Urariano Mota *
Eu havia prometido nĂ£o escrever nada sobre a telenovela “Amor e RevoluĂ§Ă£o” enquanto o poeta e ex-preso polĂtico AlĂpio Freire nĂ£o me antecedesse. Isso porque ele foi um dos primeiros a perceber em que o folhetim do SBT ia dar. Mas nĂ£o pude mais me conter, depois de ler isto na Folha de SĂ£o Paulo:
“Silvio Santos reclama de ibope baixo e novela troca drama por humor
O dono do SBT, Silvio Santos, reclamou do baixo desempenho da novela ‘Amor e RevoluĂ§Ă£o’ em reuniĂ£o nesta terça-feira, no Complexo Anhanguera. Silvio fez a queixa diretamente ao autor da novela, Tiago Santiago, que se prontificou a efetuar vĂ¡rias mudanças.
A despeito da repercussĂ£o e polĂªmica que a novela desencadeou na internet, ‘Amor e RevoluĂ§Ă£o’nĂ£o passa de cinco pontos de mĂ©dia na Grande SĂ£o Paulo. Cada ponto equivale a 58 mil domicĂlios assistindo Ă histĂ³ria, que se passa na ditadura militar.
Dentro de duas semanas a novela sofrerĂ¡ uma guinada de 180 graus. DiĂ¡logos sobre polĂtica, personagens discursando para criar contextualizaĂ§Ă£o histĂ³rica, assuntos referentes a militares serĂ£o praticamente abolidos da histĂ³ria. Em seu lugar haverĂ¡ mais cenas de humor, amor e outros relacionamentos.
Procurado pela reportagem nesta tarde, Santiago nĂ£o quis comentar sobre a ‘bronca’ de Silvio Santos, mas confirmou que a novela terĂ¡ algumas mudanças de rumo. ‘NĂ³s de fato vimos vĂ¡rias pesquisas, e as pessoas Ă noite querem rir, se emocionar. Vamos acabar com o tema polĂtico mesmo’, admitiu Santiago, que acrescentou: ‘Nunca mais vou fazer novela sobre polĂtica’ ".
Comento rĂ¡pido: talvez SĂlvio Santos nĂ£o tenha percebido, mas hĂ¡ muito “Amor e RevoluĂ§Ă£o” faz humor involuntĂ¡rio. De militares que andam de farda na intimidade de suas casas, passando por presos torturados que metem bronca nos torturadores, sempre com uma lĂngua fluente que nem toma conhecimento dos choques elĂ©tricos que levou, a novela tem mostrado na televisĂ£o uma ignorĂ¢ncia de tempo, lugar e vidas de tal maneira, que atĂ© parece galhofa.
Escrever em folhetim de televisĂ£o sobre a histĂ³ria tem sido um fiasco, desde a minissĂ©rie JK na TV Globo. Se em JK os laços que prendiam Juscelino Kubitschek Ă realidade eram laços de fita, de chapĂ©us, cenĂ¡rios e mĂºsicas de Ă©poca, em “Amor e RevoluĂ§Ă£o” a realidade sĂ£o guerrilheiros e militares caricatos, que falam frases de cartilha, didĂ¡ticas. Como as de um personagem que explicou num capĂtulo, por exemplo: “Dops. Dops Ă© o nome com que Ă© conhecido o Departamento de Ordem PolĂtica e Social. D-O-P-S: DĂ³pis”...
Salvava a novela atĂ© entĂ£o, como uma cereja em um bolo amargo, os depoimentos. Depois das palhaçadas grosseiras do Ratinho antes, depois de penar a ver cenas, diĂ¡logos que os circos da periferia fazem com melhor arte, vinham os depoimentos reais, verdadeiros, de militantes que sobreviveram Ă tortura. AtĂ© entĂ£o, podia-se dizer: pulem a novela, vejam o depoimento. De fato, houve alguns deles que se aproximaram do sublime. Assim era. Mas a ressalva nĂ£o durou muito.
Todo o prometido pela produĂ§Ă£o da telenovela, de que “para dar credibilidade Ă histĂ³ria e acontecimentos narrados na novela, seria exibido no fim de cada capĂtulo um depoimento de um guerrilheiro, artista, familia de desaparecidos que participou desse momento tĂ£o importante para a democracia no Brasil”, veio por Ă¡gua abaixo com os depoimentos de torturadores, de militares criminosos ainda sem julgamento no Brasil, mais adiante.
Dizer o que mais agora?
“O autor decidiu ainda que as personagens de Luciana Vendramini e Gisele Tigre (Marcela e Mariana) terminarĂ£o juntas -- talvez com direito a casamento -- e que haverĂ¡ mais cenas ‘lĂ©sbico-erĂ³ticas’ entre elas”, completa a notĂcia.
Aquela ilusĂ£o de que “Amor e RevoluĂ§Ă£o” retomasse a histĂ³ria que nĂ£o foi conhecida, porque ao povo seria dada a oportunidade de saber o drama e valor de uma geraĂ§Ă£o violentada, cai por terra. Quem tiver dĂºvida, anote a Ăºltima: nos bastidores do SBT, a novela ganhou o apelido de "SessĂ£o PrivĂª", ou de sexo na tevĂª. Quem leu os prĂ³ximos capĂtulos fala que virĂ£o cenas fortes e apelativas. Ou seja, nem amor nem revoluĂ§Ă£o, ao fim.
Em PneumotĂ³rax, Manuel Bandeira escreveu que, para um tuberculoso no começo do sĂ©culo vinte, o melhor a fazer era tocar um tango argentino. Para nĂ³s, que acreditamos no poder da arte, em 2011 podemos concluir: o melhor a fazer Ă© voltar Ă liberdade da literatura. Ela saberĂ¡ dizer o que as telenovelas nĂ£o podem, por limitaĂ§Ă£o de gĂªnero, veĂculo, ibope e grana.