AMéLIA GONZALEZ
Conhecida por sua atuação em pesquisas e estudos
relacionados aos direitos dos trabalhadores, a ONG Repórter Brasil, fundada em
2001 e hoje uma das principais fontes de consulta sobre trabalho escravo no
país, acaba de lançar um novo relatório, desta vez focando os danos à saúde
de quem faz o abate e processamento de carnes. Nos três principais
frigoríficos do país - Marfrig, JBS e Brasil Foods - onde os
pesquisadores focaram seus estudos realizados este ano, o levantamento mostrou
dezenas de unidades industriais dessas fábricas condenadas na Justiça,
interditadas, multadas ou processadas por problemas na organização do trabalho.
Só para se ter uma ideia, o estudo observou o cotidiano de funcionários que
desossam aves e constatou que eles são obrigados a desossar no mínimo quatro
sobrecoxas de frango por minuto. Para cortar cada uma delas, são
necessários cerca de 20 movimentos, o que revela ao menos 80 movimentos por
minuto. Ocorre que estudos ergonômicos apontam que o limite de ações
por minuto deve se situar na faixa de 25 a 33 movimentos de forma a
evitar o aparecimento de doenças osteomusculares.
Chamado de "Moendo Gente", o estudo foi lançado
apenas sob o formato digital e pode ser encontrado na íntegra aqui . Ele constatou que, comparados os problemas de
saúde gerados pelo setor com os danos provocados por todos os demais segmentos
econômicos, o risco de o trabalhador sofrer uma lesão no punho ou
nos plexos nervosos é 743% maior se ele trabalha no abate de aves e suínos do
que em qualquer outra profissão. Ocorrem ainda duas vezes mais
traumatismos de cabeças e três vezes mais traumatismos de abdômen, ombro e
braço no abate de bovinos. Assim também, no abate de aves, a chance de um
trabalhador desenvolver um transtorno de humor, como uma depressão, é 3,41
vezes maior e no de bovinos o risco de sofrer queimadura é seis vezes
superior.
Segundo a ONG, O Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
classifica por meio de uma escala crescente que vai de 1 a 4 os ambientes mais
perigosos para a saúde do trabalhador. O setor de frigoríficos está na faixa 3
– a segunda mais grave – atrás de empresas do segmento de demolição e de
extração de minérios. O Brasil, com uma população de 194 milhões de
pessoas, tem 209 milhões de cabeças de gado e exporta carne
para 150 países. O frigorífico é um dos principais setores do
agronegócio nacional – responsável por mais de 750 mil empregos diretos ---
e exportou US$ 15,64 bilhões no ano passado.
A exposição ao frio é uma das queixas, além da
organização do trabalho que, segundo o estudo, " impõe ritmo de
trabalho, formas de pressão para manutenção e aumento de produtividade,
impossibilidade ou dificuldades de comunicação interpessoal entre os
trabalhadores, falta de interação entre as chefias e
trabalhadores." Para amenizar os efeitos do frio, o artigo 253 da
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) ordena a realização de intervalos de 20
minutos a cada 1 hora e 40 minutos de trabalho. São as chamadas “pausas para
recuperação térmica” o que, segundo o estudo, não é respeitado por muitas
fábricas que fazem uma leitura diferente: entendem que esse regime
de intervalos aplica-se somente às chamadas “câmaras frigoríficas” – onde as
temperaturas são sempre negativas.
Diz o relatório: "Por essa razão , os procuradores do
Ministério Público do Trabalho espalhados pelo Brasil vêm ajuizando ações
contra as unidades frigoríficas que não concedem pausas de “recuperação
térmica” aos trabalhadores dos ambientes artificialmente frios. O objetivo é
estender os intervalos a esses funcionários como forma de atenuar os problemas
de saúde. É o que se pode verificar nos frigoríficos da BRF de Capinzal (SC),
da JBS de Juara (MT) e na unidade de Nuporanga (SP) da Marfrig."
Para fazer o levantamento sobre as ações impetradas na
Justiça contra as más condições de trabalho nas empresas frigoríficas, a equipe
da Repórter Brasil colheu uma amostragem de dezenas de processos,
aleatoriamente, nos sites dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) de
três estados que concentram importantes indústrias do “complexo carnes”: Goiás,
Mato Grosso e Santa Catarina. Especialistas da área foram ouvidos e constataram
que as condenações impostas pelo Poder Judiciário aos frigoríficos foram
de valores muito baixos.
Para o advogado José Affonso Dallegrave Neto, doutor em
direito pela Universidade Federal do Paraná, um dos entrevistados,
“quando o Judiciário arbitra valores baixos ele está sinalizando para as
empresas que o ilícito cometido dentro dos frigoríficos não é tão grave assim”:
--- Considerando que a linguagem corporativa é economicista,
isto faz com que as empresas, de certo modo, não se sintam preocupadas o
suficiente ao ponto de investir em prevenção de danos, acidentes e doenças ocupacionais
-- comenta ele, lembrando que só a partir de 2005 a Justiça do Trabalho
passou a julgar essas ações indenizatórias --- Antes disso, a
responsabilidade ficava a cargo das Varas Cíveis da
Justiça Estadual, a chamada
Justiça comum
Um dos casos relatados aconteceu em Goiás com um
ex-funcionário da Marfrig que havia conseguido em primeira
instância danos morais de R$ 33 mil após sofrer um corte profundo na
perna, causado pela queda de uma faca afiada. Em junho de 2009, no entanto,
o TRT da 18a Região baixou a indenização para R$ 4,5 mil. No acórdão, o
desembargador que relatou o processo justificou a decisão dizendo que o
“arbitramento [da indenização em primeiro grau] deixou de observar as reais
condições sócio-econômicas e culturais dos envolvidos”. A conclusão do
estudo é que , "a indenização determinada em primeira instância
contribuiria para o “enriquecimento” indevido do trabalhador que, por conta do
baixo salário e da formação escolar incompleta, não estaria acostumado a
quantia tão alta."
