Nossa repĂ³rter passou mais de 15 horas entrevistando um ex-delegado da ditadura. Enfrentou resistĂªncia, informações desencontradas e atĂ© um suposto pacto de silĂªncio – um embate que antecipa os desafios da ComissĂ£o da Verdade
Aos 80 anos, JosĂ© Paulo Bonchristiano conserva o porte imponente dos tempos em que era o “doutor Paulo”, delegado do Departamento de Ordem PolĂtica e Social de SĂ£o Paulo, “o melhor departamento de polĂcia da AmĂ©rica Latina”, nĂ£o se cansa de repetir.“O DOPS era um Ă³rgĂ£o de inteligĂªncia policial, fazĂamos o levantamento de todo e qualquer cidadĂ£o que tivesse alguma coisa contra o governo, chegamos a ter fichas de 200 mil pessoas durante a revoluĂ§Ă£o”, diz, referindo-se ao golpe militar de 1964, que deu origem aos 20 anos de ditadura no Brasil.
Embora esteja aposentado hĂ¡ 27 anos, nĂ£o hĂ¡ nada de senil em sua atitude ou aparĂªncia. Os olhos astutos de policial ainda dispensam os Ă³culos para perscrutar o rosto do interlocutor, endurecendo quando o delegado acha que Ă© hora de encerrar o assunto.
Bonchristiano gosta de dar entrevistas, mas nĂ£o de responder a perguntas que lancem luz sobre os crimes cometidos pelo aparelho policial-militar da ditadura do qual participou entre 1964 e 1983: prisões ilegais, sequestros, torturas, lesões corporais, estupros e homicĂdios que, segundo estimativas da Procuradoria da RepĂºblica, vitimaram cerca de 30 mil cidadĂ£os. Destes, 376 foram mortos, incluindo mais de 200 que continuam atĂ© hoje desaparecidos.
Os arquivos do DOPS se tornaram pĂºblicos em 1992, mas muitos documentos foram retirados pelos policiais quando estavam sob a guarda do entĂ£o diretor da PolĂcia Federal e ex-diretor geral do DOPS, Romeu Tuma. Entre os remanescentes estĂ£o os laudos periciais falsos, produzidos no prĂ³prio DOPS, que transformavam homicĂdios cometidos pelos agentes do Estado em suicĂdios, atropelamentos, fugas. No caso dos desaparecidos, os corpos eram enterrados sob nomes falsos em valas de indigentes em cemitĂ©rios de periferia.
Globo, Folha, Bradesco – e Niles Bond
Bonchristiano Ă© um dos poucos delegados ainda vivos que participaram desse perĂodo, mas ele evita falar sobre os crimes. Prefere soltar o vozeirĂ£o para contar casos do tempo em que os generais e empresĂ¡rios o tratavam pelo nome. Roberto Marinho, da Globo, diz, “passava no DOPS para conversar com a gente quando estava em SĂ£o Paulo”, e ele podia telefonar a OctĂ¡vio Frias, da Folha de S. Paulo “para pedir o que o DOPS precisasse”. Quando participou da montagem da PolĂcia Federal em SĂ£o Paulo, conta, o fundador do Bradesco mobiliou a sede, em HigienĂ³polis: “NĂ³s do DOPS falamos com o Amador Aguiar ele mandou por tudo dentro da rua PiauĂ, atĂ© mĂ¡quina de escrever”.
O “doutor Paulo” sorri enlevado ao lembrar dos momentos passados com o marechal Costa e Silva (o presidente que assinou o AI-5 em dezembro de 1968, suspendendo as garantias constitucionais da populaĂ§Ă£o). “O Costa e Silva, quando vinha a SĂ£o Paulo, dizia: ‘Eu quero o doutor Paulo Bonchristiano’”, e imita a voz do marechal – ele adora representar os casos que conta.
“Eu fazia a escolta dele e ele me chamava para tomar um suco de laranja ou comer um sanduĂche misto na padaria Miami, na rua TutĂ³ia, vizinha ao quartel do II ExĂ©rcito. Todo mundo querendo saber onde estava o presidente da RepĂºblica, e eu ali”, delicia-se.
Gaba-se de ter sido enviado para “cursos de treinamento em Langley” nos Estados Unidos, pelo cĂ´nsul geral em SĂ£o Paulo, Niles Bond, que admirava a “eficiĂªncia” da polĂcia polĂtica paulista. E o chamava de “Mr. Dops”.
Orgulha-se tambĂ©m de outro apelido – “PaulĂ£o, Cacete e Bala” – que diz ter saĂdo da boca dos “tiras” quando “caçava bandidos” na RUDI (Rotas Unificadas da Delegacia de InvestigaĂ§Ă£o), no inĂcio da carreira, com um “tira valente” chamado SĂ©rgio Fleury. Anos depois, os dois se reencontrariam na RĂ¡dio Patrulha, de onde saiu a turma do EsquadrĂ£o da Morte, levada para o DOPS em 1969, quando Fleury entrou no Ă³rgĂ£o.
“PolĂcia Ă© polĂcia, bandido Ă© bandido”, diz Bonchristiano. “Para vocĂªs de fora Ă© diferente, mas para nĂ³s, acabar com marginal Ă© uma coisa positiva. O meu colega Fleury merecia um busto em praça pĂºblica”, afirma, sem corar.
O delegado SĂ©rgio Fleury e sua turma de investigadores se celebrizaram por caçar, torturar e matar presos polĂticos no DOPS, enquanto continuavam a exterminar suspeitos de crimes comuns no EsquadrĂ£o da Morte.
