Num domingo, começo dos anos 80, o adolescente Ênio Rocha Silveira viveu uma situação típica de sua convivência com o pai. Eles haviam combinado ir ao estádio do Morumbi para assistir a um jogo do Palmeiras. O pai chegou em cima da hora marcada, encostou o carro na frente do prédio e, sem descer, falou: 'Filho, hoje não vai dar. Eu tenho uma operação'. Em seguida, arrancou apressado. Um amigo do garoto, que estava junto, perguntou:
- Seu pai é médico?
- Não. É militar.
Ênio tem hoje 36 anos e lembra da cena como uma das inúmeras em que o pai trocou a família por obrigações profissionais, sem dar maiores explicações. Recorda que algumas vezes visitava seu local de trabalho, uma delegacia na Rua Tutóia, em São Paulo, onde era bem tratado por policiais. A exemplo de muitos órfãos dos anos 60 e 70, Ênio não sabe direito o que o pai fazia, nem por que morreu.
O pai chamava-se Ênio Pimentel da Silveira. Foi encontrado morto no dia 23 de maio de 1986, na casa que ocupava no Forte Itaipu, unidade do Exército na Baixada Santista. Tinha cravados no peito quatro tiros de revólver Taurus calibre 38, três deles disparados à queima-roupa. Conforme o Inquérito Policial Militar número 17/86, foi suicídio. Dezessete anos depois, o filho quer provar que não. 'Tenho certeza de que meu pai não se matou. Ele foi assassinado.' Ênio já contratou advogado para mover uma ação judicial que questionará o resultado do IPM. Vai alegar que ninguém consegue se matar com quatro tiros no peito.
A pedido de ÉPOCA, cinco médicos-legistas e quatro peritos examinaram os laudos que constam do IPM. Todos pediram que seus nomes não fossem revelados por razões éticas. Eles garantem que se trata de um caso de suicídio bastante incomum, mas possível. 'O laudo foi bem feito e não contém elementos que dêem base a questionamentos', diz um perito com mais de 20 anos de carreira. Apenas um legista aposta em homicídio.
Ainda não é possível assegurar que Ênio Pimentel da Silveira seja uma vítima dos anos em que assassinar adversários era uma política de governo. Mas é certo que ele foi um dos algozes daqueles tempos - uma das figuras mais relevantes e misteriosas dos 20 anos que durou a ditadura militar. Entre 1969 e 1986, Ênio esteve à frente da Divisão de Investigações da Operação Bandeirante, do DOI-Codi (Destacamento de Operações Internas - Centro de Operações de Defesa Interna) de São Paulo e do Centro de Informações do Exército (CIE). Envolveu-se nas mais expressivas operações de combate à esquerda armada. 'Ele foi um dos homens de maior importância no sistema de repressão no país', diz Marival Chaves, ex-sargento do Exército, que trabalhou no DOI paulista e no CIE sob seu comando durante cinco anos.
No começo dos anos 90, Ênio, o filho, trabalhava na prefeitura de São Paulo quando encontrou Maria Amélia de Almeida Telles, ex-militante do PCdoB, presa em 1972 por seu pai. Ela achou seu rosto familiar. 'Eu disse que o conhecia de algum lugar, mas ele respondeu: 'Você deve ter conhecido meu pai, o Doutor Ney'. Foi um choque', conta Maria Amélia.
Pouca gente conheceu o pai de Ênio pelo verdadeiro nome. Doutor Ney Borges de Medeiros, ou simplesmente Doutor Ney, era o nome de guerra do capitão, major e depois coronel Ênio Pimentel da Silveira. Foi com esse disfarce que ele ficou famoso entre presos, policiais e militares que atuaram nos porões da ditadura. Estudioso dos movimentos de esquerda, defensor ferrenho da linha dura, soldado exemplar, citado por seus pares como 'extremamente arrojado e corajoso', ele foi um especialista no setor de inteligência e um dos principais responsáveis pelo aniquilamento das organizações armadas.
