segunda-feira, 11 de julho de 2011

Feirão de armamentos e drogas no Rio

Na definição do secretário responsável pela pasta, José Mariano Beltrame, “foi o 11 de setembro da Segurança Pública do Rio”. Era manhã de sábado, 17 de outubro de 2009. Com o fogo espalhando-se pela fuselagem, o helicóptero Fênix 3 da Polícia Militar desapareceu entre os barracos do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, Zona Norte do Rio de Janeiro. A cena era cinematográfica. O aparelho fez um pouso forçado em um campo de futebol e, em poucos segundos, foi tomado pelas chamas. Morreram três dos seis policiais a bordo. O helicóptero foi atingido no ar por tiros de fuzil disparados por traficantes que enfrentavam a polícia em terra. Abatido, como se o Rio estivesse em gerra civil.

Ao comparar o atrevimento antiaéreo dos traficantes ao atentado terrorista que derrubou as Torres Gêmeas em Nova York, Beltrame explicitou para a sociedade aquilo que a comunidade de segurança estava cansada de denunciar em reuniões oficiais: a escandalosa omissão do governo federal na luta contra o tráfico de armas. Por ser Beltrame um delegado da Polícia Federal cedido ao governo do Estado, sua afirmação ganhou ainda mais peso. Na prática, criou um fato político que não poderia ficar sem resposta.

A reação veio da Procuradoria da República. O órgão instaurou um procedimento e passou a investigar a atuação da Polícia Federal (PF) e da Receita Federal no Rio de Janeiro no combate ao tráfico de armas. O inquérito, que já tem mais de 30 volumes, foi produzido ao longo de um ano e meio e revela um quadro alarmante. As principais conclusões:

1) policiais e servidores pagos para combater o ingresso de armas ilegais no país estão sob suspeita de formar quadrilhas engajadas em facilitar a ação dos criminosos;

2) depoimentos de delegados federais à Procuradoria revelaram uma briga interna na Polícia Federal do Rio que, segundo os procuradores, fragilizou ainda mais as investigações;

3) o Aeroporto Internacional Tom Jobim, o Galeão, e os portos do Rio de Janeiro e de Itaguaí são verdadeiras peneiras para a entrada de armas e drogas.

O cenário descrito pelos procuradores seria preocupante em qualquer circunstância. No caso do Rio, chama ainda mais a atenção porque a cidade deverá abrigar a final da Copa do Mundo de 2014 e sediar a Olimpíada de 2016. Durante esses dois eventos, a atenção do mundo estará concentrada no Rio. Antes deles, seria bom impedir que marginais tivessem acesso a armas capazes de derrubar helicópteros e atingir as forças policiais a quilômetros de distância.

122 traficantes foram presos no Galeão em 2008, em relação aos 39 em 2010. A cocaína apreendida caiu pela metade

Os procuradores identificaram os primeiros sinais da existência de uma “organização criminosa” a partir do depoimento do policial federal Adir Cardoso Meirelles, em junho do ano passado. Ele disse que existia uma quadrilha no Galeão, envolvendo funcionários da Receita e policiais. O grupo facilitaria o contrabando de mercadorias diversas, incluindo o tráfico de armas pesadas. Meirelles contou que seis malas com componentes eletrônicos para a máfia dos caça-níqueis, avaliados em R$ 1 milhão, foram deixadas dentro de um avião da empresa Delta que vinha dos Estados Unidos no final de 2009. O dono da bagagem teria fugido ao ser alertado por policiais ou funcionários da Receita de que havia uma operação para prendê-lo. Meirelles afirmou que as malas pertenceriam a Fernando Duarte Santiago Rodrigues. Apontado pela PF como um grande contrabandista, Rodrigues entrou e saiu aproximadamente 100 vezes do Brasil entre o final de 2007 e junho de 2010. O policial disse que passou a enfrentar falsas acusações porque continuava empenhado em prender Rodrigues. “Um agente da polícia me procurou dizendo que as câmeras do aeroporto tinham me gravado extorquindo US$ 1.000 de um passageiro e que eu havia cobrado muito porque fiscais da Receita cobram apenas US$ 250 por mala”, afirmou.

A partir dessas denúncias, o esquema no Galeão começou a se confirmar. Rodrigues foi preso em fevereiro deste ano no aeroporto. Quando foi pego, estava com uma carga mais modesta. “Material eletrônico e suplementos vitamínicos”, segundo o relatório da PF. Acabou liberado um dia depois. A reportagem de ÉPOCA não o localizou.

O depoimento de outro policial reforçou a suspeita de que uma quadrilha opera no aeroporto. O delegado federal Leonardo de Sousa Gomes Tavares, que chefiou uma das equipes da PF no Galeão, encaminhou a denúncia sobre malas milionárias à Corregedoria e depois ao serviço de inteligência da Polícia Federal. Aos procuradores, disse que o então superintendente da PF no Rio, Ângelo Gioia, ao assumir o cargo no final de 2008, “desmontou a capacidade” de fiscalização no aeroporto, deixando apenas dois policiais no combate ao tráfico de armas e drogas. Antes, eram ao menos sete. Desse modo, despencaram as apreensões de entorpecentes, segundo afirma Tavares.