Conversas gravadas
No decorrer de nove tardes passadas, entre junho de 2011 e janeiro deste ano, em seu apartamento no Brooklin, no 13º andar de um prĂ©dio de classe mĂ©dia alta, aprendi a escutar com paciĂªncia os “causos” que “doutor Paulo” narra com humor feroz, atĂ© extrair informações relevantes. Repetidas vezes eu as confrontava com livros e documentos e voltava a inquiri-lo; a proposta era que ele se responsabilizasse pelo que dizia.
De certo modo, meu embate com o “doutor Paulo” antecipava as dificuldades que serĂ£o enfrentadas pela ComissĂ£o da Verdade, a ser instalada em abril para apurar fatos e responsĂ¡veis – sem puniĂ§Ă£o penal prevista – pelas violações de direitos humanos cometidas pelo Estado entre 1946 e 1988, abrangendo o perĂodo da ditadura militar. O objetivo da comissĂ£o Ă© devolver aos cidadĂ£os brasileiros um passado que ainda nĂ£o se encerrou, como provam os desaparecidos, e impedir que funcionĂ¡rios pĂºblicos sigam mantendo segredo sobre atos praticados a mando do Estado.
A fragilidade da lei em pontos cruciais, porĂ©m, provoca ceticismo nas organizações de direitos humanos, em especial ao permitir o sigilo de depoimentos – ferindo o direito Ă transparĂªncia pĂºblica –, e ao nĂ£o prever punições aos responsĂ¡veis pelos crimes, nem mesmo medidas coercitivas para os que se recusarem a depor.
“NĂ£o vou depor. Acho bobagem”, diz Bonchristiano. “Nunca pratiquei irregularidades, mas nĂ£o sou dedo duro e nĂ£o vejo utilidade nessa comissĂ£o”, justifica o funcionĂ¡rio pĂºblico, aposentado aos 53 anos, e que recebe hoje 11 mil reais por mĂªs de pensĂ£o.
Minhas conversas com Mr. DOPS renderam 15 horas de gravaĂ§Ă£o que revelam a mentalidade e as conexões polĂticas dos policiais que atuaram na repressĂ£o do governo militar. E provam que os detentores das informações estĂ£o por aĂ – embora continuem ocultando as circunstĂ¢ncias exatas em que os crimes foram cometidos e os mandantes de cada um deles.
Torturadores e repressores
O nome de Bonchristiano – que significa “bom cristĂ£o” e veio de Salerno, ItĂ¡lia – nĂ£o consta das principais listas de torturadores compiladas por organizações de direitos humanos.
O Projeto Brasil Nunca Mais, um extenso levantamento realizado clandestinamente entre 1979 e 1985 com base nos IPMs (inquĂ©ritos policiais militares), Ă© atĂ© hoje a principal referĂªncia, embora muitas vezes liste apenas os “nomes de guerra” dos torturadores, jĂ¡ que os reais eram desconhecidos das vĂtimas.
No tomo II, volume 3, “Os funcionĂ¡rios”, Paulo Bonchristiano Ă© citado oito vezes em operações de repressĂ£o. Mas seu nome tambĂ©m nĂ£o consta da chamada Lista de Prestes, de 1978, liberada recentemente pela viĂºva do lĂder comunista, que traz vĂ¡rios nomes completos e os cargos de 233 torturadores denunciados por presos polĂticos – entre eles 58 policiais do DOPS de SĂ£o Paulo, 21 deles delegados.
As lacunas dessa histĂ³ria, porĂ©m, nĂ£o permitem descartar a revelaĂ§Ă£o de novos nomes. Entre 1968 e 1976 – o perĂodo mais duro da ditadura –, as torturas faziam parte do cotidiano de todos os policiais e militares envolvidos na repressĂ£o. O DOPS era “manejado pelos militares como um Ă³rgĂ£o federal”, como observa o jornalista Percival de Souza no livro “AutĂ³psia do Medo”, do qual o Paulo Bonchristiano participa como fonte e personagem, qualificado como “um dos delegados mais conhecidos do DOPS”.
Nas entrevistas Ă PĂºblica, o ex-delegado resistiu duas tardes inteiras antes de admitir que se torturava e matava no “melhor departamento de polĂcia da AmĂ©rica Latina” – o que hoje qualquer cidadĂ£o pode constatar atravĂ©s dos depoimentos reunidos no “Memorial da ResistĂªncia”, museu que desde 2002 ocupa as antigas instalações do DOPS, no centro de SĂ£o Paulo.
Nem mesmo o fato de SĂ©rgio Fleury ter se celebrizado como torturador impediu Bonchristiano de tentar isentar o Ă³rgĂ£o: “O Fleury era do DOPS e nĂ£o era do DOPS, era o homem de ligaĂ§Ă£o do DOPS com os militares, era delegado das Forças Armadas, do Alto Comando. NĂ£o obedecia a ninguĂ©m, interrogava presos no DOPS, no DOI-CODI, em delegacias, sĂtios, no paĂs inteiro. Todo o segundo andar do DOPS era dele, tinha que telefonar antes: ‘Fleury eu vou descer pra falar com vocĂª’. Se nĂ£o, a gente nĂ£o entrava. Ele tinha uma porta lĂ¡, todo misterioso”.
Bonchristiano ainda se lembra, e muito bem, das antigas desavenças com o ex-colega.