A construção do temido Doutor Ney começou em 1969, quando o então capitão ofereceu-se como voluntário à Operação Bandeirante - a parceria público-privada em que o Estado entrava com homens e infra-estrutura, enquanto empresários paulistas davam dinheiro para bancar a caça aos terroristas. Seu trabalho consistia em grampear telefones, controlar informantes infiltrados, prender, torturar e até matar.
Na Oban, Doutor Ney aproximou-se do delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. Tornaram-se amigos, como mostra uma das fotografias que ilustram esta reportagem. Nela, os dois confraternizam com o coronel Dalmo Muniz Cirillo, do DOI paulista, igualmente apontado como torturador, num restaurante em São Paulo. 'Ney e Fleury eram como irmãos', lembra o ex-sargento Marival Chaves. As famílias tornaram-se íntimas e visitavam-se nos fins de semana. 'O Fleury segurava o alvo para eu brincar de tiro ao alvo com uma arma de brinquedo', conta Ênio.
ATÉ O FIM
Doutor Ney pouco antes da morte: 'cachorros' ainda sob controle. Ao lado, no começo da carreira
Esse companheirismo pessoal e profissional fez com que Doutor Ney levasse para os meios militares as espertezas acumuladas pelo policial Fleury. A principal foi a infiltração nas organizações de esquerda. Consistia em prender militantes e fazê-los mudar de lado. Os 'cachorros', como ficaram conhecidos, recebiam salário para continuar militando, mas como espiões do Exército. Foi através desse tipo de traição que organizações como a Aliança Libertadora Nacional (ALN) e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foram praticamente dizimadas entre 1971 e 1974.
A parceria foi mais longe. Juntos, Fleury e Doutor Ney mantiveram cárceres privados, casas e sítios para onde eram levados os presos mais importantes. 'No cárcere privado, a organização não sabia da prisão e, quando o cara voltava convertido em cachorro, ninguém desconfiava', conta um ex-policial do Dops. Um dos mais famosos desses cárceres foi o sítio 31 de Março, em Parelheiros, na Zona Sul de São Paulo, alugado de um amigo dos dois. Lá dentro, Fleury, Ney e seus comandados criaram seus 'cachorros', torturaram e mataram.
Depois de desativado, o sítio foi usado para churrascos que reuniam as famílias de Ney, Fleury e amigos. Quando a Comissão de Desaparecidos foi ao local, nos anos 90, Ênio Rocha, o filho do Doutor Ney que trabalhava na prefeitura paulista, fez uma espécie de visita guiada. 'Eu tinha estado lá e mostrei tudo para o pessoal', lembra ele.
São raros os ativistas de esquerda que passaram por cárceres privados e sobreviveram para contar sua história. Doutor Ney, pelo menos, não costumava deixar sobreviventes nas ações desse tipo. Mas no DOI, na Rua Tutóia, ele acabou reconhecido. Foi acusado, por exemplo, de ter participado da tortura e morte de José Júlio Araújo, da ALN, em 1972.
Ivan Seixas, o Teobaldo, ex-guerrilheiro do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), relata que ele e seu pai, Joaquim Seixas, o Roque, foram torturados pelo Doutor Ney em 1971. Depois de horas de suplício, Ivan foi levado pela equipe do DOI até sua casa. 'O Ney manteve uma pistola 45 apontada para minha cabeça e avisou: 'Se alguém tossir lá dentro, eu estouro seus miolos'.' Presa, a mãe de Ivan ouviu o marido ser torturado até a morte.
Quase 20 anos depois, Ivan foi apresentado a Ênio Rocha. 'Eu disse na lata que o pai dele tinha me torturado e matado meu pai', conta Ivan. Ênio nega ter ouvido a história. Diz que Ivan apenas lhe relatou ter 'levado umas porradas'. 'Não há registros oficiais de que meu pai tenha torturado alguém', afirma. Ênio admite que o pai matou gente em combate, mas acredita que ele era apenas um 'homem da inteligência', especialista em lidar com informantes.
