O ex-militante e ex-deputado federal Ricardo Zarattini (PT), afirmou hoje (19) que um membro da diplomacia norte-americana no Brasil, Richard Melton, o interrogou enquanto esteve preso no Departamento de Ordem PolĂtica e Social de Pernambuco (Dops-PE), na cidade do Recife, no ano de 1968.
“Eu afirmo com certeza que era ele. Me perguntou porque eu nĂ£o gostava dos Estados Unidos e mais nada”, disse o deputado em depoimento para a ComissĂ£o da Verdade do Estado de SĂ£o Paulo Rubens Paiva, na Assembleia Legislativa. Ele explicou que, Ă Ă©poca, era preso polĂtico e membro do Partido Comunista Brasileiro RevolucionĂ¡rio (PCR), que se propunha a liderar um movimento trabalhista revolucionĂ¡rio no campo, na Zona da Mata canavieira de Pernambuco. “Tinha ele e outro americano, eu nĂ£o conhecia nenhum dos dois. Foi na sala do delegado Moacir Sales de AraĂºjo”. O delegado AraĂºjo era o diretor do Dops de Pernambuco.
Melton foi funcionĂ¡rio do consulado norte-americano em Recife no perĂodo entre 1967 e 1969 e seu reconhecimento por Zarattini se deu quando o norte-americano foi indicado ao cargo de embaixador do paĂs no Brasil pelo governo dos Estados Unidos, apĂ³s o tĂ©rmino do regime, no governo do presidente JosĂ© Sarney (1985-89). Melton se tornou embaixador em 1989.
“O que me levou a procurar a comissĂ£o foi a publicaĂ§Ă£o, pelo Jornal do Brasil, Ă Ă©poca, de um ofĂcio do MinistĂ©rio da Justiça ao Itamaraty, que afirmava que as apurações revelavam que Melton nunca haveria pisado no Dops”, explicou o Zarattini. Ele afirmou que espera que isso seja apurado, inclusive pela ComissĂ£o Nacional da Verdade. “Gostaria de encontrar mais informações sobre isso, para que haja investigaĂ§Ă£o junto ao MinistĂ©rio da Justiça e Ă ComissĂ£o Nacional da Verdade.”
O deputado estadual e presidente da comissĂ£o, Adriano Diogo (PT), lembrou que, em 1989, o secretĂ¡rio-executivo do MinistĂ©rio da Justiça era JosĂ© Paulo Cavalcante Filho, que hoje integra a ComissĂ£o Nacional da Verdade. “Com isso fica mais fĂ¡cil de cruzar informações”, ponderou.
Multinacional da tortura
O coordenador da assessoria da ComissĂ£o Rubens Paiva e presidente do Conselho Estadual de Defesa da Pessoa Humana (Condepe), Ivan Seixas, afirmou que a OperaĂ§Ă£o Condor, que delimitava ações conjuntas entre governos autoritĂ¡rios da AmĂ©rica do Sul, começou antes de da dĂ©cada de 1970, quando as ditaduras chilena e uruguaia (1973) e argentina (1976) foram deflagradas.
“A intervenĂ§Ă£o dos EUA nas ditaduras latino-americanas nĂ£o ganha apenas notoriedade pela coordenaĂ§Ă£o de ações. HĂ¡ muito mais que isso, ouvimos relatos de agentes da repressĂ£o brasileira que afirmavam que havia cursos, de em mĂ©dia dois anos de formaĂ§Ă£o, de prĂ¡tica de tortura.”
Ele afirmou que, antes da existĂªncia em si da operaĂ§Ă£o, os cursos abordavam tĂ©cnicas de espionagem e interrogatĂ³rios, que eram ministrados nos Destacamentos de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi) do Rio de Janeiro e de SĂ£o Paulo. Segundo Seixas, os relatos confirmaram que, muitos dos tĂ©cnicos dos cursos, eram norte-americanos e sĂ³ falavam inglĂªs. “Antes de 1973 [ano dos golpes militares nestes paĂses], alunos uruguaios e chilenos passaram por estes cursos, juntos com brasileiros.”
Ivan Seixas lembrou o carĂ¡ter da repressĂ£o no Brasil, que era colocada em prĂ¡tica atravĂ©s da violĂªncia institucionalizada. “A questĂ£o dos instrutores de tortura nĂ£o era variĂ¡vel, mas sim sistemĂ¡tica. Assim havia presença de 'professores' alemĂ£es, israelenses, ingleses. Era uma grande multinacional da tortura.” Ele destacou o carĂ¡ter da orientaĂ§Ă£o da polĂtica de Estado para a repressĂ£o. “NĂ£o existem porões da ditadura, mas sim uma polĂtica institucional da tortura. Era assim que mantinham o controle e o terror.”
“Os Estados Unidos afirmavam que havia um perigo de infiltraĂ§Ă£o comunista no Brasil em 1964. Isso Ă© mentira! E Ă© importante que todos, inclusive a juventude saibam disso, saibam o porquĂª destes tantos anos de ditadura”, disse Zarattini ao comentar uma matĂ©ria do jornal A Folha de S. Paulo no dia 17 de março de 1966, que trazia informações sobre a embaixada norte-americana no Brasil e os perigos da “infiltraĂ§Ă£o comunista” que esta via com o governo do presidente JoĂ£o Goulart (1961-64). O golpe ocorreu no dia 31 do mesmo mĂªs.
Um dos quinze
Zarattini foi um dos quinze presos polĂticos trocados pelo embaixador norte-americano no Brasil Charles Burke Elbrick, sequestrado em 1969. Em 1968, apĂ³s o episĂ³dio com Melton no Dops de Pernambuco, foi preso no Quartel Dias Cardoso, tambĂ©m em Recife. Formado em engenharia, começou a ensinar matemĂ¡tica e portuguĂªs aos cabos e sargentos, que precisavam passar por provas de conhecimentos especĂficos.
“Fiquei conhecido como o 'professor', e por isso fui taxado de subversivo”, contou. Ele foi levado para uma base da AeronĂ¡utica depois do episĂ³dio. “E aĂ, meus amigos, era pau, pau de arara, choque”, contou. ApĂ³s fugir da prisĂ£o com a ajuda de dom Helder CĂ¢mara, ficou escondido no Convento das DorotĂ©ias, em Pernambuco, atĂ© voltar para SĂ£o Paulo, em 1969, onde foi preso novamente, na OperaĂ§Ă£o Bandeirantes (Oban), que se tornaria o Doi-Codi de SĂ£o Paulo. Foi levado preso para o Rio, de onde saiu apenas apĂ³s o sequestro de Elbrick. (BA)