Já em abril deste ano, diz o relatório, " o Tribunal de
Justiça do Mato Grosso (TJ-MT) condenou uma operadora de celular a pagar R$ 5
mil a uma mulher que, apesar de não ter contratado uma linha, foi incluída na
Serasa Experian por uma suposta “dívida” de R$ 26,94 com a empresa de telefonia
móvel. Na avaliação dos magistrados, a “ofensa à honra e ao bom nome do
cidadão” justificaram a definição da indenização por danos morais, “como forma
de incentivar o respeito aos direitos do consumidor e evitar que o ofensor
reincida no mesmo erro por considerar a sanção civil leve demais”
A situação não parece ser totalmente desconhecida pelos
frigoríficos. Entre 2007 e 2009, o levantamento da ONG mostra que a
Perdigão (hoje BRF), depois de ter firmado um acordo com o MPT,
implementou, no seu frigorífico localizado no município de Videira (SC), um
Programa de Reabilitação Ampliada (PRA). O objetivo era fazer um diagnóstico
dos problemas de saúde mais comuns entre os trabalhadores da unidade
industrial, além de apontar medidas preventivas para diminuir a incidência de
acidentes e doenças ocupacionais. Supervisionado por peritos do Instituto
Nacional do Seguro Social (INSS), o estudo apontou que um quinto de toda a mão
de obra no frigorífico vinha sendo acometida de doenças ocupacionais.
O programa apontou ainda que, no setor de abate de aves,
70,89% dos postos de trabalho necessitavam de um “intervenção ergonômica” –
basicamente, uma reavaliação sobre postura e intensidade de movimentos
praticados pelos empregados. No setor de suínos, esse índice pulou para 95,5%.
Em outras palavras, quase todos os postos de trabalho deveriam ser reprojetados
a fim de evitar problemas de saúde.
Os três frigoríficos listados pelo relatório foram ouvidos e
mandaram suas respostas através de notas. Para a Brasil Foods ,
criado em 2009 e que hoje tem cerca de 120 mil trabalhadores, “o respeito
às pessoas e à legislação vigente é e sempre foi uma prioridade da companhia”
pois “sempre procurou agir preventivamente”. Segundo a empresa, “alguns dos
casos mencionados pela Repórter Brasil em seu relatório referem-se a decisões
em primeira instância, das quais a BRF discorda totalmente e inclusive está
recorrendo das mesmas. Nos casos em que, de fato, ficou caracterizada alguma
não conformidade, a BRF prontamente firmou acordos com o Ministério Público do
Trabalho”. A BRF também “entende que a legislação atual possui diversas lacunas
de regulamentação, o que cria diferentes tipos de interpretação. Isso colabora,
portanto, para o crescente número de casos que são levados à discussão
judicial”.
O JBS nasceu na década de 50 e tem hoje 35 frigoríficos e
abatedouros, 130 mi empregados, 49 mil deles no brasil. Em nota, ela
afirma que está “em linha com as melhores práticas no mundo, trabalha
permanentemente na melhoria das condições de suas unidades, no treinamento e
conscientização dos empregados, e em práticas seguras para redução e prevenção
de acidentes e doenças ocupacionais”. A nota afirma ainda que “a JBS fornece
todos os EPI’s ( equipamentos de proteção individua) e os equipamentos de
proteção coletivos necessários e exige o seu uso, investe na melhoria das
instalações e mantém excelente nível de organização interna”.
A resposta da Marfrig é a mais extensa. A empresa existe
desde 1986, exporta para 140 países e tem 87 mil funcionários, sendo 48 mil no
Brasil. Afirma que "mantém histórico de práticas rigorosas e
exemplares em relação às medidas de proteção à saúde e segurança de seus
colaboradores". As relações do Grupo Marfrig com seus funcionários e
com os órgãos responsáveis pela normatização e fiscalização das leis
trabalhistas, diz ainda a nota, são norteadas pelo Código de Ética do Grupo
Marfrig, que é aplicado em todas as unidades da empresa. "O documento é de
conhecimento e acesso público e todos os funcionários recebem um exemplar ao
ingressar na Empresa.'"
A empresa realiza ainda, segundo a nota, periodicamente,
campanhas para prevenção de acidentes no trabalho. "A preservação da saúde
e integridade física e mental dos empregados é prioridade na política de
recursos humanos, associada aos programas de treinamento e desenvolvimento. A
qualidade de vida é parte desse contexto. A empresa é firme no propósito de
exigir dos empregados a prática correta dos processos de trabalho, para que a
segurança e saúde sejam de fato um bem comum e de responsabilidade de todos.
Também espera que os empregados participem dos programas de qualidade de vida e
saúde, com a mesma responsabilidade."
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