“O Fleury estava em todas, se metia em tudo, perdi muitos ‘tiras’ para ele porque lĂ¡ eles ganhavam mais, tinha um ‘por fora’”, contou na segunda entrevista. “Uma vez prendi um cara em um aparelho no TremembĂ©, e quando estava chegando no DOPS, o Fleury pediu o preso emprestado, nĂ£o lembro o nome dele. Depois de dois dias sem notĂcias do preso, fui perguntar para o Fleury, e ele me pediu desculpas, tinha matado o cara que eu nem ouvi”, relata, como se fosse um contratempo na repartiĂ§Ă£o. “Chegou uma hora que sĂ³ ele que dominava. SĂ³ se falava dele”.
“Graças a Deus sĂ³ se fala no Fleury”, reagiu dona Vera, a elegante senhora com quem o ex-delegado Ă© casado hĂ¡ 53 anos, que entrava na sala trazendo refrigerantes. E emendou: “ZĂ© Paulo, essa entrevista jĂ¡ nĂ£o estĂ¡ durando demais?”, frase que ela repetiria muitas vezes depois.
Foi na terceira entrevista – quando jĂ¡ acumulĂ¡vamos seis horas de gravaĂ§Ă£o – que o “doutor Paulo”, sem dona Vera na sala, finalmente confirmou que “sabia de tudo” o que acontecia no DOPS. E se “justificou”: “Eu nĂ£o podia fazer nada, isso era com o pessoal de lĂ¡ de cima. Eu era delegado de segunda classe, respondia apenas ao diretor do DOPS, o resto era com eles”.
Bonchristiano tornou-se delegado de 2ª classe em 1969 e foi promovido “por merecimento” a delegado de 1ª classe em 1971.
Naquele mesmo dia, admitiu que frequentava os outros centros de tortura montados em SĂ£o Paulo a partir de 1969, como a OBAN (OperaĂ§Ă£o Bandeirante) e o DOI-CODI, comandados pelo ExĂ©rcito e compostos de policiais civis e militares instruĂdos a torturar. SĂ³ no perĂodo de 1970 a 1974, a Arquidiocese de SĂ£o Paulo reuniu 502 denĂºncias de tortura no DOI-CODI paulista, apelidado jocosamente pelos policiais de “Casa da VovĂ³”.
Bonchristiano disse entĂ£o que “alguns da diretoria do DOPS” participaram da montagem da OBAN – “os militares nĂ£o entendiam nada de polĂcia, depois aprenderam” – e que cederam trĂªs delegados no inĂcio das operações, todos incluĂdos entre os torturadores na Lista de Prestes: OtĂ¡vio Medeiros, ligado ao CCC (Comando de Caça aos Comunistas) e Ă TFP (TradiĂ§Ă£o, FamĂlia e Propriedade), assassinado em 1973 por militantes da resistĂªncia armada; Renato d’Andrea, colega de Bonchristiano na Faculdade de Direito da PUC; e Raul Nogueira de Lima, o Raul Careca, ex-investigador subordinado a Bonchristiano e ligado ao CCC, que se tornaria delegado depois.
Levaram tambĂ©m os mĂ©todos da polĂcia, incluindo o pau-de-arara – na origem um cabo de vassoura apoiado em duas mesas, onde os policiais deixavam o preso pendurado por pulsos e tornozelos atĂ© que a dor insuportĂ¡vel os fizesse “confessar”.
“O pau-de-arara nĂ£o Ă©, assim, uma tortura, vai tensionando os mĂºsculos, se o cara falar logo nĂ£o fica nem marca, mas se o cara for macho e segurar…”, explicou-me ele certa vez. Diante de minha expressĂ£o escandalizada, concedeu: “choques, sim, dependendo”. E completou: “Naquela Ă©poca foi diferente, o governo estava tentando melhorar o paĂs. AĂ nĂ³s tivemos que fazer essa luta. Nunca considerei os comunistas bandidos, considerava ideologicamente inimigos. Tanto que eu sempre falei, nĂ£o poderia haver mortes”.
Bonchristiano disse que frequentava a OBAN e o DOI-CODI para “buscar presos, nĂ£o para levar”, buscando distanciar-se das mal afamadas equipes de captura da OBAN, que realizavam prisões ilegais. Alguns eram soltos sem que sua passagem nos Ă³rgĂ£os policiais fosse sequer registrada; outros eram enviados para os cĂ¡rceres do DOPS, onde assinavam as “confissões” e tinham a “prisĂ£o preventiva” decretada.
“MaĂ§Ă£ Dourada”, os paramilitares e o DOPS
Em seus primeiros anos no DOPS, Bonchristiano se especializou em infiltrações em movimentos sindicais, mas a partir de 1968 os estudantes se tornaram prioridade. “Quem faz revoluĂ§Ă£o Ă© estudante, operĂ¡rio faz revoluĂ§Ă£o na RĂºssia”, costumava dizer.
Uma das operações das quais mais se orgulha, que o levou Ă s pĂ¡ginas de revistas e jornais, foi o desmantelamento do Congresso da UniĂ£o Nacional dos Estudantes em IbiĂºna, em 12 de outubro de 1968, comandado por ele. “Prendi 1263 estudantes sem disparar um tiro”, diz – embora os policiais do DOPS e da Força PĂºblica de Sorocaba tenham comprovadamente anunciado sua chegada com rajadas de metralhadora para o ar. “Coloquei a garotada em 100 Ă´nibus cedidos pela (viaĂ§Ă£o) Cometa e levei todo mundo para o DOPS. Separei os lĂderes e liberei o resto para ir para casa. NĂ£o tĂnhamos vontade de matĂ¡-los, eram estudantes”, ironiza.