As estatísticas sobre prisões e apreensões corroboram o depoimento dele. Em um relatório enviado ao Ministério Público na semana passada, a PF informa que houve 122 prisões de traficantes no Galeão em 2008, em relação às 39 no ano passado. No mesmo período, a quantidade de cocaína apreendida caiu pela metade, para 179 quilos em 2010. Apenas duas armas foram apreendidas nos últimos três anos. Segundo informações da Receita Federal, apenas 3% das cargas do Galeão passam por vistoria completa dos fiscais, que analisam tanto a documentação quanto o conteúdo da mercadoria que chega. O índice é considerado baixo pela Procuradoria. Nos últimos três anos, a Receita apreendeu 161 quilos de drogas no aeroporto.

Logo depois de ouvir o delegado Tavares, o procurador Marcelo Freire mandou um ofício ao então superintendente Gioia, que deixou o cargo em março deste ano e tornou-se adido em Roma. Ele queria saber se havia alguma investigação aberta diante “da possível existência de uma organização criminosa no âmbito do aeroporto internacional com suposta participação de servidores da Receita e Polícia Federal”. Questionou também sobre a redução de apreensões de drogas.

EFEITO E CAUSA
No Morro dos Macacos, Rio, um helicóptero da PM é derrubado por traficantes em 2009. No Galeão, um policial revista cargas com o auxílio de cachorro. Brigas internas fragilizam as investigações

A reação de Gioia levantou ainda mais suspeitas. Ele mandou abrir processo disciplinar contra Tavares, com base nas declarações por ele prestadas à Procuradoria. Isso poderia levar à demissão do policial. Os procuradores Freire e Fábio Seghese, responsáveis pelo inquérito, interpretaram a medida como crime de coação contra uma testemunha. E moveram ação penal contra Gioia e outros dois delegados envolvidos no processo disciplinar aberto contra Tavares. No final deste mês, vários delegados da PF no Rio serão ouvidos pela Justiça Federal no processo contra o ex-superintendente.

De Roma, por e-mail, Gioia respondeu às perguntas de ÉPOCA. “Sobre essa denúncia (de coação) promovida pela Procuradoria, eu me defenderei oportunamente. Trata-se de disputa institucional por eu ter negado o acesso aos procuradores de dados de inteligência que não guardassem relação com investigações policiais”, afirmou.

Gioia disse ainda que desconhece a existência de quadrilha de contrabando de armas e tráfico de drogas atuando de forma organizada no aeroporto. “Alguns servidores foram ouvidos (pela Procuradoria) e devem ter falado contra a minha administração em razão de terem interesses contrariados, notadamente os que foram substituídos no aeroporto, o que deveria ser encarado como rotina”, afirmou Gioia. Ele diz que, durante sua gestão, “não houve qualquer desmonte na estrutura investigatória”.

Embora negue saber da existência de quadrilhas, o ex-superintendente da PF no Rio enviou aos procuradores dois relatórios de inteligência que apontavam suspeitas de esquemas no Galeão. O primeiro deles, datado de agosto de 2010, relata que o delegado Rodrigo de Sousa Alves e sua mulher, também policial, ganharam no final de 2008 uma viagem a Angola, ao custo de R$ 10 mil. O presente foi dado por um empresário com negócios de exportação no país africano. O documento também informa que Alves vendeu um apartamento por R$ 285 mil ao empresário e que esse preço estaria acima do praticado no mercado. Por fim, o documento informa que o delegado tinha outro apartamento na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio, avaliado em R$ 500 mil.

Graças a esses relatos, Alves ficou afastado oito meses da PF. Ele disse a ÉPOCA que provou sua inocência ao ser absolvido pela comissão de disciplina interna e já voltou ao trabalho. O policial confirma que ganhou as passagens do exportador Valdomiro Minoru Dondo, com um grupo de 40 pessoas. Ele diz que era amigo do empresário muito antes de virar delegado e que aceitar a viagem não representaria conflito de interesses com sua função na polícia. Argumenta ainda que foi sua mãe, e não ele, quem vendeu um apartamento para Dondo. E nega ser dono de imóvel na Barra.

O procurador Seghese espera receber o relatório da comissão de disciplina da PF que apurou o caso de Alves. No inquérito movido pela Procuradoria ele não é investigado. Figura como testemunha, pois foi um dos delegados que denunciaram a queda na apreensão de drogas dentro do aeroporto na gestão do ex-superintendente Gioia. Gioia enviou o relatório contra o delegado Alves duas semanas após ele ter prestado depoimento à Procuradoria –, mas nega ter sido um ato de represália. Em outro relatório, Gioia cita o nome de ao menos 15 policiais acusados de envolvimento em crimes como liberação de contrabando e facilitação de entrada de drogas no país. Passados alguns meses, contudo, a Procuradoria recebeu informação do próprio serviço de inteligência da PF de que a fonte dessas informações não era idônea.