A fama do Doutor Ney, entre velhos colegas, é a do combatente aguerrido, que gostava de eliminar à bala os inimigos do regime. Em 1972, ele planejou o combate, e dele participou, em frente ao restaurante Varella, na Mooca, em São Paulo. Lá, o DOI fez um cerco e matou três dos quatro dirigentes da ALN que se reuniam no local - Iuri Xavier Pereira, Ana Maria Nacinovic e Marcos Nonato da Fonseca. Apenas Antônio Carlos Bicalho Lana escapou.
'O Ney se transformava no combate. Era um sujeito baixo, forte e extremamente corajoso', conta Marival Chaves. Um dos exemplos lembrados pelo ex-sargento é justamente o acerto de contas com Bicalho Lana, preso e morto com sua companheira, Sônia Maria Angel Jones, em novembro de 1973. A equipe do Doutor Ney cercou o casal num ônibus, em Santos. Armado, Bicalho Lana teria tentado reagir. 'O Ney se atracou com ele em luta corporal e tomou uma coronhada na cabeça, dada por um agente que tentava acertar o Lana.' Sônia e Bicalho Lana foram levados para o sítio 31 de Março, aquele das churrascadas familiares, de onde saíram mortos.
PC DO B
O massacre da Lapa, em 1976, foi uma de suas últimas operações de combate
Ações como a do restaurante Varella transformaram Doutor Ney numa referência na repressão, o que o afastou ainda mais da família. Passeios nos fins de semana eram abortados quando uma mensagem do DOI chegava pelo radiotransmissor instalado no carro. Em certa ocasião, Doutor Ney parou o carro e imobilizou um motorista que havia dado uma fechada no automóvel da família.
Em 1973 ele foi enviado pelo Centro de Informações do Exército em missão secreta ao Chile, logo depois do golpe que derrubou o presidente Salvador Allende. 'Ney atuou muito lá no estádio Nacional, interrogando brasileiros e chilenos que tinham ligações aqui', conta Marival Chaves. No mesmo ano, ele foi ao Araguaia em missões esporádicas para interrogar presos que não voltariam.
A última operação de repercussão aconteceu em 1976, já durante o governo Geisel. Em parceria com o DOI-Codi carioca, Doutor Ney participou da invasão de uma casa na Lapa, em São Paulo, em que foram mortos Ângelo Arroyo e Pedro Pomar, do PCdoB. Preso, João Batista Drummond morreu sob tortura.
Em 1979, com o fim dos combates, Doutor Ney foi promovido para o Centro de Informações do Exército, em Brasília, onde passou a controlar os infiltrados mantidos pelo Exército em todo o Brasil, que bisbilhotavam principalmente movimentos sindicais. Fez isso até morrer.
O fim da ditadura coincidiu com uma forte crise pessoal. Registros médicos mostram que nesse tempo Doutor Ney tomava remédios pesados para controlar crises de ansiedade e depressão. 'Ele tinha remorso por ter abandonado a família e via que tudo o que tinha defendido estava se esvaindo entre os dedos', conta Marival Chaves.
Logo depois que Doutor Ney foi encontrado morto, com os tiros no peito, seu parceiro do DOI, o coronel Dalmo Cirillo, foi até o Forte Itaipu. Enfrentou o oficial de comando da área, general Abdias da Costa Ramos, e tomou para si documentos sigilosos que estavam com o amigo. Esteve também na casa da segunda mulher do ex-companheiro de repressão. 'O coronel Cirillo disse que o pessoal viria vasculhar a casa, por isso era melhor sumir com os papéis', conta outro amigo.
Foram tensas movimentações desse tipo que fizeram com que o filho Ênio mantivesse o assunto esquecido por 17 anos. Sua mãe, madrasta e irmãs ainda preferem assim. Quando Ênio começou a buscar informações oficiais, não foi bem recebido. Durante três anos sofreu com uma mania de perseguição que agora está controlada. Mas mantém o hábito de revistar a própria casa à noite. 'Se não fizer isso, não fico sossegado', diz.(Época)
segunda-feira, 16 de maio de 2011
O filho do caçador
segunda-feira, maio 16, 2011
Molina com muita prosa & muitos versos
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