Entre os 11 lĂderes que Bonchristiano mandou para o Forte de Itaipu, em Santos, estĂ£o os ex-ministros Franklin Martins e JosĂ© Dirceu, e o lĂder estudantil Luiz Travassos, jĂ¡ falecido.
“Eu sabia tudo o que o Dirceu fazia porque ele era metido a galĂ£ e eu coloquei uma agente nossa para seduzi-lo”, gaba-se o delegado. “Ela era muito bonita, a MaĂ§Ă£ Dourada, e me contava todos os passos dele”, diz o delegado. A “estudante” HeloĂsa Helena MagalhĂ£es, uma das 40 moças contratadas pelo DOPS para esse tipo de serviço, segundo ele, chegou a ser secretĂ¡ria de Dirceu na UNE (na verdade, JosĂ© Dirceu foi diretor da UEE).
Dias antes, havia acontecido o famoso embate entre estudantes de direita reunidos no Mackenzie e estudantes da Faculdade de Filosofia da USP, na rua Maria Antonia, base de resistĂªncia contra a ditadura. Pelo lado da direita, os conflitos foram publicamente liderados por JoĂ£o Marcos Flaquer, fundador do CCC, organizaĂ§Ă£o paramilitar idealizada por LuĂs Antonio Gama e Silva, o jurista que redigiu o AI-5 apĂ³s se afastar da reitoria da USP para assumir o MinistĂ©rio da Justiça de Costa e Silva.
Flaquer nĂ£o era do Mackenzie – estava no Ăºltimo ano de Direito na USP – e dividia o comando dos combates com Raul Nogueira de Lima, o Raul Careca, “tira” do DOPS, subordinado a Bonchristiano. Oficialmente, a polĂcia sĂ³ entrou no campus no segundo dia de conflitos, depois que um tiro, atribuĂdo a um membro do CCC, Ricardo Osni, atingiu um estudante secundarista. Mas, segundo Bonchristiano, havia outras forças por trĂ¡s dos conflitos:
“Foi o JoĂ£o Marcos que fundou o CCC e salvou os estudantes de passarem todos para o comunismo, por isso os americanos tambĂ©m gostavam dele”, diz o ex-delegado. “Ele tinha uma capacidade fabulosa, era forte demais, um cara fora de sĂ©rie, muito meu amigo. Eu o conhecia desde o segundo ano da faculdade, ele queria ser delegado mas a famĂlia dele era muito rica e nĂ£o o queria metido com polĂcia, entĂ£o ele vinha para o DOPS comigo. Ele dirigia toda essa parte de estudantes, infiltrava gente entre os esquerdistas. Se tinha alguma coisa que interessava ao DOPS, ele fazia. Mas sĂ³ com minha anuĂªncia”, gaba-se o ex-delegado, que diz participado do planejamento do conflito.
O CCC começou com cerca de 400 membros e chegou a reunir 5 mil homens – boa parte deles militares e policiais. Andavam armados, espancavam estudantes e artistas que se opunham Ă ditadura e seus atentados mataram pelo menos duas pessoas.
JoĂ£o Marcos Flaquer, Ricardo Osni, JoĂ£o Parisi Filho e JosĂ© Parisi, “estudantes” do CCC, eram colaboradores do DOI-CODI e constam da lista de torturadores do Brasil Nunca Mais.
Os dois primeiros, bem como o mentor Gama e Silva, tambĂ©m participavam de encontros que reuniam policiais da CIA e do DOPS. “A especialidade da CIA era fomentar organizações paramilitares como o CCC. Acho bem possĂvel que eles recebessem, alĂ©m de apoio, dinheiro”, diz a sociĂ³loga Martha Huggins, da Tulane University, New Orleans, pesquisadora de programas de treinamento de policiais estrangeiros pela CIA.
Afinidades eletivas: o DOPS e a CIA
Bacharel de Direito pela PUC-SP, filho de uma farmacĂªutica e um bancĂ¡rio, JosĂ© Paulo Bonchristiano nĂ£o entrou na polĂcia polĂtica por acaso. Ele e a turma de amigos da faculdade – seis deles futuros delegados do DOPS – eram anticomunistas viscerais e catĂ³licos conservadores, e representavam a direita no centro acadĂªmico 22 de agosto.
Esse perfil agradava ao experiente delegado Benedito de Carvalho Veras, que os recrutou em 1957 quando cursavam o Ăºltimo ano de Direito e faziam estĂ¡gio na polĂcia. Veras, que se tornaria secretĂ¡rio de segurança do governador JĂ¢nio Quadros no ano seguinte, estava Ă procura de quadros para modernizar a polĂcia, sob orientaĂ§Ă£o do Programa do Ponto IV – idealizado pelo presidente americano, Harry Truman, com o objetivo de prevenir a “infiltraĂ§Ă£o comunista”. Isso se traduzia na combinaĂ§Ă£o de ajuda econĂ´mica e treinamento das forças policiais dos paĂses da regiĂ£o.
A intenĂ§Ă£o era “profissionalizar” a polĂcia brasileira – sobretudo os que lidavam com crimes polĂticos e sociais – para que barrassem o comunismo sob qualquer governo.