Navios na Baía de Guanabara armazenariam drogas e armas, depois levadas em lanchas ao continente

Em meio a tantos relatórios e à troca de acusações, o Ministério Público concluiu que a PF ficou ainda mais fraca em suas ações contra a circulação de armas ilegais. A Secretaria de Segurança do Rio informa que, em 2010, foram apreendidas 7.554 armas, das quais 35% eram metralhadoras, fuzis, submetralhadoras e pistolas de grosso calibre. O delegado Anderson de Andrade Bichara, que está na PF há quase oito anos e comandou a Delegacia de Repressão ao Tráfico Ilícito de Armas da PF no Rio, enviou à Procuradoria estimativas sobre o arsenal que circula no Brasil. São 16 milhões de armas de fogo, 47,6% delas ilegais. Dados atualizados sobre as apreensões de armas são vitais para o trabalho de inteligência da PF, como o mapeamento de rotas do contrabando usadas pelos criminosos. Mas o Sinarm, sistema criado pelo Estatuto do Desarmamento de 2003 para registrar apreensões de armas, contém dados defasados. As informações mais recentes sobre o Rio se referem às apreensões feitas pelas polícias estaduais em 2004. De acordo com levantamento do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 73% das apreensões de armas em todo o país estão concentradas no Estado do Rio.

A PF acredita que a maior parte das armas enviadas ilegalmente para o Brasil vem do Paraguai, por terra. Os traficantes são criativos. Buscam novos mercados e burlam as fronteiras nacionais de diversas formas. Nas apreensões feitas na operação do Complexo do Alemão no final de 2010, havia metralhadoras desviadas do Exército boliviano. A investigação do Ministério Público mostra que o mar tem sido um caminho alternativo procurado pelos traficantes, devido às fragilidades de fiscalização nos portos brasileiros. A alfândega do Porto do Rio de Janeiro informa que, desde janeiro de 2007, ocorreram oito apreensões de armas e munição. Isso sem que a PF tenha feito, segundo o relatório dos procuradores, um “trabalho sistemático na repressão” ao tráfico. A Procuradoria ouviu o inspetor-chefe da alfândega, Ewerson Augusto Chada, que descreveu um quadro precário de segurança interna do porto. O sistema de câmeras e o controle eletrônico de acesso ao local não funcionam há dois anos, enquanto o registro manual de quem entra e sai “não é confiável”. Chada contou também que soube de navios na Baía de Guanabara usados para armazenar drogas e armas, depois levadas em lanchas ao continente. Isso já era uma suspeita da PF, de acordo com um documento enviado à Procuradoria no início das investigações em 2009. Não há informações de que a polícia tenha adotado alguma medida para impedir esse tipo de crime.

A situação no Porto de Itaguaí também é descrita como grave. Em outubro de 2010, a PF apreendeu 250 quilos de cocaína que seriam despachados do porto, escondidos em vasos de plantas, para o Porto Gioia Tauro, no sul da Itália, onde, segundo a Justiça Federal, atuam organizações mafiosas. Apesar da ação bem-sucedida da PF naquele momento, a abertura dos arquivos de um pen drive do italiano Emanuele Savini, condenado em maio a 14 anos de prisão por envolvimento com o tráfico, revelou a fragilidade dos portos. O documento lista outras quatro remessas de plantas a Gioia Tauro entre 2007 e 2010, levantando suspeitas de que a quadrilha tenha mandado mais drogas ao exterior do mesmo modo. Dois carregamentos saíram do porto do Rio de Janeiro e outros dois de Itaguaí. Não se sabe se há um fluxo contrário de entrada de armas. Drogas são comumente trocadas por armamento.

Os procuradores ainda não têm prazo para concluir o trabalho de investigação e apresentar um diagnóstico final sobre o tráfico de armas. Como se trata de um inquérito civil, ao final da apuração a Procuradoria vai apresentar recomendações à Receita e à Polícia Federal. Se os conselhos não forem seguidos, um caminho pode ser uma ação judicial para fazer cumpri-los. Há também uma investigação criminal da própria PF que deve resultar numa operação contra servidores federais acusados de envolvimento em casos de contrabando e tráfico de armas no Rio.

O novo superintendente da PF no Estado, Valmir Lemos de Oliveira, no cargo desde maio, não está satisfeito com as explicações que atribuem ao contrabando papel essencial no armamento do crime no Rio de Janeiro. Ele disse ter feito um estudo sobre apreensões em 2008 e 2009, cujo resultado mostrou que 96% do que foi retirado de circulação no Estado do Rio é de fabricação nacional. Portanto, não seria um problema de tráfico internacional de armamentos. Isso não significa, segundo ele, que a Polícia Federal deva desprezar o assunto. O secretário Beltrame, procurado por ÉPOCA, preferiu não falar. Ele foi discreto também ao ser ouvido pelos procuradores e não fez críticas a sua corporação de origem, a Polícia Federal. Tudo bem. A polícia não precisa brigar internamente para prestar um serviço eficiente à população. Melhor mesmo que não o faça. O importante é que os maus policiais sejam afastados e que a ação das autoridades impeça os bandidos de se armarem – coibindo, por falta de meios, que eles encenem um outro 11 de setembro à carioca.

   Reprodução

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