poetas, cronistas, cineastas e cinĂ©filos, etc.), sendo que estes participavam ativamente das atividades que ocorriam na Casa RomĂ¡rio Martins, local onde o cinema arte resistiu com apoio institucional, coisa rara naquele triste perĂ­odo de escuridĂ£o.

1979 foi um ano crucial para a vida em sociedade em nossa capital, e no desenrolar deste os ceuenses ocuparam um grande espaço na luta pelo retorno do Estado de Direito. Tanto na UFPR como na CatĂ³lica os estudantes partiam para a reorganizaĂ§Ă£o das suas entidades de base e a CEU era parte importante nesse processo. No meio do ano o Teatro GuaĂ­ra acabou com a meia entrada para os estudantes e da CEU serviu como base (reuniões secretas nos quartos, pinturas das faixas, etc.) para a organizaĂ§Ă£o da “ManifestaĂ§Ă£o Teatro para o Povo”, ato que reuniu perto de 1.000 pessoas, coisa rara para a Ă©poca e ainda mais para a conservadora Curitiba. Ocorreu forte repressĂ£o policial com o uso de cassetetes e gĂ¡s contra os manifestantes.

Com a uniĂ£o de vĂ¡rios segmentos sociais surge em Curitiba o CBA (ComitĂª Brasileiro pela Anistia Ampla Geral e Irrestrita), dele os ceuenses tambĂ©m participaram (reuniões, atos pĂºblicos, panfletagens, colagem de cartazes, pixações, etc.), como participaram do ComitĂª de Solidariedade aos Trabalhadores em Greve. As greve pipocavam, sendo as maiores as que envolveram os professores e os trabalhadores da construĂ§Ă£o civil. Nesta Ăºltima os ceuenses deram grande contribuiĂ§Ă£o na central de distribuiĂ§Ă£o de alimentos, que funcionou na Igreja do Guadalupe.

Este ano, 1979, tambĂ©m foi vital para o Movimento Estudantil, a UNE Ă© reconstruĂ­da no Congresso que aconteceu em Salvador/Bahia. Os ceuenses participaram ativamente do processo de escolha dos delegados, sendo que entre estes vĂ¡rios eram moradores da CEU.  
Continua ....

 
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