No mesmo ano em que Veras assumia a secretaria de segurança e nomeava Bonchristiano como delegado substituto de polĂcia, uma deputada (ConceiĂ§Ă£o da Costa Neves, do PTB, que fazia oposiĂ§Ă£o ao entĂ£o governador JĂ¢nio Quadros) denunciava publicamente ter sido vĂtima de um grampo telefĂ´nico. “Foi o primeiro grampo que se tem notĂcia em SĂ£o Paulo”, conta o ex-delegado, que conheceu de perto o autor da “inovaĂ§Ă£o tecnolĂ³gica”, o escrivĂ£o Armando Gomide, futuro agente do Serviço Nacional de Informações (SNI). Gomide havia aprendido o “grampo” com os instrutores do Ponto IV, que tambĂ©m forneceram equipamentos para melhorar a qualidade das gravações.
Em 1962, o programa passou a ser dirigido pelo OPS – Office of Public Safety – uma “cĂ©lula da CIA incrustrada dentro da AID (Agency for International Development, no Brasil, mais conhecida como USAID)”, nas palavras da professora Martha Huggins.
AlĂ©m de treinar 100 mil policiais no Brasil, a OPS-CIA selecionava policiais e oficiais militares para estudar em suas escolas no PanamĂ¡ (1962-1964); e nos Estados Unidos, depois que a Academia Internacional de PolĂcia (IPA) foi inaugurada em 1963 em Washington, funcionando atĂ© 1975. No Brasil, o OPS ficou atĂ© 1972, quando o Congresso americano começou a investigar as denĂºncias de que o programa patrocinava aulas de tortura.
A IPA foi um das “escolas” nos Estados Unidos que recebeu Bonchristiano antes mesmo do golpe militar. Dois anos antes – logo depois de ser aprovado no concurso para delegado de 5ª classe, o inĂcio da carreira, ele jĂ¡ frequentava a casa do diretor DOPS Ribeiro de Andrade, no Jardim LusitĂ¢nia, em SĂ£o Paulo. “Ele estava sempre de portas abertas para nĂ³s, ficĂ¡vamos lĂ¡ conspirando”, ironiza.
Foi ali que Bonchristiano conheceu o policial americano Peter Costello, que veio para o Brasil em 1962 como instrutor da OPS depois de treinar 2.500 homens em tĂ©cnicas de controle de distĂºrbios na CorĂ©ia. “Era um sujeito austero, falava portuguĂªs e entendia de polĂcia, deu curso de algemas, tiro rĂ¡pido e outros para os policiais do DOPS, conta, completando: “Alguns meninos do CCC tambĂ©m participaram”.
Antes de 1964 os delegados do DOPS jĂ¡ contavam com a ajuda dos americanos para identificar os “comunistas”, muitos deles presos logo depois do golpe. “A ordem que a gente tinha desde o começo era identificar e prender todos os comunistas. QuerĂamos acabar com o Partido Comunista”, diz Bonchristiano.
Para contribuir com essa missĂ£o, “o Ponto IV nos contemplou com fotografias dos frequentadores (brasileiros) dos cursos de guerrilha na China”, relatou Renato d’Andrea, um dos delegados que foram da turma de Bonchristiano na PUC, ao jornalista Percival de Souza.
Na primeira operaĂ§Ă£o importante que Bonchristiano realizou no DOPS, em abril de 1964, foi a vez de retribuir, entregando aos americanos as 19 cadernetas apreendidas na casa do lĂder comunista Luiz Carlos Prestes. As cadernetas foram xerocadas nos Estados Unidos (aqui ainda nĂ£o existia o xerox) e retornaram 15 dias depois para o Brasil, servindo de base para a prisĂ£o de diversos militantes comunistas.
SĂ³ sobraram as cĂ³pias das cadernetas de Prestes, hoje nos arquivos do DOPS – os originais, segundo o “doutor” Paulo, desapareceram. Por aqui as cadernetas serviram de base a um dos maiores IPMs da primeira fase da ditadura, e foram usadas como justificativa para a prisĂ£o de diversos militantes comunistas como Carlos Marighella, que o prĂ³prio Bonchristiano foi encarregado de conduzir a SĂ£o Paulo, depois que ele havia sido preso e baleado em um cinema no Rio, em 1964. Solto em 1965, Marighella foi assassinado em uma emboscada de policiais do DOPS em 1969.
“É uma bobagem danada dizer que a CIA mandava no DOPS, que nĂ³s Ă©ramos agentes da CIA, nĂ£o era nada disso, nĂ³s Ă©ramos delegados do DOPS”, resmunga o doutor Paulo. “A AmĂ©rica do Sul sempre foi o quintal dos Estados Unidos, e eles olhavam muito para nĂ³s, tinham medo do Brasil se tornar comunista. E notaram que tinha um departamento de polĂcia em SĂ£o Paulo que trabalhava firme nisso. Porque o DOPS de SĂ£o Paulo fazia todos os levantamentos que conduzissem a algum elemento do Partido Comunista em todo o Brasil, na AmĂ©rica Latina inteira”.
Mr. Dops e Mr. Bond
“Depois que o presidente Truman criou a CIA, era a CIA que acompanhava o movimento dos subversivos”, continua. “EntĂ£o trabalhĂ¡vamos juntos, viajĂ¡vamos juntos em muitos casos, mas nossas reuniões eram fora do DOPS, na happy hour de bares de hotĂ©is como o Jandaia e o JaraguĂ¡, no centro de SĂ£o Paulo. O Fleury tambĂ©m ia, o Flaquer, o Gama e Silva e atĂ© o Carlos Lacerda (ex-governador do Rio, que conspirou pelo golpe e acabou sendo cassado em 1968). O Niles Bond era chefe lĂ¡ deles, sujeito bacana, conhecia bem o Brasil, e gostava muito de mim. Me chamava de Mr. Dops, porque eu sempre o atendia em tudo que precisava e era ele que me mandava para Langley”, frisa mais uma vez, mostrando uma foto sua com trajes de George Washington ao lado de um colega fantasiado de soldado federalista, tirada durante uma de suas estadas em Washington (FOTO).
“NĂ£o lembro quando foi tirada porque estive oito vezes em cursos de treinamento nos Estados Unidos (entre 1963 e 1970)”, diz ele. “Fiz cursos tĂ©cnicos, de polĂgrafo, tĂ©cnicas de inteligĂªncia, infiltraĂ§Ă£o. E sobre o comunismo tambĂ©m, eles tinham verdadeira obsessĂ£o. SaĂ de lĂ¡ convencido de que eles, sim, sĂ£o duros, fazem o que for preciso para garantir seus princĂpios”.
Entre 1959 e 1969, Niles W. Bond foi adido da embaixada no Rio e cĂ´nsul geral em SĂ£o Paulo, segundo seu currĂculo na Association for Diplomatic Studies and Training, que tambĂ©m aponta a ligaĂ§Ă£o com a CIA desde 1956, quando era assessor polĂtico da embaixada italiana.
Langley, frequentemente usado como sinĂ´nimo de CIA nos Estados Unidos, Ă© o nome dos arredores da pequena cidade de McLean, na Virginia, onde desde o inĂcio da dĂ©cada de 1960 ficam os “headquarters” da agĂªncia de inteligĂªncia americana, a alguns quilĂ´metros de Washington.
Com o tempo, descobri que quando o doutor Paulo se referia a Langley, significava que estava em treinamento em instalações na CIA, nĂ£o apenas na sede, mas “em muitos outros lugares, atĂ© na FlĂ³rida”, como confirmou depois.
As informações sobre a CIA foram reveladas por doutor Paulo quando o inquiri sobre sua transferĂªncia, em 1ª de setembro de 1964, para o MinistĂ©rio da Guerra, lotado no II ExĂ©rcito – informaĂ§Ă£o que obtive checando todas as suas nomeações, transferĂªncias e promoções no DiĂ¡rio Oficial (seu currĂculo oficial omite essa significativa passagem).
Ele diz que foi transferido porque havia sido encarregado (com mais trĂªs delegados) de montar um plano de estruturaĂ§Ă£o da PolĂcia Federal pelo general Riograndino Kruel, irmĂ£o do comandante do II ExĂ©rcito, Amaury Kruel (ambos tambĂ©m treinados nos Estados Unidos): “O Edgar Hoover (fundador do FBI) Ă© um cara que admiro muito, e os americanos achavam muito importante montar uma polĂcia como essa no Brasil – o DOPS paulista jĂ¡ atuava como polĂcia federal, mas era subordinado Ă secretaria de segurança estadual, o que atrapalhava nossos movimentos”, explicou.
AtĂ© hoje a PolĂcia Federal registra seus agradecimentos Ă “revoluĂ§Ă£o de 1964” no site oficial da entidade: “Somente em 1964, com a mudança operada no pensamento polĂtico da NaĂ§Ă£o, a idĂ©ia da criaĂ§Ă£o de um Departamento Federal de Segurança PĂºblica, com capacidade de atuaĂ§Ă£o em todo o territĂ³rio, prosperou e veio a tornar-se realidade”.
O capitĂ£o americano e a guerrilheira
“Felizmente aqui no Brasil nĂ£o fizemos como em outros paĂses, matanças. NĂ£o houve isso. Houve sĂ³ morte de quem quis enfrentar a polĂcia. Isso em qualquer lugar do mundo. Quando uma guerrilha deles lĂ¡, um aparelho, matou o nosso colega lĂ¡ em Copacabana, o Moreira, o que nĂ³s tinhamos que fazer? Descobrir os caras e matar tambĂ©m”, ri. “PolĂcia Ă© assim”, avalia o “doutor” Paulo.
Dulce de Souza Maia, militante da VPR (Vanguarda Popular RevolucionĂ¡ria) sentiu na carne o peso dessa vingança, quando foi presa na madrugada do dia 25 de janeiro de 1969, enquanto dormia na casa da mĂ£e.
Dois dias antes, vĂ¡rios lĂderes da VPR tinham sido presos e os repressores jĂ¡ sabiam que ela havia participado de um atentado a bomba no II ExĂ©rcito, que matou o sentinela Mario Kozel Filho. TambĂ©m havia sido erroneamente apontada como uma das autoras do atentado que em 1968 matou o capitĂ£o do ExĂ©rcito americano, Charles Chandler, acusado pelos guerrilheiros de dar aulas de tortura no Brasil a serviço da CIA.
Dulce nĂ£o sabe dizer se todos que a torturaram no quartel da PolĂcia do ExĂ©rcito eram militares, mas sua lembrança mais forte Ă© a cara redonda do homem que a estuprou, depois de dar choques em sua vagina. “Eu aguentei 48 horas”, me disse, por telefone. “Depois acabei dando um endereço de um apartamento que eu conhecia porque tinho ido a uma feijoada, nĂ£o era um aparelho”.
Foi entĂ£o levada para o DOPS, metida em uma viatura com uma equipe de policiais dos quais nĂ£o sabe o nome: “Nem lembro das caras, estava quase morta, sei que eles me levaram para a rua Fortunato e apontei o prĂ©dio que sĂ³ reconheci porque tinha parado o meu carro na frente no dia da feijoada – eu nĂ£o sabia que o JoĂ£o Leonardo, que inclusive era de outra organizaĂ§Ă£o (ALN), morava ali. Lembro sĂ³ que o vi quando a porta abriu”, lamenta.
A versĂ£o do delegado Bonchristiano sobre o mesmo episĂ³dio omite detalhes significativos. “NĂ³s estĂ¡vamos atrĂ¡s dos caras que mataram o Chandler, coitado, executado na porta da casa dele, no SumarĂ©. Em 36 horas, o Cara Feia, um tira excepcional que jĂ¡ morreu, sabia quem tinha feito. AĂ, uma menina que nĂ³s prendemos, nos conta de uma reuniĂ£o na Rua Fortunato, perto da Santa Casa da MisericĂ³rdia. Eu fui com a menina. Mandamos ela tocar a campainha. Peguei o professor que era o dono do apartamento, prendemos”, contou. “Voltamos para o DOPS, eu, Tiroteio, Cara Feia e a menina e deixei dois tiras, o Raul Careca e o Nicolino Caveira, para ver se acontecia mais alguma coisa. Telefone. ‘Doutor, o senhor tem que vir aqui, teve um problema’. ‘Muito problema?’ ‘Demais’, quando Ă© demais Ă© que houve morte. Quando cheguei lĂ¡, tinha sangue para todo lado. O Raul Careca, que era um Ă³timo atirador, tinha dado 18 tiros no Marquito (Marco Antonio BrĂ¡s de Carvalho). AĂ que eles me contaram o que tinha acontecido: esse que matou o Chandler tinha chegado e quando abriu a porta, falou assim: “Quem sĂ£o vocĂªs?” E os tiras: “NĂ³s somos da famĂlia”. “Ah Ă©?” E puxou a arma. Os tiras revidaram e ele morreu”.
Bonchristiano jamais mencionou que a “menina” estava quebrada pela tortura. Mas corrigiu a versĂ£o que consta do depoimento de Raul Careca em um processo movido pela famĂlia de Marquito. Ali ele dizia que foram dois os tiros disparados.
Mano nera
“O caso Chandler gerou consternaĂ§Ă£o, mas, sobretudo preocupaĂ§Ă£o entre o grupo de assessores policiais, pois estes poderiam tornar-se alvo tambĂ©m. Participaram das investigações e ajudaram a identificar as armas utilizadas, enviando o material para estudo em laboratĂ³rios de criminalĂstica do FBI”, relata o professor Rodrigo Patto, da UFMG, que estuda a relaĂ§Ă£o entre a USAID e a CIA.
Patto, porĂ©m, nĂ£o sabe dizer se Chandler era de fato da CIA como acreditavam os militantes da ALN e da VPR que decidiram matĂ¡-lo. “Ele havia estado no VietnĂ£, e estava oficialmente em viagem de estudos no Brasil”, diz.
Em seguida ao assassinato de Chandler, um ex-instrutor americano de Bonchristiano, Peter Ellena, veio para o Brasil para acompanhar as investigações, o que melindrou o pessoal do DOPS. “Demos para ele a mano nera (sĂmbolo da mĂ¡fia), a mĂ£o negra ensaguentada”, diverte-se, contando que os policiais simularam um bilhete de ameaças dos guerrilheiros para assustar o “gringo”. “Ele ficou morrendo de medo”.
O jornalista Percival de Souza relata que o DOPS produzia relatĂ³rios confidenciais diĂ¡rios sobre o caso para o consulado americano, e que descobriram o fio da meada que os levaria a Marquito, “menos de um mĂªs depois do fuzilamento”, registrando em seguida a versĂ£o que Bonchristiano continua a defender: um acidente ocorrido na BR-116 no dia 8 de novembro de 1968, na altura de Vassouras (RJ), teria matado Catarina e JoĂ£o Antonio Abi-Eçab que estava em um fusca.
Ao socorrer o casal, a polĂcia teria encontrado uma metralhadora INA calibre 35, como a que matou Chandler. O DOPS foi avisado, e Bonchristiano viajou imediatamente a Vassouras. LĂ¡ o delegado teria descoberto que o casal, militante da ALN, teria ido ao Rio de Janeiro para encontrar Marighella, e que a metralhadora era a mesma que matou Chandler. Tinha encontrado a arma do crime.
O “teatrinho”, como os policiais chamavam as versões criadas para encobrir seus crimes, foi desmontado a partir do relato de um ex-soldado do ExĂ©rcito ao jornalista Caco Barcellos, em 2001, em que reconheceu Catarina “como presa, torturada e morta em um sĂtio em SĂ£o JoĂ£o do Meriti (municĂpio vizinho a Vassouras)” e afirmou que os Ă³rgĂ£os de repressĂ£o, apĂ³s a execuĂ§Ă£o, teriam forjado o acidente.
Mais uma vez a “eficĂªncia” do DOPS veio da tortura. Bonchristiano, que insistiu atĂ© o fim na desmentida versĂ£o, diz que foi cumprimentado por Niles Bond pelo feito. “O Chandler era um dos nossos, frequentava nossas reuniões, o Bond sabia que eu ia resolver o caso”, gaba-se.
Esticadinha no chĂ£o
Em 1983, os ventos democratas extinguiram o DOPS e trouxeram um novo delegado geral, MaurĂcio Henrique Pereira GuimarĂ£es, que despachou Bonchristiano para uma obscura seĂ§Ă£o da Secretaria de Justiça, encarregada das viĂºvas dos soldados mortos na II Guerra. “Preferi me aposentar, hoje nĂ£o acredito mais em nada. Fiz o que o presidente queria, os militares queriam, e nĂ£o ganhei nem aquelas medalhinhas que eles davam para todo mundo”, desdenha, referindo-se Ă Medalha do Pacificador, entregue pelos militares a torturadores famosos.
Mas o Mr. Dops nĂ£o tem muito do que reclamar. Em seus primeiros oito anos de DOPS subiu da 5ª para a 1ª classe, como sĂ³ acontecia aos que participavam da linha de frente da repressĂ£o. Ficou um tempo na “geladeira” quando um desafeto, o coronel Erasmo Dias, assumiu a secretaria de segurança (1974-1979). Mas conseguiu depois a promoĂ§Ă£o a delegado de classe especial e se aposentou no topo da carreira, em 1984.
A famĂlia, porĂ©m, ainda sofre com o passado do delegado. A filha, uma artista plĂ¡stica, escolheu o prĂ©dio do antigo DOPS como cenĂ¡rio de uma performance acadĂªmica. No Facebook, comenta que o pai ficou “do lado dos algozes da ditadura”, enquanto uma de suas filhas – neta de Bonchristiano – faz campanha pela ComissĂ£o da Verdade em seu perfil.
Dona Vera sente a distĂ¢ncia dos netos e lembra com amargura do tempo em que o marido trabalhava no DOPS. Via-se sozinha dias a fio com trĂªs filhos pequenos: “Eu nĂ£o podia falar com ele nem por telefone, ligava lĂ¡ e me diziam ‘a senhora fica tranquila que ele estĂ¡ bem’”, conta. “E eu, apavorada com as ameaças que a gente recebia por telefone, meus filhos iam escoltados para a escola”, diz.
Ela traz ainda outra lembrança: “Uma vez, minha filha era pequenininha, e quando o CampĂ£o, que trabalhava para o ZĂ© Paulo, veio buscĂ¡-la para escola, ela desatou a chorar ao ver aquele homĂ£o, parecia um Ăndio, vestido de amarelo da cabeça aos pĂ©s”, diz.
“Era o meu motorista no DOPS, depois veio me pedir licença para trabalhar com o Fleury, ‘lĂ¡ a gente ganha mais, nĂ© doutor?’ JĂ¡ morreu, coitado”, interveio Bonchristiano.
JosĂ© Campos Correia Filho, o CampĂ£o, era um conhecido torturador – dos mais cruĂ©is – segundo Percival de Souza, e membro do EsquadrĂ£o da Morte. AlĂ©m de motorista do “doutor”, ele conduzia cadĂ¡veres levados do DOPS na calada da noite para desovĂ¡-los nos cemitĂ©rios de periferia, segundo o prĂ³prio Bonchristiano.
No final de novembro de 2011, o governador Geraldo Alckmin acatou o lobby da AssociaĂ§Ă£o de Delegados de SĂ£o Paulo (cujo patrono Ă© o falecido delegado Antonio Ribeiro de Andrade, o primeiro chefe de dr. Paulo no DOPS) e mandou para a AssemblĂ©ia Legislativa um projeto de lei que equipara as carreiras de delegados de polĂcia, procuradores e promotores, sob o argumento de que a polĂcia civil Ă© judiciĂ¡ria, e portanto deve ser ligada ao Poder JudiciĂ¡rio e nĂ£o Ă Secretaria de Segurança PĂºblica.
O projeto, que o “doutor” Paulo muitas vezes defendeu em nossas entrevistas, faria sua aposentadoria pular dos atuais 11 mil reais para cerca de 20 mil reais, de acordo com os cĂ¡lculos que ele mesmo fez.
A partir do momento em que o acalentado projeto foi enviado para a Assembleia, o ex-delegado resolveu encerrar nossas conversas.
Retornei uma Ăºltima vez a seu apartamento, em janeiro deste ano, para checar alguns dados e ele deixou escapar o trecho de uma conversa que tive com um dos meus filhos, por celular. Estava disposto a me assustar.
Na despedida, preveniu-me mais uma vez sobre o “perigo” que “nĂ³s dois” estarĂamos correndo se eu levasse adiante qualquer investigaĂ§Ă£o sobre a localizaĂ§Ă£o dos corpos desaparecidos, advertĂªncia que fez desde a primeira entrevista. Perdi a paciĂªncia: “Mas, doutor, quase todo mundo que o senhor conheceu naquela Ă©poca jĂ¡ morreu! NĂ³s vivemos em uma democracia, ninguĂ©m vai matar assim um jornalista ou um delegado aposentado”.
“Isso Ă© o que vocĂª pensa”, retrucou. “Os que hoje ocupam os cargos daqueles, antigos, tambĂ©m assumiram o compromisso de proteger o pacto”, afirmou. “NĂ£o tem isso de democracia, minha cara jornalista, eles fazem o que precisa ser feito. Se alguĂ©m Ă© atropelado ou baleado no trĂ¢nsito, Ă© uma coisa que acontece, em SĂ£o Paulo. NĂ£o quero ver vocĂª esticadinha no chĂ£o”.
Quando entrei no taxi para ir embora, refletindo sobre quem afinal estaria ameaçando quem, lembrei de uma ocasiĂ£o em que nossas relações eram mais amistosas e pude lhe perguntar por que “eles” tinham enterrado os corpos, em vez de atirĂ¡-los ao mar ou incendiĂ¡-los para apagar definitivamente as provas.
De pĂ©, na sala decorada com os estofados confortĂ¡veis, rodeados por mesinhas enfeitadas com fotos de famĂlia e bibelĂ´s de inspiraĂ§Ă£o religiosa, Bonchristiano reagiu: “NĂ³s somos catĂ³licos, pĂ´!”. (Publica)